Antropologia e Internet - Pesquisa e Campo no meio virtual

 

 

Rita Amaral
Dra. em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - NAU-USP

 

Introdução

Durante a sessão de defesa de minha tese de doutorado sobre as festas brasileiras, um dos aspectos mais notados e comentados com grande curiosidade pela banca foi o uso que fiz de dados coletados em fontes da Internet e de conversas e entrevistas realizadas em chats (conversas por computador, em tempo real) com a finalidade de atualizar as informações sobre as festas que estudei nas cinco diferentes regiões do país. Não se questionava a validade ou não do uso destas fontes, que a todos pareceu legítimo, mas compreender mais profundamente de que modo se insere um antropólogo no "campo" virtual, onde categorias básicas do entendimento humano como tempo, espaço, corpo etc, encontram-se "deslocadas" e as pessoas estão, de certa maneira, "homogeneizadas" em sua presença na tela do monitor do computador. Por esta razão, apresento neste artigo algumas idéias e informações sobre as condições de pesquisa utilizando computadores e a rede Internet.

Se muitos antropólogos ainda não consideram o computador como um instrumento de pesquisa, a maior parte de nossa "tribo" já utiliza com familiaridade seu computador pessoal como processador de texto e boa parte dela também como via de acesso à Internet para enviar mensagens eletrônicas (e-mails) para os colegas . Tem-se deixado, entretanto, de explorar os recursos do computador como instrumento de pesquisas, e não apenas para a organização e análise estatística dos dados que recolhemos em campo (quando dominamos a operacionalização dos programas -softwares- indicados para estas finalidades). O que pretendo levantar como tema de discussão aqui é o fato de que, devido à imensa versatilidade advinda não apenas da simplificação do uso dos programas, mas também das novas facilidades de acesso à rede Internet, os computadores podem e devem ser usados efetivamente para a realização de pesquisas qualitativas pelos cientistas sociais.

O reconhecimento da pesquisa qualitativa como uma atividade sistemática e o desenvolvimento de programas de pesquisa interdisciplinares têm chamado a atenção de alguns acadêmicos (especialmente norte-americanos, para os quais o acesso à tecnologia informática se deu bem mais cedo e certamente com custos muito menores), para o uso do computador como um auxiliar também nas pesquisas na área de antropologia e em sua publicação, especialmente nos últimos dez anos, com a expansão e popularização do acesso à Internet (Anderson, 1990; Bernard, 1994; Chesebro, 1989; Hudson, 1990; Jones, 1995) O tipo de dados (qualitativos) nos quais um pesquisador pode estar interessado (textos, falas, música, filmes, fotografias e outros tipos de comunicação) vêm se tornando cada vez mais digitalizáveis e, desse modo, passíveis de serem transmitidos via modem entre computadores, ou postados e capturados na rede Internet. Com isso, os computadores podem transformar, em alguns sentidos, o modo pelo qual a pesquisa qualitativa vem sendo feita e, até mesmo, sugerir novas pesquisas sobre o próprio uso da Internet como fonte de dados ou como espaço de relacionamento entre grupos.

A partir de minha experiência de pesquisa foi possível constatar que o uso do computador e da rede Internet pode ajudar a solucionar alguns dos problemas práticos durante as várias fases de uma pesquisa: desde a coleta de dados até a apresentação. Pode-se discutir se o uso do computador é possível na fase de análise, a mais árdua delas. Não creio que possa responder a esta questão neste artigo, uma vez que em minha pesquisa, esta fase não se fez, de fato, com o uso do computador, o que também não significa, segundo entendo, que não possa ser feito. É possível, por exemplo, pensar na utilidade da discussão de nossas conclusões com pesquisadores diversos via e-mail ou chat. Deixo em suspenso, portanto, esta discussão. Em outras fases da pesquisa, contudo, o uso do computador pode ser de grande ajuda e não deve ser desprezado.

 

A Internet como fonte de dados

Um dos primeiros usos da rede Internet numa pesquisa antropológica pode ser feito já durante a elaboração de um projeto de pesquisa. Se o pesquisador tem uma investigação em mente, ele pode usar a rede para consultar as várias bibliotecas do mundo e verificar o que existe sobre seu tema de pesquisa. Em algumas bibliotecas é possível solicitar o envio de cópias pelo correio, debitando-se seu custo no cartão de crédito internacional. Em outras pode-se simplesmente transferir, via modem, para o computador pessoal, o arquivo que se encontra compactado e disponível nas bibliotecas para isso. Tendo transferido para seu próprio computador o arquivo desejado (que pode ser uma tese, um livro, a digitalização de um quadro, um mapa antigo, músicas, depoimentos etc), basta descompactá-lo (os arquivos são comprimidos para tornar sua transferência via modem mais rápida) e imprimi-lo, poupando meses, até, na busca e aquisição de um texto ou qualquer outro dado. Alguns sites de instituições, como o do Projeto Gutemberg, o WebMuseum e alguns sites universitários, também mantêm vários textos e digitalizações das imagens disponíveis para download.

O que faz do computador uma ferramenta importante para o pesquisador é principalmente sua capacidade de rearranjos constantes: os únicos limites são dados pelas características da máquina e dos acessórios que ela possui (hardware) e, mesmo assim, pode-se sempre fazer melhorias (upgrades) num computador, sem precisar substituí-lo, além de acrescentar novos acessórios e aumentar a capacidade de armazenamento de dados sempre que necessário. Várias novas funções dos computadores estão sendo popularizadas (gravação de sons digitais, imagens, captação de programas de televisão, etc.) e seu papel na pesquisa vem se tornando menos o de uma máquina de escrever sofisticada ou de uma calculadora e bem mais o de um ativo assistente de pesquisa.

O pouco uso que pesquisadores da área de ciências humanas vêm fazendo do computador e da Internet como meio de acesso a fontes de dados talvez se deva ao fato de que até bem recentemente não havia meios suficientes (e simples) de localizar e coletar (transportar) os dados. Com o desenvolvimento da rede Internet o número de bancos de dados vem aumentando rapidamente e hoje em dia dificilmente se pensa num tema sobre o qual não haja dados disponíveis de alguma forma, por via telefônica, na Net. Existem páginas e páginas (sites) sobre qualquer tema, sem falar nas facilidades oferecidas pelos jornais eletrônicos (do Times ao Le Monde, da Folha de São Paulo ao Diário de Borborema), livros sagrados digitalizados, livros-arquivos para serem copiados e impressos, poesia, literatura, museus com obras de artistas do mundo todo, dados de órgãos governamentais, sites de letras clássicas, mitologias, universidades etc. Todo tipo de informação está acessível na Net ou através dela. Entidades financiadoras como a FAPESP, o CNPq, a Ford Foundation, além de várias outras instituições, disponibilizam informações, dados, e até mesmo os formulários para download e impressão em nossa impressora, em casa, poupando tempo e dinheiro em questões burocráticas.

Não se pode fugir, pelo menos enquanto não entra em funcionamento a Internet II (de exclusivo uso acadêmico) à chateação (para o antropólogo, mas não, por exemplo, para o publicitário) de ter que passar por páginas comerciais, experiências multimídia e outras que tomam nosso tempo quando estamos em busca de algum dado específico. Estas páginas são compostas em geral de fotos trabalhadas ou com interferências criativas, e não de fotos documentais, das coisas "como elas são". Mas podem constituir excelente material de pesquisa em antropologia visual, fotografia, semiótica e outras.

Uma vez que os dados estão digitalizados e capturados, o computador pode ser usado também para percorrê-los, reduzi-los, extraí-los, administrá-los, analisá-los e revelar sentidos, padrões. Alguns pesquisadores americanos começaram mesmo a desenvolver um corpus de conhecimento e softwares na última década. Já existem programas que podem realizar algumas das tarefas "braçais" da pesquisa de certos aspectos da cultura, como etnolinguística, etnomatemática, etnobotânica etc., que exigem classificações, contagens, acesso a fichas etc. E ainda, como a pesquisa qualitativa tem necessidades especiais, e mesmo considerando o pequeno mercado, já existem pelo menos dois programas especialmente desenvolvidos para responder a estas necessidades relacionadas à administração de dados das pesquisas de campo. Estes programas apesar de já um pouco antigos são pouco conhecidos no Brasil e, devido ao fato de que os antropólogos constituem um grupo muitíssimo menor do que o das áreas de exatas e biológicas, programas como Etnograph e Kwalitan, até onde pude saber, têm muito menos suporte (assistência operacional), menos documentação, pouca atenção para o feedback do usuário, interfaces (modo de operação, na tela) pobres e maiores períodos sem atualizações do que programas como, digamos, os browsers (páginadores-- programas de acesso à Internet). Eles em geral são escritos por pesquisadores solitários e não por equipes de programadores profissionais e, assim, tendem a ser infestados de bugs (problemas de programação), incompatibilidades e necessidade de aperfeiçoamento.

Nos textos postados na Usenet , nos BBSs, nas listas de discussão e a WWW (World Wide Web ), um pesquisador interessado em coletar dados e opiniões sobre assuntos específicos não encontrará grandes dificuldades. Os mecanismos de busca como Yahoo, Altavista, Lycos, Cadê?, entre centenas de outros, tornam possível, por exemplo, encontrar todas as mensagens sobre certos assuntos (folclore, ateísmo, doenças, esoterismos, religiões, negócios, política e milhares de outros) que foram trocadas nas redes de mensagens nos últimos dias. Um dos problemas a serem enfrentados, entretanto, é o de que muitos destes dados textuais são efêmeros. Nem todos eles são arquivados pelos provedores e, assim, o pesquisador pode coletar tudo que foi escrito sobre um determinado período em que está acompanhando uma lista de discussão sobre homossexualismo, por exemplo, mas é quase certo que não poderá ver como as atitudes a respeito deste tema especifico mudaram em alguns anos.

Outra situação comum é as pessoas (especialistas ou não) criarem sites com seus próprios textos e informações na Net e que desaparecem quando o site muda de endereço (URL ), quando o provedor fecha ou o responsável pelo site simplesmente não quer mais pagar a hospedagem de suas páginas ou mesmo já não deseja mais mantê-la. Quem acessa a Internet freqüentemente conhece o famoso "Error 404- File Not. Found", que indica que alguma página que anteriormente se encontrava ali já não pode ser encontrada. A armazenagem de dados para a infinidade de material postado na Net (bilhões de palavras aparecem nas mais de cinco mil listas de discussão da Usenet por dia), apesar de não ser cara, não é gratuita, e o custo para arquivar tudo isso seria astronômico. Em qualquer caso, quem começa uma pesquisa procurando dados na Internet deve saber que eles devem ser garimpados com a mesma paciência de quem procura no sebo os livros "certos".

Todas estas vias podem ser utilizadas, portanto, para verificar a existência de dados, a pertinência de um problema proposto pela pesquisa, para contatar informantes e outros pesquisadores etc. Em minha pesquisa sobre festas no Brasil, utilizando estes recursos encontrei centenas de sites brasileiros sobre festas locais e de outros países, produzidos pelos próprios "festeiros", com dados qualitativos, quantitativos, fotos (que pude inclusive usar em minha tese depois de pedir autorização, via e-mail, aos webmasters responsáveis) e sons, dados governamentais como os da Embratur e seus projetos de incentivo ao turismo através das festas e outros sites, menos significativos, administrados por empresas de turismo que contudo, em conjunto, também constituíam um dado importante. Havia ainda sites europeus sobre folclore e temas afins. Livrarias online como a Booknet, brasileira, e a Amazon.com ajudaram a conseguir livros difíceis de encontrar em São Paulo e/ou Brasil, a preços vantajosos, entregues em casa, com pagamento através de cartão de crédito. Até mesmo sebos puderam ser consultados online, como o Sebo Brandão, ao qual se pode consultar via e-mail sobre a existência ou não de um dado livro em seu estoque e, se houver e o preço interessar, solicitar o envio a qualquer parte do Brasil ou do mundo. Gallimard, Barnies e outras importantes livrarias internacionais também mantém seus sites de venda online com catálogos atualizados constantemente. Existem, ainda, inúmeros Dicionários e Enciclopédias Online, que podem fornecer dados de várias espécies.

Todos estes recursos são bastante úteis durante a elaboração e realização de um projeto de pesquisa e poupam tempo e dinheiro do pesquisador e da pesquisa. E embora existam poucos sites efetivamente dedicados à Antropologia, já se discute este potencial, nos meios acadêmicos internacionais:

There are notably no established electronic journals, ethnographic databases, photographic archives, or on-line courses or textbooks. Major institutions, including the AAA and the HRAF, seem to be unaware of the new possibilities for scholarly communication. This situation may be temporary, and we may be on the verge of an explosion of Internet development. However, several barriers confront future development. These include the problems of obtaining training and achieving proficiency in new skills, gaining and ensuring access to new resources, and assigning and protecting academic credit for new publication forms. (Schwimmer, 1996:566).

 

 

O "Campo" Virtual

O "campo virtual" é composto, além dos sites especializados, acadêmicos ou paralelos, por milhões de páginas criadas por grupos de interesse e de identidade, que se apresentam e se comunicam globalmente através da Net. Grupos religiosos (budistas, evangélicos, católicos, islamitas, afro-brasileiros, afro-cubanos, protestantes históricos e outros), por exemplo, têm seus sites na Internet e dialogam com seus fiéis e outros, mundialmente, através da rede, que se tornou, deste modo, um novo campo e novo meio de proselitismo, atestando a modernidade sendo absorvida até mesmo pelas religiões mais tradicionais. Esportistas, artistas, gays, lésbicas e bissexuais, deficientes, negros, mulheres, capoeiristas, punks, darks, skin-heads, neonazistas, torcidas de futebol, sambistas, roqueiros, góticos, adolescentes, naturalistas e nudistas, idosos, pacifistas, comunistas, necrófilos, pedófilos, sadomasoquistas, índios americanos, rastafaris, motoqueiros, corredores, e toda a infinidade de categorias que se possa imaginar são encontráveis na Net. Sites com a história de formação dos grupos, dissidências, novidades etc. são também comuns dentro de cada categoria.

Os grupos geralmente mantêm também, além de suas páginas, listas de discussões (mailing lists) sobre seus temas prediletos e outros que se refiram diretamente a eles. Para fazer parte de uma lista, como alguém que troca idéias ou apenas como leitor (chamados pelos grupos de lurkers), é necessário ter o endereço da lista escolhida (geralmente disponível nos sites dos grupos ou facilmente localizável em mecanismos de busca), e subscrevê-la, enviando-lhes um e-mail . A subscrição das lista em geral é gratuita, como quase tudo na Internet, embora algumas sejam restritas a convidados.

Os grupos de discussão que se comunicam via mailing lists também podem ter um canal de conversa próprio, em tempo real, via IRC (International Relay Chat - bate-papo internacional, que funciona também em nível local). A estes grupos, quando abertos (pode-se optar por ter um grupo fechado), qualquer pessoa tem acesso, bastando para isso que tenha instalado em seu computador o software próprio de acesso ao IRC. Nos servidores internacionais se "fala" inglês. Mas também é possível acessar servidores locais, como os franceses, árabes, africanos, brasileiros ou japoneses, entre outros, se se souber escrever no idioma nativo. Cada servidor de IRC se subdivide em cerca de 1000 outros canais, entre privativos e públicos. Neles, pode-se usar o nome real ou um pseudônimo, o que muitas vezes se faz necessário, devido ao excesso de nomes repetidos, que o sistema não aceita. Os servidores de IRC não permitem, também, o total anonimato dos usuários, como acontece nos chats de empresas como a Compuserv, América Online ou Universo Online, para citar um exemplo brasileiro, pois indicam publicamente o protocolo da conexão (número que indica o provedor de onde se está conectando ) o que permite, em caso de transgressões ou problemas mais sérios, saber de onde partiu uma dada ligação.

Por ser um espaço virtual onde as pessoas estão minimamente identificadas, conversar por IRC com um grupo pode ser um modo interessante de inserção na rede e de se conseguir informações. É claro que não se deve esquecer que estas informações estão classificadas, de antemão, dentro de uma faixa específica de informantes com relação a alfabetização, classe social (não é necessário ser o proprietário de um computador-- muitas pessoas que trabalham neles, durante o dia ou à noite, além de estudantes que conectam de dentro de suas universidades, estabelecem algumas pausas no trabalho para a troca de conversas e e-mails, ou para navegar em busca de assuntos de seu interesse etc.), raça, gênero, localização geográfica etc. Ainda assim, em determinadas pesquisas é perfeitamente possível estabelecer-se interlocuções produtivas com os usuários da Internet.

É claro que o uso deste recurso como meio de investigação requer discussões e algumas reelaborações de conceitos antropológicos, como por exemplo os de "campo", de "familiaridade com o grupo", "chegar ao campo", "deixar o campo" e, principalmente, o de interação pesquisador/pesquisado, já que não parece possível, por exemplo, entrevistar alguém na Internet sem que este alguém saiba exatamente qual a finalidade da entrevista e de que modo será usado seu depoimento. De qualquer modo, parece claro que o conceito de cultura se aplica a estes grupos que se reúnem e mantém uma vida em comum através da comunicação via Internet.

Alguns pesquisadores (sociólogos e psicólogos, geralmente) vêm tentando usar as listas de discussão para distribuir surveys e questionários, mas este procedimento parece pouco produtivo, pois poucas pessoas respondem ou respondem apropriadamente, afinal esta não é a finalidade primeira de uma lista de discussão. Outros pesquisadores também têm tentado usar o e-mail para conduzir entrevistas, mas como este procedimento é assincrônico, perde-se na interatividade que uma entrevista informal, não-estruturada pode ter. Não se pode modificar as questões da entrevista com base na resposta da pessoa, por exemplo. O chat parece melhor para esta finalidade, pois permite uma conversa interativa em tempo real. Se o pesquisador e os entrevistados tiverem um microfone é possível, até, conversar usando voz, em vez de texto, o que cada vez é mais comum. Por que não, então, o telefone? Porque o acesso Internet permite falar de longas distâncias e internacionalmente pagando-se apenas tarifas locais, entre outras vantagens. Também a teleconferência, que já começa a ser usada por empresas, pode recuperar, num futuro muito próximo, dimensões que se perdem numa entrevista via IRC ou e-mail, como a expressão e a aparência dos participantes, já que uma câmera captura a imagem e, um microfone, o som. Mas o pesquisador ainda perderá aquela centena de sutilezas paralinguísticas que vêm da pessoa entrevistada, como os tiques pessoais, gestos etc.

Pessoas que estão navegando durante os fins de semana ou de madrugada, em geral estão dispostas a conversar, embora o pesquisador deva considerar, sempre, que o acesso à Internet é pago em número de horas gastas pelos usuários; portanto, tomar o tempo de alguém, a menos que este se demonstre interessado no que se pretende propor como tema de conversa não é de bom tom. E como em qualquer campo, também no "campo virtual" o antropólogo deve ser cuidadoso ao entrar em contato com os informantes num canal de chat (equivalente a uma "sala", que é inclusive o nome que se dá, em muitos IRCs, aos canais) e introduzir perguntas estranhas ao que está sendo dito naquele momento pelos participantes. Também no "mundo virtual" é preciso estabelecer relações com as pessoas aos poucos, tornar-se parte do grupo, cativar sua confiança e ser aceito por ele para que as pessoas se disponham a perder seu tempo com você e seus interesses. Os "ïnternautas" não estão disponíveis a qualquer momento e a Net possui vários meios e critérios de inclusão e exclusão. Se a pessoa se torna inconveniente durante uma conversa, facilmente será "quicada" (expulsa, desconectada) do chat, que inclui esta possibilidade no menu. Ela também é usada sempre que um "novato" entra num chat. Esse procedimento é considerado um "batismo" e um teste para o senso de humor das pessoas, não sendo conveniente esbravejar quando se retorna ao canal.

Durante minha pesquisa, quando iniciei os contatos com pessoas que moravam nas regiões onde aconteciam as grandes festas que estudei, tive que conversar muito sobre computadores, rock, minha vida pessoal, antropologia em geral, o objeto de meu estudo, por que razão queria estudar festas etc., antes que fosse possível entrar no assunto como entrevista propriamente dita. Os internautas são, em geral, gente altamente informada, mesmo se apenas sobre temas de seu interesse. E como "viciados em informação" tentam saber tudo que puderem tanto sobre a pesquisa e suas implicações quanto sobre o interlocutor e sua vida pessoal. Percebe-se claramente uma certa "desconfiança" no primeiro momento dos contatos, uma vez que a Net permite às pessoas, em alto grau, a criação de "personas " e de fantasias pessoais o que, segundo penso, apesar de bem raro entre as pessoas que conheci nestes cinco anos de uso da rede, pode constituir problema para algumas pesquisas. No meu caso, entretanto, como se tratava de um assunto já por si de caráter público (e minhas perguntas versavam sobre os acontecimentos das festas, lugares, mitos, eventos, políticas etc.), todos se sentiam qualificados, autorizados e, pelo que pude entender, bem à vontade para falar. Não sei dizer se pesquisas sobre temas que proponham aspectos em que a intimidade dos informantes precise ser desvelada podem conseguir o mesmo retorno. Acredito que sim, pois as pessoas que se conhecem durante longos períodos pela Net, tendem a falar sobre os temas de modo mais aberto, franco, revelando aspectos sensíveis e íntimos que poucas vezes se imagina conseguir fora da comunicação eletrônica. Criam-se laços afetivos de fato, a partir do encontro de afinidades. Segundo Suler (1996), a Internet é um espaço psicológico, que favorece a exploração pessoal e grupal de emoções e identidades, capaz de criar novos comportamentos, propiciando inclusive o desenvolvimento de maior confiança entre as pessoas. Storch (1996) assídua internauta que juntamente com um psicólogo escreveu um dos primeiros livros brasileiros sobre o mundo das relações virtuais no Brasil diz:

"Em busca de aprovação, de reconhecimento e sem as pressões sociais e profissionais, as pessoas se tornam mais acessíveis. Com uma roupa confortável, ouvindo música ou com o outro olho no aparelho de TV, no horário mais conveniente, cada um se torna aberto para se comunicar e transformar esses contatos em momentos de lazer e prazer. Mais confortável que o telefone, pois não é necessário que o outro esteja conectado ao mesmo tempo. Cada um acessa no momento e no lugar que escolher e só isso já diminui muito o stress inerente aos encontros pessoais" .

Mesmo para pesquisas em áreas indígenas ou rurais, de um ponto de vista prático, o uso dos computadores e da Net na pesquisa de campo pode se mostrar relevante. Como os computadores têm se tornado cada vez mais leves, portáteis (lap-tops e palm-tops) e poderosos em sua capacidade de comunicação e de armazenamento de dados, tornam-se mais úteis até mesmo para pesquisadores em campos longínquos. Com um pequeno cartão-modem inserido num palm-top é possível o acesso à rede via telefone celular e, através de um pequeno microfone ou de um microfone e uma micro-câmera, o antropólogo pode facilmente falar com sua família, amigos e colegas, vê-los e ser visto, mesmo estando num distante povoado onde a eletricidade e a telefonia ainda não chegaram. O antropólogo já não precisa estar isolado no campo, longe de sua cultura, como Malinowski entre os trobriandeses, conforme lembra ao leitor nas primeiras páginas de "Os Argonautas do Pacífico Ocidental". Estar no campo, na era dos computadores, já não implica, necessariamente, estar isolado e emocionalmente fragilizado, por exemplo, pelas ausências ou falta de comunicação.

Como se vê, a pesquisa qualitativa na Internet não sofre, portanto, da falta de textos, imagens, sons e nem, principalmente, de pessoas vivas ou emoções. A necessidade de exprimir as emoções por escrito fez surgir o que os internautas chamam de emoticons (ícones de emoção), que constituem verdadeira pontuação nos textos da Internet. Ri-se, faz-se ironias, zanga-se, fica-se envergonhado, chateado, cansado e chora-se por escrito. Enviam-se flores virtuais, chocolates, músicas, poesias ou também vírus quando as coisas "vão muito mal" entre as pessoas.

 

Observação Participante

Como em todas as sociedades e culturas, a "cultura cibernética" do mundo virtual, criou vários tipos de rituais, jargões e códigos fazendo com que a inserção do antropólogo nesta "sociedade virtual" implique o aprendizado destes códigos (um deles chamado Netiqueta - etiqueta da Internet, que determina o que é adequado e o que não é na troca de mensagens em tempo real ou não) e do "internetês". É preciso aprender a usar programas específicos para fazer coisas, como enviar via modem, para alguém, um arquivo que você comenta que tem e o outro lhe pede, pois não é educado pedir o endereço residencial de alguém para enviar textos de papel. E logo será necessário aprender a anexar arquivos em mensagens, a conectar seu computador com o do informante diretamente, a usar o TELNET , FTP e a conviver no mundo virtual em termos de suas categorias, aprendendo a fazer o que fazem todos, como em qualquer processo de observação participante. Os internautas são imensamente pacientes em ensinar a lidar com o meio técnico-virtual. Mas é preciso, ainda, aprender conceitos como os de privacidade na Internet, tempo na Internet, expectativas pessoais.

Para algumas pessoas, apenas o relacionamento virtual pode não ser suficiente, e implicar a necessidade de algum grau de relacionamento fora da rede, ou, como se diz na Net, IRL (In Real Life), mantendo contatos pessoais com seus interlocutores, especialmente se isso faz parte dos hábitos do grupo com os quais se relaciona. O pesquisador deve considerar se isto é conveniente ou não no caso de sua pesquisa, lembrando que este procedimento pode ser dispendioso e até impraticável, considerando-se que as pessoas que se encontram na Net nem sempre estão no mesmo lugar que as outras (a menos que o grupo que se estuda seja local). No caso de minha pesquisa, um encontro com os informantes da Net seria impossível sem grandes deslocamentos de todos, pois alguns eram do Pará, outros de Amazonas, de Pernambuco, Santa Catarina, Goiás e nenhum de São Paulo, cidade onde vivo.

Um dado interessante é que, em muitos casos, na Net, é possível observar sem participar, como nas listas e chats públicos (como lurker, espreitador, categoria vista com desconfiança, embora quase sempre ignorada). No entanto, o pesquisador ficará restrito, não dominará o código facilmente e provavelmente não entenderá o que constitui essa cultura internética tão cheia de novos modos de relacionamentos. No entanto, a pura observação pode uma ser uma estratégia a ser conjugada com outras, de participação direta. Observa-se uma lista, por exemplo, e participa-se de um chat com os membros do grupo estudado.

 

Citação das fontes

Um problema que se colocava até bem pouco tempo, com relação às fontes de dados da Internet, dizia respeito a como citá-los. Nem tanto com relação aos sites, cujo URL é facilmente citável, mas à autoria dos textos que neles aparecem, poucas vezes assinados. Outro caso é o de como citar informações colhidas em mailings lists, BBS, mensagens pessoais. Como indicar a autoria de fotos, sons, filmes ou animações quando elas não estão assinadas? E como lidar com o problema da retirada de uma certa página do ar? Já existem várias propostas, na própria Net, de como citar fontes, produzidas por profissionais competentes e parece haver consenso sobre a maioria dos critérios. Entre os trabalhos de profissionais brasileiros que indicam como citar estas fontes está o de Gevilácio Moura que elaborou uma proposta de normas para a Associação Brasileira de Normas Técnicas. Entre outras coisas, Moura recomenda que se grave e imprima as páginas, anote-se o endereço e a data em que foram capturadas, no caso das páginas de sites ). Uma solução utilizada por mim foi a de enviar um e-mail ao responsável pela página solicitando as fontes. Para minha surpresa, poucas vezes eles mesmos sabiam quem era o autor da foto e sim a quem pertencia a cópia digitalizada. Por esta razão fui autorizada a usá-las apenas na tese e não em futuras publicações em papel.

Os informantes dos IRCs e outros chats podem ser citados normalmente, desde que consultados sobre se desejam isto e estejam sabendo com que finalidade vai ser usada sua fala. Várias outras propostas de normatização de fontes da Internet podem ser encontradas na própria rede, usando-se os mecanismos de busca. A questão é, entretanto, uma das mais importantes e discutidas pelos acadêmicos, cujo patrimônio consiste, exatamente, nas idéias e publicações. Ao mesmo tempo em que reconhece-se a extrema importância da publicação em hipertexto e multimídia, da ampla divulgação das idéias, do enriquecimento das apresentações, pensa-se como evitar plágios, como obter direitos autorais e na perda da autoridade profissional, inclusive:

"On-line instructional material and research resources will counteract the hierarchical professor-student relationship, and faculty will become mentors rather than authorities. Furthermore, the limitless potential for electronic distribution will make it easier for younger scholars and even graduate students to publish. In sum, a new social order will emerge marked by egalitarianism and collaborative scholarship" (Schwimmer, 1996:566).

Como se vê, se a coleta de dados e as "etnografias" podem se valer de modo extremamente positivo da riqueza de informações existentes na rede mundial Internet e constituir uma técnica viável para pesquisas antropológicas, as várias dimensões das pesquisas, abordagens, dos novos modos de publicação e mesmo suas influências sobre as carreiras do pesquisadores e dos modos de se aprender antropologia precisam começar a ser pensados a fim de se tornar esta prática legítima, eficiente, socialmente positiva e ética.

 

Bibliografia

  • Anderson, Ronald & Brent, Edward E. Jr., Computer Applications in the Social Sciences, Philadelphia, Temple University Press, 1990.
  • Bernard, H. Russell and Adam, M. Evans. "Word processing, office drudgery and the microcomputer revolution". In Technology and Social Change, 2 ed. H. Bernard and P. Pelto. Prospect Heights, Il Waveland Press, 1987.
  • Bernard, H. Russell, Research Methods in Anthropology: Qualitative and Quantitative Approaches, SAGE Publications, Thousand Oaks, 1994.
  • Chesebro, James & Bonsall, Donald. Computer-Mediated Communication: Human Relationships in a Computerized World, New York, Univ. of Alabama Press, 1989.
  • Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
  • Hudson, Judith & Atkinson, Steven D. Women Online: Research in Women's Studies using Online Databases, New York, Haworth Press, 1990.
  • Jones, Steven G., ed.; CyberSociety: Computer-Mediated Communication and Community, SAGE Publications, Thousand Oaks, 1995.
  • Moura, Gevilácio A. C. de. "Citações e referências a documentos eletrônicos". [online] Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.elogica.com.br/users/gmoura, 25/06/1996.
  • Schwimmer, B. "Anthropology on the Internet Journal" In: Chicago Current Anthropology, Chicago, V. 37, N.3, June, 1996.
  • Storch, Lea e Cozac, João Ricardo. Relações Virtuais - O Lado Humano da Comunicação Eletrônica, Petrópolis, Vozes, 1996.
  • Suler, John. "Teaching Clinical Psychology" [online] Disponível na Internet via WWW. URL http://www.rider.edu/users/suler/psycyber/psychspace.html
  • Zeitlyn, David. "Reconstructing kinship or the pragmatics of kin talk".In: MAN n. 28: 1993.

 

Rita Amaral
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