Metonímia, ou vingança do engano

1904 palavras 8 páginas
Metonímia, ou a vingança do enganado
Drama em três quadros
Rachel de Queiroz

Pois nessa cidade do interior havia um homem; não era velho, mas pior que velho, porque era gasto. Em moço sofrera de beribéri, o que lhe arruinou para sempre o futuro. Tinha as pernas fracas, o peito cansado e asmático, a cor terrosa, o olhar vidrado de doente crônico. Contudo era homem de algumas posses, casa própria com loja contígua, onde instalara o armazém; vivesse ele no Ceará, o armazém se chamaria bodega, em Pernambuco venda, no Pará mercearia, em São Paulo empório. E já que eu não quero designar o local do crime, qualquer nome desses serve. Bodega, ou empório, era comércio, e quem tem comércio tem dinheiro; de jeito que, apesar de tão mal
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O apetite diminuiu. Já lhe transparecia, por sob o rouge da face, a antiga cara de tísica. E há de ter sido esse desgosto assim alardeado com pranto e fastio, que acabou por despertar as suspeitas do marido, não acordadas quando o amor florescia e tudo ainda eram rosas. Passou o bodegueiro a vigiar a esposa; a lhe examinar os silêncios; a lhe escutar os suspiros e os murmúrios durante o sono. Deu para fazer pesquisas e acabou descobrindo um postal e um livro com um nome de homem escrito em ambos – e com a mesma letra. Descobriu um escudo da corporação do sargento – o que provava que o objeto de suspiros, silêncios e murmúrios, além de homem era soldado. E tantas descobertas pequenas levaram-no afinal à maior de todas, que era descobrir o que traíram. Porque descobrira as cartas de amor que vinham com carimbo distante, por via aérea, assinadas com aquele nome fatal. Durante cinco meses o pobre revolveu dentro de seu magro peito doente o punhal venenoso do ciúme. Como menino que descobre um ninho de pássaro e fica diariamente a vigiar escondido o número de ovos que aumenta, e depois os progressos do choco, assim conseguira o marido numa chave falsa para o cofre de guardados da mulher: era uma caixa de madeira do Paraná, com um pinheirinho recortado na tampa, que lhe dera durante a lua-de-mel, dizendo rindo: “Está aqui, para você guardar os seus segredos...” E a ingrata obedecera ao pé da letra. Todos os dias, naquela hora

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