Brasil: a nova cartografia social

Enviado por Simon Schwartzman


 * Preparado para apresentação no CEBRAP, 20 de junho de 1997. Os conceitos representam a visão pessoal do autor, e não a do IBGE ou do governo brasileiro.

A divulgação estes dias do novo Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas reafirma o quadro pouco animador a situação social brasileira: somos o de número 68 no mundo em desenvolvimento humano, um pouco acima do Equador e da Turquia, um pouco pior que Líbia e Tailândia, muito abaixo de Chile, Costa Rica, Argentina, Uruguai. Existem alguns problemas metodológicos já admitidos nestes cálculos, em relação às estimativas de renda per capita e a expectativa de vida. Corrigido isto, estaríamos um pouco melhor para o ano de 1994, que é de quando são os dados, por comparação com 1993, e não pior; e melhor ainda em 1995, com os impactos positivos do Plano Real. Mas não é muito consolo: nossa distribuição da renda continua sendo das piores do mundo, temos situações de pobreza ainda extremamente graves, um sistema de proteção social em crise, e uma economia com expectativa de crescimento modesto nos próximos anos. Não há nada de novo, então? Não há nada a fazer?

Eu gostaria de argumentar, nesta apresentação, que existem coisas novas e importantes ocorrendo na área social, e que há muito que pode ser feito, mesmo com as limitações de recursos existentes. Mas que a situação social brasileira não tem equacionamento fácil, e estamos nos aproximando de um novo conjunto de problemas, para os quais estamos pouco preparados. Ao final, procurarei apresentar algumas idéias sobre o que e sobretudo como fazer, para efeito de discussão.

As quatro agendas

Uma das principais dificuldades que temos é que existem, neste momento, diferentes agendas de política social e econômica, impulsionadas de dentro e de fora do país, e de forma muitas vezes antagônica e contraditória. Para ordená-las de alguma maneira, poderíamos denominá-las de "agenda da pobreza", "agenda social-democrática", "agenda do desenvolvimento nacional" e a "agenda da competitividade internacional". Estas agendas correspondem a diferentes preocupações e prioridades de setores significativos da sociedade brasileira sobre o desenvolvimento do país, que são buscadas de forma simultânea com outras agendas mais privadas, ou de interesse político-partidário estrito, orientadas para a redistribuição e apropriação dos recursos públicos, quer através dos mecanismos oligárquicos da política tradicional, quer através de novas formas de populismo.

As três transições

Esta superposição de agendas e reivindicações, que se traduzem em demandas crescentes e contraditórias sobre os recursos públicos, se dá em um momento em que o país passa por uma transição social extremamente importante, que coincide com um momento de transição também importante e peculiar na área econômica.

A primeira transição é a transformação do Brasil, de uma sociedade rural, em uma sociedade predominantemente urbana. A formação de centros urbanos significativos é uma característica histórica importante dos antigos impérios patrimoniais (basta contrastar os centros urbanos da América Latina com os da América do Norte até o século XIX para darmo-nos conta disto). Nas últimas décadas o processo de transferência das populações do campo para as cidades se acentuou de forma dramática, não só pela atração dos polos urbanos, mas sobretudo pela reorganização e transformação dos sistemas tradicionais de uso e exploração das terras. Hoje, o ciclo de imigração da população rural para as grandes cidades já está praticamente concluído, ainda que as periferias de algumas áreas metropolitanas ainda continuem crescendo. No campo, o que se observa é uma redução importante no número de pequenas propriedades e de formas tradicionais de organização econômica, e sua substituição pela agro-indústria, pelas grandes criações de gado, por diferentes formas de trabalho assalariado e, em algumas regiões, por cooperativas e associações entre pequenos proprietários e grandes firmas responsáveis pela industrialização de determinados produtos, como o frango ou o leite.

A segunda transição importante é a transição demográfica propriamente dita. Seu aspecto mais dramático é a grande queda das taxas de crescimento populacional, que hoje já devem estar abaixo dos 1.5 ao ano, conforme os resultados preliminares da contagem populacional de 1996, chegando a próximo de 1% nos Estados mais desenvolvidos, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná, e outros do Nordeste, como Bahia e Pernambuco. Esta queda da taxa de crescimento se explica, sobretudo, pela entrada de mulheres no mercado de trabalho, e pelo próprio avanço da transição do campo para as cidades. Seu principal efeito é uma mudança radical na estrutura etária da população, com um período próximo em que a proporção de adultos em condições de trabalhar em relação ao número de velhos e crianças será muito favorável, (requerendo, no entanto, a criação de cerca de 30 milhões de novos empregos nas próximas décadas), evoluindo depois para um quadro de população idosa crescente, com os custos e problemas sociais associados a isto.

A terceira transição ocorre na esfera econômica, e sua característica principal, do ponto de vista das políticas sociais, é o esgotamento da capacidade do governo federal, e também dos governos estaduais, de fazer face às demandas crescentes por redistribuição de recursos ou sua utilização em programas sociais. As razões deste esgotamento são conhecidas: o crescimento desordenado e irresponsável das burocracias públicas nas diversas esferas de governo, financiado pela inflação e congelado pela Constituição de 1988; o aumento progressivo de custos fixos, como salários do funcionalismo público, previdência social e saude; os altos custos do financiamento da dívida interna e externa; e a necessidade, ainda não devidamente equacionada, de reduzir o déficit público para garantir a estabilidade da moeda. Esta situação se torna ainda mais difícil pelos baixos níveis atuais de crescimento da economia, só compensados, em parte, pela redução das taxas de crescimento da população.

O resultado destas três transições é que, embora os problemas decorrentes da agenda da pobreza não tenham se reduzido, e tenham até mesmo aumentado sua visibilidade, as demandas relativas à agenda social-democrática têm aumentado de forma significativa, em um momento em que a capacidade do governo em atendê-las é limitada. O que é possível, no entanto, é tratar de melhorar de forma substancial a maneira pela qual os recursos públicos são utilizados.

 


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