A abertura política e a dignificação do função pública

Enviado por Simon Schwartzman


 

Política e racionalidade na administração pública

A reativação da vid político-partidária no Brasil nos últimos anos tem afetado o exercício da função pública em pelo menos duas formas essenciais. Primeiro, através de um ataque generalizado aos chamados "tecnocratas", ou seja, aos funcionários públicos que tratam de fazer valer seus critérios próprios ou técnicos de decisão sobre os mais variados temas, da política social à política econômica, sem submetê-los às injunções político-partidárias do momento. Segundo, pela utilização bastante ampla do emprego público como "moeda" política, ou seja, como um recurso utilizado não para o cumprimento de uma função pública qualquer, mas como um bem - um emprego - que se dá em troca de um apoio político específico, ou de um certo número de votos. Quando há troca de partidos no poder, um grande número de funcionários ligados à administração anterior e substituído por outras pessoas que tenham demonstrado sua lealdade ao vencedor. O predomínio de critérios políticos para a designação de servidores, tanto quanto para o condicionamento de suas ações, faz com que os mecanismos mais clássicos de admissão e promoção no serviço público - concursos públicos, mérito pessoal, qualificação técnica, etc. - tendam a ser postos de lado, substituídos por critérios de conveniência ou lealdade pessoal.

Seria um grave equívoco atribuir esta situação, simplesmente, a um amoralismo supostamente inerente à atividade político-partidária, que não hesitaria em renunciar aos valores de eficiência e probidade no serviço público em benefício de vantagens particularistas e de curto prazo. Ainda que esta atitude certamente exista, ela se soma a um fenômeno mais profundo, que e a grande descrença que hoje existe em todo o país quanto ao poder real que têm os princípios de racionalidade, mérito e competência técnica para produzir os benefícios econômicos e sociais que todos almejam. Em amplos setores da sociedade, na oposição como no governo, parece ter-se generalizado a idéia de que "os técnicos" já tiveram sua oportunidade e a desperdiçaram - por se isolarem nas torres de marfim de seus gabinetes refrigerados, e por cuidarem sobretudo de seus interesses pessoais e corporativos, antes que dos nacionais. Seria agora chegada a hora dos políticos, que conheceriam melhor a realidade do país, de seu povo, e que por isto poderiam, quando necessário, dizer aos "técnicos" o que fazer.

Esta desqualificação da função pública pela política está ligada, aparentemente, ao fato de que haveria, no Brasil, uma curiosa correlação entre regimes fortes e esforços de racionalizar, reorganizar e valorizar o serviço público, por uma parte; e regimes abertos e o aviltamento da função pública por outra. Por exemplo, existe a idéia de que o Departamento Administrativo do Serviço Público - o DASP, criado em 1938, foi a primeira tentativa realmente seria de dar ao serviço público brasileiro uma organização racional baseada no mérito e competência, em um período de grande concentração de poder no governo federal. A abertura democrática de 1945 teria introduzido, pouco a pouco, elementos de clientela e empreguismo na administração pública federal, diminuindo a capacidade de ação do DASP e colocando em segundo plano todos os seus princípios de racionalização e eficiência. O processo de submissão do serviço público ao jogo político mais imediatista teria atingido seu auge na presidência de João Goulart, o que teria sido uma das causas mais importantes de sua queda(1).

O sistema administrativo brasileiro e reorganizado novamente em 1967, através do decreto-lei 200, que introduz novos princípios e aumenta, mais uma vez, a eficiência do serviço público, ate a crise que hoje, parece existir novamente.

Se esta interpretação dos fatos fosse correta, ela nos confrontaria com um dilema, que colocaria de um lado a administração racional e técnica, associada aos regimes fortes e autoritários, e de outro a administração politizada, deficiente e desmoralizada, que pareceria ser um atributo da democracia e da participação social. No entanto, basta olharmos para os exemplos das democracias pluri-partidárias européias para nos assegurarmos que isto não tem por que ser assim. Na realidade, não existe nenhuma incompatibilidade, em principio, entre sistemas políticos abertos e intensamente disputados e serviços públicos competentes, respeitados e dignificados em suas funções. Mais ainda, os serviços públicos dos países democráticos e pluri-partidários são possivelmente os mais qualificados e competentes do mundo, quando vistos em comparação com as administrações públicas de outros regimes.

Podemos suspeitar, assim, que estamos diante de um falso dilema, baseado em premissas equivocadas. E possível que, tratando de esclarecer estes equívocos, possamos pensar melhor em como manter e fortalecer a competência e dignidade do serviço público brasileiro, no regime político aberto e de ampla participação social que todos queremos construir.

Primeiro equívoco: a "administração científica"

O primeiro equivoco a esclarecer é o de que existiria algo que poderia ser denominado "administração científica", e que o sistema administrativo implantado no pais através do DASP, em 1938, corresponderia a este modelo.

Na realidade, a idéia de que a administração pública e uma atividade eminentemente técnica, sujeita a leis científicas bem estabelecidas, fazia parte da justificação da criação do DASP durante o Estado Novo, e foi sempre utilizada pelos que criticaram e ainda criticam a intervenção da política na administração da coisa pública. Na sua versão extrema, que ate hoje encontra muitos adeptos, existiria um abismo profundo e insuperável entre o jogo das conveniências e dos interesses, que e o da política, e a administração racional e técnica. A intromissão da política na administração, nesta perspectiva, poderia ser ate tolerada, em nome dos princípios mais altos da democracia, mas seria sempre um óbice para a boa execução da função pública.

Para os organizadores do DASP, a necessidade de uma administração pública racional e científica era uma decorrência natural do aumento da responsabilidade do poder executivo nos tempos modernos, particularmente para a direção da atividade econômica. "o direcionismo econômico tornou-se função primacial do Estado moderno", asseguravam. Não havia dúvida quanto à necessidade crescente da intervenção do poder público em todos os setores da atividade nacional, e para isto a racionalização administrativa era indispensável:

"Tal fenômeno (da necessidade de intervenção) traduzia o aumento constante da significação política do poder executivo, obrigado a agir cada vez com maior energia e presteza. Se, antes dessa expansão da esfera da atividade do Estado, a eficiência administrativa era a garantia do bom governo, agora, mais do que nunca, com o aumento da responsabilidade do Estado, ela se tornou o elemento indispensável da ação. Explica-se, destarte, porque o problema da organização do aparelho estatal, no mundo inteiro, passou a ser encarado em toda a sua plenitude, principalmente de 1930 para cá, isto e, quase imediatamente depois da grande depressão econômica mundial iniciada dramaticamente com o crack da bolsa de Nova Iorque. Os governos tiveram que valer-se, também, do concurso indispensável da ciência e da técnica, para a montagem e funcionamento da má- quina administrativa(2)".

A realidade, no entanto, e que e no mínimo duvidosa a existência de uma ciência ou técnica específica que sirva de base para a "montagem e funcionamento da máquina administrativa". É claro que existe uma serie de problemas e questões administrativas que requerem um certo conhecimento técnico, nas áreas de administração de pessoal, de material, sistemas de classificação de cargos e salários, etc. Mas a soma destes conhecimentos não chega a constituir o que muitos pretenderam que fosse uma "ciência administrativa", que permitiria criar no país uma "máquina administrativa", concebida em termos puramente tecnológicos, e alimentada por uma formação científica proporcionada aos administradores em escolas especializadas. Basta examinarmos os currículos dos cursos brasileiros em administração pública para darmo-nos conta de que eles sempre foram, no máximo, uma junção pouco integrada de noções gerais de ciências sociais, direito, economia, contabilidade e algumas técnicas administrativas. Sabemos que os princípios administrativos desenvolvidos por Taylor e Fayol, e que tanta voga tiveram em nosso meio, jamais chegaram a funcionar efetivamente nem mesmo no interior dos sistemas industriais, para os quais foram concebidos; e que devem ser entendidos, antes de tudo, como ideologias empresariais e administrativas para o controle da força de trabalho, e não como "princípios científicos" em si mesmos(3) .

Na prática, a "ciência da administração" difundida pelos defensores da administração científica no Brasil nunca passou de um conjunto mais ou menos bem organizado de noções de sentido comum. Sua principal função não foi a de dar um caráter científico à administração pública, e sim de proporcionar ao governo central um mecanismo de controle sobre seu funcionalismo. Isto foi buscado através da centralização extrema da administração pública, sob a égide do DASP, e da criação de um quadro de pessoal integrado e coerente para todo o país, sujeito a um sistema de classificação de cargos condizente com as diversas qualificações profissionais dos titulares, e regido por mecanismos explícitos de admissão e promoção. Havia certamente a idéia de que, por estes mecanismos, seria possível dotar o país de um serviço público de elite. Mas sabemos que esta tentativa começa a encontrar dificuldades ainda antes de 1945, já que o DASP jamais esteve, na realidade, imune às conveniências políticas do regime a que servia. Um autor que estudou o assunto, Lawrence S. Gralham, observa que "O programa de reforma administrativa parecia ser um importante sucesso, visto de fora; no entanto, quando examinamos os materiais deste período, fica claro que conflitos e oposições às reformas existiam dentro do próprio sistema administrativo. A estrutura administrativa do Estado Novo obscurecia esta situação. Os conflitos entre os conceitos e práticas administrativas tradicionais e os modernos foram simplesmente internalizados."(4)

O conflito que Graham observa é entre os esforços centralizadores do DASP e os procedimentos tradicionais de contratação e promoção de funcionários públicos por critérios de conveniência, por política de clientela. Mais importante do que isto, no entanto, era o fato de que a centralização e padronização que se buscava, se aumentava o poder do governo central sobre as administrações dos ministérios, na realidade retirava do serviço público sua eficiência técnica, o que era contornado pela criação de um sem-número de organizações para-estatais ou autárquicas que, na prática, eram os órgãos pelos quais a política econômica se exercia. Caixas econômicas, sociedades e institutos mistos (Departamento Nacional do Café, Instituto do Álcool e do Açúcar, Instituto Nacional do Mate), empresas públicas de transportes (Estrada de Ferro Central do Brasil, Lóide Brasileiro, Administração dos Portos do Rio de Janeiro e do Pará) e os Institutos de Previdência Social são todas instituições anteriores a 1945, e que já caracterizavam a tendência da administração pública brasileira de criar mecanismos extraordinários e paralelos à administração direta sempre que resultados mais imediatos fossem realmente desejados. (5)

Em sua análise do período posterior a 1945, Lawrence Graham fala da existência, no Brasil, de duas ordens distintas dentro do serviço público brasileiro: uma legal, definida pelas normas centralizadoras e padronizadoras do DASP; e outra "funcional", ou seja, adaptada às necessidades da política de clientela dos partidos políticos dominantes. O resultado da interação destas duas ordens, diz ele, "foi um sistema administrativo que se tornou crescentemente formalístico, no qual a divergência entre as normas prescritas e o comportamento humano aumentava progressivamente"(6) A estas duas ordens haveria que acrescentar uma terceira, formada pelas autarquias, empresas estatais, grupos-tarefa, grupos executivos e outras formas não convencionais de organização do serviço público que eram as que os governos realmente utilizavam para a consecução de seus fins mais importantes.

Na medida em que este processo ia se acentuando, o funcionalismo público, submetido às normas administrativas gerais e centralizadas, ia sofrendo um processo gradual de desmoralização, com os salários corroídos progressivamente pela inflação, e com os funcionários admitidos pelo sistema de clientela destruindo, pela sua simples presença, o que restava de um sistema de mérito que havia sido tentado no passado. O sistema administrativo centralizado tinha ainda uma grande desvantagem, que era a de inibir quase totalmente a ação da administração pública em tudo o que fosse alem das atividades meramente rotineiras. Em contraste, as unidades descentralizadas tinham autonomia financeira, podiam fixar salários por valores competitivos com o mercado privado, e ter a sensação de que desempenhavam uma função socialmente útil.

É claro que este processo foi se dando de forma desigual, e com muitas idas e vindas. Autarquias formadas, a principio, de forma descentralizada e com bastante autonomia, terminaram revertendo aos controles rígidos e formalistas da administração direta. Outros setores do governo foram capazes de manter sua qualidade e competência, ao lado de um forte sentimento de lealdade dos funcionários às suas instituições. É notória, por exemplo, a competência do Ministério das Relações Exteriores em preservar os mecanismos de seleção e promoção de seu pessoal, a partir de uma escola própria que proporciona a seus funcionários uma base de conhecimentos e valores comuns. O Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários é também um exemplo, talvez menos conhecido, de um setor da administração que foi preservado do clientelismo que imperou na maior parte do sistema previdenciário, e deu origem a uma elite administrativa que teve grande impacto em todo o desenvolvimento do sistema previdenciário do país. (7)

As forças armadas brasileiras, desde os anos 30 evoluíram progressivamente no sentido da criação de um forte espírito corporativo e da afirmação do princípio de profissionalização do militar. (8)

O Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico são outros exemplos bastante citados.

Mas o fato de não existir, na realidade, uma "Ciência da Administração" com maiúsculas, não é suficiente para explicar as razões das dificuldades do serviço público brasileiro. Se a "administração científica" não funciona como um corpo formado de conhecimentos, ela pode, no entanto, funcionar como uma ideologia de legitimação de uma administração pública que extrai sua competência de outras fontes. Assim parece ter ocorrido, por exemplo, nos Estados Unidos, de onde as teorias da "administração científica" nos vieram. Para esclarecer melhor a questão, é inevitável que discutamos um pouco as idéias de um autor que é por muitos considerado como um dos principais teóricos da administração racional no passado: Max Weber.

 


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