Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagen (*)

 

 

Resumo

Este trabalho analisa várias versões recolhidas em trabalho de campo sobre a história de um bairro carioca. Apresenta diferentes reconstruções históricas sobre sua origem, data e local de fundação, atores envolvidos e modo de expansão. Examina aspectos de sua história que são ressaltados com o objetivo de valorizar o que seriam suas origens proletárias ou de classe média, seu surgimento em torno de um clube ou de uma igreja, sua integração em uma área industrial ou seu caráter de bairro residencial isolado dos bairros populares em torno. Demonstra como essas versões articulam-se à percepção das fronteiras do bairro que podem ser mais largas ou mais estreitas do que as definições oficiais, incorporando ou excluindo as áreas proletarizadas e as favelas da região. Por fim, examina como estas reconstruções históricas se articulam às biografias dos principais atores do bairro, analisando o entrelaçamento entre o resgate da memória e da história do bairro e a postulação de quem pode legitimamente nele, para e por ele falar.

Descriptores Temáticos: historia; memoria social; biografia

 

O Grajaú, hoje

O Grajaú, bairro situado na zona norte do Rio de Janeiro , próximo à Tijuca, é usualmente referido como um local muito aprazível, com casas ajardinadas, ruas largas e arborizadas e clima agradável. Com uma área de 584,2 hectares e 37.609 habitantes , é um bairro residencial, valorizado por seus moradores por conservar elementos de cidade do interior em suas relações de vizinhança e na tranqüilidade de suas ruas.

Desfruta de um pequeno comércio (supermercados, açougues, quitandas, padarias, farmácias, armarinhos, lojas de ferragem, de animais, papelarias, etc.) e de alguns serviços (bancos, escolas e creches, academias de ginástica, cabelereiros, videolocadoras, postos de gasolina, casas de saúde e de repouso). Seus moradores dispõem, para seu lazer, de dois clubes (Grajaú Tênis Club e Grajaú Country Club), duas praças (Praça Edmundo Rego e Praça Nobel), alguns largos e da Reserva Florestal do Grajaú, além de inúmeros bares e restaurantes. Aos domingos e feriados, a Praça Edmundo Rego constitui o principal espaço de sociabilidade do bairro, sendo fechada ao trânsito e ocupada por uma feirinha de artesanato, enquanto seus arredores são tomados por bicicletas, cavalos e charretes, carrinhos, pula-pulas e outros brinquedos. Possue ainda várias igrejas: a matriz e duas capelas católicas, um templo da Universal do Reino de Deus, duas igrejas batistas, uma presbiteriana, uma messiânica e alguns centros espíritas.

 

O Grajaú, ontem

O Grajaú surgiu em um vale, conhecido como Vale dos Elefantes, ao sopé do Maciço da Tijuca e, mais especificamente, da Serra do Andaraí, onde se encontra a Pedra Perdida do Andaraí, popularmente conhecida como Pico ou Bico do Papagaio, que constitui um dos símbolos do bairro. Sua origem, nas primeiras décadas deste século, foram dois grandes loteamentos realizados no antigo arrabalde do Andaraí Grande , que incorporaram terras de fazendas de café à malha urbana da cidade. O primeiro loteamento foi realizado pela Compahia Brasileira de Imóveis e Construções e compreendia as terras situadas entre a Serra do Engenho Novo e um caminho posteriormente denominado Rua Borda do Mato. O outro, chamado Vila América, foi promovido pela T. Sá e Compahia Limitada e englobava os terrenos que iam deste ponto ao que hoje é a rua Botucatu (Cardoso, 1989).

A partir dos anos 20, o bairro desenvolveu-se com o desenho do primeiro loteamento. Posteriormente, na década de 80, o Grajaú estendeu-se até o lado direito da rua Ferreira Pontes, incorporando toda a parte do Andaraí que correspondia ao loteamento de Vila América . Entretanto, mesmo unificadas no plano urbanístico, estas duas regiões constituem duas áreas distintas do/no bairro. O formato atual do Grajaú foi definido pelo seu Projeto de Estruturação Urbana/PEU: suas ruas descem das encostas do Maciço da Tijuca até as ruas mais exteriores (Visconde de Santa Isabel, Barão de Bom Retiro, Meira de Vasconcelos e Ferreira Pontes), que constituem suas divisórias com os bairros do Engenho Novo, Lins de Vasconcelos, Vila Isabel e Andaraí . Ao contrário destes seus vizinhos, porém, é tido como um bairro nobre, uma vez que em seu "miolo", que corresponde ao primeiro loteamento e à sua configuração territorial original, é um bairro estritamente residencial, com belas casas e alguns edifícios luxuosos habitados por segmentos da alta classe média.

Já a parte do Grajaú que corresponde ao loteamento Vila América é constituída por um conjunto de ruas que, terminando nas encostas, dão acesso a favelas e compreendem uma população de menor poder aquisitivo. Há ainda uma terceira área do bairro, considerada mais periférica, que é formada pelas ruas externas que dão acesso direto a outros bairros. Transformadas em "ruas de passagem", seus imóveis tem menor valor comercial e são habitados por segmentos de classe média.

Essa diversidade de regiões no bairro teria sido gerada, segundo Cardoso (1989), pelos distintos modos de atuação das duas companhias responsáveis pelos loteamentos, que representavam segmentos diferenciados do capital imobiliário. Enquanto a T. Sá restringia-se à promoção fundiária e à obtenção de lucro nas transações comerciais, a perspectiva da Companhia Brasileira era a extração de lucro nas operações financeiras. Para isso construía moradias e as vendia através de um sistema de financiamento próprio. Buscando "atingir um mercado ainda bastante restrito na cidade: segmentos das camadas médias da população de maior poder aquisitivo ... que antes pagavam aluguel", mas que podiam arcar com esse financiamento, realizou obras de arruamento, loteamento, instalação de infra-estrutura de água, calçamento de ruas e construção de diversas moradias para venda. O projeto de um bairro de "fisionomia moderna" com residências amplas, ruas largas e traçadas em simetria a partir de uma praça (a Edmundo Rego), com "calçadas largas e ajardinadas, lotes também regulares e com testadas largas" visava atrair esses segmentos, criando "um bairro residencial de elite dentro de uma área da zona norte ocupada primordialmente por velhas construções e diversas fábricas " (Cardoso, 1989: 95-97).

A T. Sá, ao contrário, preocupada exclusivamente em obter o maior lucro possível na venda de terrenos, projetou o Vila América com quadras irregulares, lotes de testadas menores e formatos irregulares, que se traduziam em terrenos de preços mais acessíveis, e se limitou a efetuar as obras de arruamento indispensáveis. Além disso, não preocupou em conferir ao bairro um caráter residencial, vendendo uma quadra inteira para a Fábrica de Projetis de Artilharia do Exército.

Assim, desde sua origem, o Grajaú comporta "espaços com usos e conteúdos diferentes", que ainda hoje se expressam na diversidade dos equipamentos urbanos disponíveis em cada um dos mesmos e nos diferentes valores dos imóveis (Cardoso, 1989: 99) e que se manifesta também nas diversas percepções a respeito do bairro, de suas fronteiras e relações de pertencimento.

 

Fronteiras e limites

Para muitos dos moradores antigos , residentes na área do primeiro loteamento, o bairro legítimo corresponde à configuração original do Grajaú, sendo espúria (por interesses eleitoreiros ou de especulação imobiliária) a sua ampliação em direção ao Andaraí. Dessa fronteira simbólica ressentem-se os moradores da parte nova, a área do Vila América.

Aqui [na relação de ruas constante do PEU] você vê os limites do nosso bairro. Todas essas ruas pertencem ao Grajaú ... Se bem que eu considero o bairro do Grajaú da Visconde de Santa Isabel até a Borda do Mato. Essa parte foi criada depois, pegou uma parte do Andaraí velho ... e, por incrível que pareça, um pedaço da rua Vianna Drumond, um pedaço da Teodoro da Silva, um pedaço da Mendes Tavares. Eu não sei, mas pelo PEU é Grajaú. (Santos, morador na área do 1º loteamento). Eu acho o seguinte, esse pedaço daqui da Borda do Mato prá cá, pra' Visconde de Santa Isabel ... esse miolo aqui é o Grajaú. Fizeram o bairro do Grajaú e aquelas ruas dali foram sendo incorporadas, acho que eram duas fazendas. ... essa daqui foi depois do meu nascimento, em 1924 ou 25. O Largo Verdun também não é Grajaú ... (Odete, moradora na área do 1º loteamento). Você já vê que é outro Grajaú ... isso é na visão dos que estão no poder... que só fazem pela Praça Edmundo Rego (Luís, morador na área do Vila América).

Quanto às favelas existentes no bairro, dos moradores que entrevistei, antigos ou novos, residentes em suas diversas regiões, bem poucos as consideram incluídas no Grajaú. É recorrente a sua localização por uma referência de externalidade em relação ao bairro, isto é, como favelas do Grajaú; quase nunca no Grajaú. O limite é marcado com medo e preconceito. Grajaú é só asfalto (Guilherme, morador na área tida como periferia do bairro) O morro ... aquilo ali é violência que traz para o nosso bairro e enfeia aqui (Norma, moradora na área do Vila América).

[O PEU e, portanto, o bairro] não vai até o fim da rua. Então, por exemplo, Ferreira Pontes, Botucatu, Caçapava, Campinas ... é tudo limite. É o que eles chamam agora de "comunidade do alto" para não dizer que é favelado. Eles têm uns nomes bonitos. (Tavares, nascido no bairro, morador na área do 1º loteamento).

Traçar os limites do bairro excluindo as favelas não é, porém, uma operação de autoria primária de meus entrevistados. Antes, como Burgos ressalta, desde o Código de Obras de 1937, que definiu as favelas como "espaços urbanos deformados", habitações ilegais, antros de promiscuidade, vício e crime que deveriam ser extintas pela remoção de seus moradores, sua inclusão nos mapas oficiais da cidade permaneceu interditada. Só com a aprovação do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, em 1992, que previu a "urbanização e regularização fundiária de favelas e loteamentos de baixa renda" para integrá-las aos bairros da cidade, foi estabelecida a inclusão das favelas nos mapas e cadastros da cidade (Burgos, 1998: 48).

Os relatos acima, porém, chamam a atenção para as diversas construções possíveis do bairro. A fluidez de suas fronteiras pode se relacionar às mudanças de seus limites promovida pela Prefeitura, como examinamos. Ou ainda, a uma eventual imprecisão na definição dos mesmos. Pode se somar também à existência no bairro de vários elementos que tendem a ser percebidos como "estruturadores do espaço": ruas de grande movimento (como as ruas Barão de Mesquita e Barão de Bom Retiro) e "limites de ordem física (como as Serras do Andaraí e do Engenho Novo) (Colchete Filho, 1995).

De um outro ângulo, entretanto, podemos perceber uma construção do bairro através das representações que lhes são associadas, promovendo uma "estruturação" do espaço social do Grajaú.

 

A construção social das imagens associadas ao Grajaú

Um bairro de elite, o bairro-jardim

Apesar da diversidade de regiões apontada, entre os moradores prepondera a representação do Grajaú como bairro nobre, de elite, familiar (termos que se apresentam fortemente associados nas entrevistas), mesmo entre os que habitam na área do antigo Vila América ou na área considerada como periferia do bairro.

O Grajaú nasceu para ser bairro de descanso, de elite, no começo do Grajaú você só encontraria aqui almirantes, brigadeiros, deputados federais. Tancredo morou aqui na Barão de Bom Retiro. [Francisco] Dornelles estudou na Duque de Caxias e morou aqui no Grajaú. Naquela época, a Câmara Federal era aqui e o Grajaú estava nascendo como bairro e era tranquilo porque eram duas fazendas. O Grajaú nasceu de duas famílias. ... é um bairro conservador, por exemplo, o vovô, o cidadão morou aqui e ficou a filha e agora estão morando os netos (Guilherme, morador na área tida como periferia do bairro). E trazia também a família e tudo ...o clube, o Grajaú Country Clube, é mais família conservadora, as mais nobres do Grajaú. É um clube tradicional de elite. ... Eu nunca fui burguesa, se tem que falar uma palavra correta é essa, nunca fui a clube fazer ginástica, nem nadar, nem fazia parte desse negócio que é a burguesia do Grajaú. Mas esse é o bairro [em] que a gente quer criar nossos filhos, porque era realmente maravilhoso (Norma, moradora na área do Vila América). O Grajaú é uma província. O que eu mais gosto, digamos assim, no Grajaú ... gostar eu gosto de tudo, mas o que eu mais gosto é o ar que nós respiramos, o ambiente de vivermos os moradores, embora hoje o Grajaú esteja um tanto assim misturado, infelizmente favelas, essa coisa e população carente ... (Santos, morador na área do 1º loteamento). Aqui é muito provinciano, se você começar a viver o dia a dia ... tem muitas raízes históricas até pela hereditariedade da população, aqui ... vai contar o neto de não sei quem, o pai mora, o avô já morou. Se não morreu, ainda mora e a Igreja é muito representativa. [...] Eu não vou mencionar o nome, mas tem um cara que se queimou na comunidade e na pastoral e não arruma mais nada ... Comportamento familiar não condizente com a estrutura da província, queimou. [...] É uma comunidade mais selecionada.... (Tavares, morador na área do 1º loteamento).

Nestes e em outros relatos, as categorias nobre e de elite encontram-se fortemente associadas às de familiar e conservador, denotando que a imagem do Grajaú como um bairro de elite, embora ainda se fundamente no pertencimento de classe de seus moradores, atualmente abre uma possibilidade de inclusão dos estratos médios que moram em suas áreas menos valorizadas. É a associação do morador do bairro com a família conservadora que requalifica a elite no plano moral, trazendo implícita uma desqualificação de quem a ela não pertence. A fala de Santos opera com uma representação de favela, como locus e expressão de uma população caracterizada por atributos morais negativos, que há muito integra o imaginário da cidade (Valladares, 1991 e 1998; Leite, 2000a). Ao fazê-lo, demarca uma outra oposição, qual seja, entre bairro nobre/de elite e bairro misturado, entre o morador do bairro e o favelado.

Desse ângulo, a tranqüilidade e a sociabilidade do Grajaú, que também permanecem sendo exaltadas, são formuladas como características que expressariam o "espírito do bairro", manifestando-se tanto no ambiente físico quanto no social. Essas duas dimensões se entrecruzam na representação do Grajaú como o bairro-jardim, a urca sem praia, uma província. Representações que são recorrentes nos depoimentos de meus entrevistados , nas imagens popularizadas nos jornais de grande circulação e em publicações específicas do bairro que se reforçam mutuamente na construção das imagens associadas ao bairro.

As reportagens antigas sobre o bairro recorrem claramente a essas representações, como nos exemplos a seguir:

"A quietude e a tranquilidade transformaram o bairro numa cidade à parte, onde todos se conhecem, nascem, crescem e morrem sob a proteção de N. S. do Perpétuo Socorro ..." ("Grajaú: o Bairro do Amor", O Globo, 12/5/1967). "Não se passeia mais ao redor das praças, mulheres para um lado, homens para o outro, mas todos se conhecem, como antigamente, e dão conselhos e se preocupam com o namoro da filha do Mário com o que foi noivo da Clarinha ..." ("História do Grajaú: são 50 anos de lirismo, Christine Ajuz, Jornal do Brasil, 11/11/1973).

Mais interessante é observar que várias dessas reportagens foram transcritas, nos anos 90, nas publicações locais, especialmente no Almanaque do Grajaú. Textos e poemas com o mesmo teor também foram publicados com regularidade nos jornais locais. Trata-se, sem dúvida, de uma romantização do passado, mas que não se esgota em pura nostalgia. A republicação desses textos como reconstrução de uma memória coletiva desenvolve-se segundo uma lógica, em que "o presente age como um filtro e seleciona pedaços de lembranças recuperando-as do esquecimento" (Ortiz, 1994: 79). Assim, presente e passado fundem-se na construção social da imagem do Grajaú como um bairro nobre ou de elite.

Difundida entre seus moradores, esta representação não lhes é exclusiva, transcendendo o próprio bairro , mas sobretudo constitui uma das referências centrais da identidade coletiva de seus moradores, que se intitulam grajauenses.

 

Os grajauenses

Todos os meus entrevistados, moradores do Grajaú, tinham uma história de amor pelo bairro para contar. Alguns lá nasceram e foram criados e enfatizam o sentido de permanência e pertencimento ao bairro. Outros optaram, há muitos anos, por nele morar.

Toda a família é grajauense. Nascemos no bairro ... eu, meu pai, meus irmãos sempre amamos o Grajaú, sempre prestigiamos o bairro. Estudamos nas escolas públicas daqui, fomos atletas dos clubes e até hoje participamos dos eventos e colaboramos nas campanhas (Quito). Eu morava na rua Canavieiras, aí meu pai vendeu a casa, mudamos de rua, mas nos moramos toda a vida aqui (Odete). Tenho vontade de fazer uma lei criando um cemitério no Grajaú, lá em cima, na Borda do Mato (Santos, morador do bairro há 50 anos, desde seu casamento com uma grajauense). Vim ao Grajaú com o deputado federal Fernando Ferrari... era deputado federal pelo Rio Grande do Sul e candidato a Presidente da República ... gostava muito de mim e um dia ele me convidou: – ' vamos ao Grajaú, eu tenho que visitar um amigo?' Aí foi quando eu conheci a igreja, conheci a capelinha. Isso em 1960, então gostei muito do Grajaú. ... era diferente... só casas. Em 1963 eu conheci ... minha esposa, ela nasceu no Grajaú e a minha sogra mora aqui há 72 anos. Então eu freqüento o Grajaú desde 63. (...) Eu amo o bairro ... minhas filhas, meus netos nasceram no bairro. Depois de ... minha cidade natal no Ceará, minha segunda cidade é o Grajaú (professor). Meus filhos vieram para cá um dependurado com quatro meses, o outro com dois, hoje está com 26 ... A primeira vez que eu vim no Grajaú me apaixonei ... morava na Tijuca. (Norma).

É perceptível nos depoimentos dos últimos a preocupação em ressaltar as relações através das quais entraram no bairro e a estabilidade das mesmas, como um indicador da rede social que cultivam e de como a partir dela se situam e se qualificam no bairro. Ao fazê-lo, estão construindo sua identidade como verdadeiros grajauenses, num diálogo com os moradores mais antigos do bairro para os quais, via de regra, é o tempo de moradia no bairro, associado à área de residência como indicativo do grupo social a que se pertence (a elite, a burguesia do bairro), que define o grajauense de raiz. Tal como na comunidade de Wiston Parva pesquisada por Elias e Scotson (2000), também no Grajaú o princípio de antigüidade fundamenta o prestígio e o poder deste grupo, que assim constitui uma espécie de establishment local. Os moradores antigos são também os mais influentes, os principais formadores de opinião no bairro e/ou aqueles que legitimamente aspiram aos ou detêm os cargos de representação comunitária e política.

Os outros são os novos ou os estranhos, cuja identidade em princípio não se constrói tendo por referência o bairro, suas tradições e seus interesses, mas o trabalho, partido, o sindicato ou outra rede social. Assim, é recorrente a remissão ao tempo de moradia como uma referência positiva ou negativa da pessoa de quem se fala. D. Odete, nascida no Grajáu, espanta-se, por exemplo, com o que considera uma pretensão despropositada de uma moradora nova em representar o bairro, candidando-se à AMGRA: mas ela é nova no bairro, só tem uns 10, no máximo uns 18 anos no Grajaú.

De um outro ângulo, podemos observar a força dessa construção identitária do grajauense revelar-se em sua reafirmação mesmo por quem a ela se opõe, buscando redefini-la pela politica comunitária:

"Nós fundamos o Acorda Grajaú (um movimento de oposição à AMGRA) e começamos a conscientizar as pessoas ... e conseguimos passar que nós éramos moradores do bairro ... que nós estávamos interessados na melhoria. O Fernando, por exemplo, nasceu no bairro. O [fulano] tem duzentos anos de Grajaú; tinha um handicap ali da nata do Grajaú. [Beltrano] mora no Grajaú também há centos anos ... é sócio do Grajaú Country. Então, quer dizer, a vida toda social do bairro .... Aí [na disputa eleitoral] eu fiz esse discurso ... eu só tenho vinte anos de bairro (Luís).

No conjunto dos depoimentos estava presente essa relação entre o tempo no bairro e a respeitabilidade, a credibilidade e a ascendência que o morador antigo tem sobre os demais. No ponto extremo desta lógica, os moradores mais novos são pouco levados em consideração. Há, contudo, uma possibilidade de relativização do tempo de moradia no bairro, desde que o morador novo realize algo que demonstre sua fidelidade ao mesmo, trabalhe para/por ele e cultive suas redes sociais do bairro, tornando-se conhecido e respeitado.

O Santos tem uma política, o presidente [da AMGRA] é quem manda, então tem que ser a linha dele, aí eu disse assim: - 'você nunca vai me mudar, porque eu sou do bairro há mais tempo, eu não sou tão velha quanto você, mas eu já tava acostumada a trabalhar com o pessoal há mais tempo, eu dava aula, eu ia visitar os doentes... Eu já participava da AMGRA ... mas como comunitária... (Norma). Ando no bairro muito, sempre com meus filhos. Há mais de 15 anos levando pela mão o tempo todo, levando na escola, frequentando os bares, o comércio, o mercado. Só não vou à igreja. Só fui umas duas vezes. Em missa, não. Isso tornou-me mais público ... . Eu achava interessante a gente participar [dos eventos do bairro]. Não só pelo trabalho, mas até pra você continuar ... não em evidência, mas conhecido. ... que você está participando do movimento do bairro, do interesse do bairro. ... Qual é a pessoa que ... discute política, futebol na padaria de segunda a segunda que nem eu faço? ... Minha mulher reclama muito: - "Você fica mais no partido, no bairro do que em casa" (Luís).

A atividade comunitária, a freqüentação de suas redes sociais e a demonstração do amor pelo bairro são, portanto, algumas das estratégias de inclusão dos moradores novos no bairro. Através das mesmas podem, enfim, ser reconhecidos como grajauenses pelos moradores antigos e, assim, compartilhar do bairro nobre do qual a princípio estariam excluídos.

 

Um bairro proletarizado e violento, cercado por um cinturão de favelas

Se a imagem do Grajaú é de um bairro nobre, a do Andaraí, do Engenho Novo e do Lins de Vasconcelos, limítrofes ao Grajaú, é de bairros proletarizados. O Andaraí, que me interessa mais de perto, surgiu e se desenvolveu, em meados do século passado, concentrando fábricas e vilas operárias. Traduzia assim o tipo de desenvolvimento urbano por que passava o Rio de Janeiro, que combinava a elitização de espaços urbanos centrais e a periferização das classes de baixa renda. Além disso, como se sabe, uma das conseqüências deste modelo, com a remoção dos cortiços e, em seguida, das moradias precárias nos morros da área central da cidade, foi a ocupação das áreas de encostas, públicas e privadas, em regiões onde houvesse oferta empregos industriais, no comércio e/ou domésticos (Abreu, 1987; Leite, 2000b). Assim foram surgindo favelas nas encostas do bairro (Arrelia, 1891; Andaraí, 1930; Buraco Quente e Jamelão, 1941 e Morro do Cruz, 1950), como também entre Grajaú e Lins de Vasconcelos (Morro do Encontro, 1931).

O Grajaú, ao contrário, teve um processo de favelização mais recente. Embora o Censo de Favelas de 1948 registrasse a existência da favela da Caixa d' Água ou Vila Rica na rua Borda do Mato, com 20 domicílios, a maior parte das favelas do bairro surgiu a partir dos anos setenta. Há registros também de remoção de quarenta e sete famílias de uma favela na região que hoje compreende a Reserva Florestal para um conjunto da CEHAB em Antares, Campo Grande, em 1976; Nova Divinéia formou-se em 1971; João Paulo II em 1979 e Juscelino Kubitschek nos anos 80 (Leite, 2000b).

Entretanto, o vale em que se situa o bairro é circundado por vários morros, que atualmente se encontram ocupados por diversas favelas, dispostas em uma espécie de ferradura em torno do asfalto. Além das quatro favelas citadas acima (Borda do Mato, Nova Divinéia, João Paulo II e Juscelino Kubitschek ou Caçapava), vale mencionar duas outras favelas que se situam exatamente nos limites do bairro, ao nível das encostas (uma das justificativas para serem, como veremos adiante, ora excluídas, ora incluídas no bairro): a do Jamelão, no Morro do Andaraí e a do Encontro, na Serra do Engenho Novo, cortada pela estrada Grajaú-Jacarepaguá. Já as ruas mais exteriores ao bairro encontram-se voltadas, um lado, para a favela Parque Vila Isabel, situada em Vila Isabel; de outro, para as favelas de Arrelia, Andaraí e do Morro do Cruz, situadas no Andaraí. Assim, forma-se o que um de meus entrevistados designou como um cinturão de favelas ao redor do bairro, gerando um sentimento de insegurança e medo em seus moradores. Do Andaraí para cá, você tem quatro ou cinco favelas, é Jamelão, é JK, é João Paulo, é Nova Divinéia, é Andaraí.Tudo isso na encosta. E a gente ainda pega a rebarba do Encontro. Hoje a encosta [é] toda habitada, coisa que na época que eu era moleque aqui não tinha. O Grajaú acabava, não tinha a Comendador Martinelli, a Canavieira, a favela que tem hoje (Tavares). Quando nós chegamos aqui, não existia morro, não existia favela no alto do Grajaú. (Norma). Quando vim pra' cá não tinha nenhuma favela ... mas depois elas proliferaram ... mais ou menos em 63-64. Começaram lá em cima na Borda do Mato e dali foram se expandindo, foram até o Morro do Andaraí, e vieram João Paulo, a Divinéia, Caçapava e não satisfeitos com isso vieram para o lado de cá também, que é o Morro do Encontro na subida da Grajaú-Jacarepaguá, ameaçando a Reserva. ... É o problema que assola todo o Rio de Janeiro, segurança ... nós somos cercados por um cinturão de favelas (Santos).

Mas esses depoimentos também nos revelam uma percepção das favelas, que é bem posterior à sua origem no bairro. O que pode indicar que as primeiras construções em suas encostas não fossem percebidas como favelas. Sugestivo a este respeito é o relato de Seu Adail Meireles, que em 1939 se estabeleceu com mulher e três filhos num barraco na encosta da atual Rua Comendador Martinelli (então uma pedreira), onde criava animais (bois, porcos, cabras e cavalos) e produzia adubo e terra estrumada que vendia pra jardim de madame:

Comecei a ganhar a minha vida aqui, alugando cavalos na Praça Edmundo Rego. Naquela época eu tinha 17 anos, era forte, cheio de esperanças, e me apaixonei por esse lugar, onde as pessoas se gostam de verdade. Agora, tenho tido alguns problemas com vizinhos, pois acham que não posso continuar mantendo esta vida aqui. Eu não quero brigar com ninguém, mas também não vou abandonar o meu mundo. ("História do Grajaú: são 50 anos de lirismo", de Christine Ajuz, Jornal do Brasil, 11/11/73).

Não pude recuperar a história deste personagem, que possivelmente foi um dos removidos para o conjunto habitacional em Antares. Mas, talvez não seja casual que seus problemas com vizinhos tenham ocorrido exatamente no período (1968-75), em que a via "remocionista" dominava a política para as favelas nos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, sob o comando da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio/CHISAM. A erradicação como alternativa exclusiva para as favelas decorria da definição de favelas com que operava a CHISAM: espaços em que a degradação urbana somava-se à degradação moral e cultural de seus moradores (Burgos, 1998). Esta formulação consistiu em um dos pontos de apoio para a tematização das favelas do ponto de vista moral, como apontei anteriormente.

Gostaria de destacar, no entanto, que, a partir de meados dos anos 80, quando se desenvolveram novas modalidades de violência no Rio de Janeiro associadas a dinâmicas do tráfico de drogas com sua ponta de distribuição entrincheirada nos morros da cidade, as favelas começaram a ser vistas como um problema de segurança pública. Desde então, o Grajaú, a exemplo de outros bairros da cidade, passou a ser palco de inúmeros episódios violentos associados às redes de tráfico. Para seus moradores, sua segurança seria especialmente vulnerável devido às "balas perdidas" no confronto entre quadrilhas rivais entrincheiradas em alguns dos morros de seu cinturão de favelas.

Com a chegada do Brizola, talvez com a intenção de resolver o problema por posse da terra ... estimulou o crescimento das favelas. Miro Teixeira botou água na [Nova] Divinéia e valorizou muito o Morro do Encontro, sempre ameaçando a Reserva. Então o Grajaú ficou cercado de favelas. Isso desvalorizou muito as casas, muita gente saiu do bairro. Das famílias dos anos 50, 60% foram embora (Quito).

Também na imprensa carioca, a imagem do bairro vem sendo ligada à violência, como caso exemplar na cidade da difícil convivência entre favela e asfalto. Nos últimos anos, as representações bucólicas vêm convivendo com (e, em algumas circunstâncias, sendo substituídas por) a imagem de bairro violento e campeão de balas perdidas, sistematicamente difundida nos jornais de grande circulação e, como pude verificar em minhas entrevistas, crescentemente incorporadas à percepção dos moradores. Num certo sentido, o Grajaú parece ter sofrido, na década passada, o mesmo movimento por que passou o Rio de Janeiro no período: transitou de bairro jardim a campeão de balas perdidas, no mesmo processo e ritmo em que o Rio transitava de "cidade maravilhosa" a "cidade partida" .

Em decorrência, o Grajaú se refaz. Além de passar por sucessivos processos de ampliação de seu território e de redefinição das relações de pertencimento de segmentos de seus moradores proletarizados, o bairro também vem sendo reorganizado espacial e simbolicamente, ao se defrontar com o tema das favelas. Ou melhor, quando seus moradores se deparam com o dilema (que, de resto, parece ser também de todos os habitantes da cidade do Rio de Janeiro) de integrá-las ou não, definindo suas fronteiras e passagens.

 

História e memória do/no Grajaú

Quando iniciei meu trabalho de campo no Grajaú, tinha em mente uma configuração territorial e social do bairro. Logo descobri que os bairros são construções sociais, em que os limites oficiais nem sempre são claramente definidos e, quando o são, não necessariamente correspondem ao bairro na apreensão de seus moradores, pois tanto as fronteiras espaciais quanto as simbólicas são fluidas, envolvendo estratégias de exclusão e de inclusão, barreiras e passagens. A linha de trabalho que desenvolvi, então, foi procurar apreender a percepção do bairro de meus entrevistados, buscando em suas memórias a história do Grajaú.

Em seu livro pioneiro no campo dos estudos da memória no Brasil, Ecléa Bosi sustenta que a memória do indivíduo não é a "subjetividade livre a que se referia Bergson", mas "depende de seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo" (1994: 54). Com isso Bosi, de um lado, destaca "a iniciativa que a vida atual do sujeito toma ao desencadear o curso da memória". De outro, enfatiza que aquilo que o indivíduo lembra, quando lembra e como lembra é uma construção coletiva, que se explicaria a partir dos quadros sociais da memória, nos termos de Halbwachs: "os instrumentos de que a memória coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que se combina, a cada época, com os pensamentos dominantes da sociedade". Também Ortiz nos lembra que a memória é seletiva e "se atualiza sempre a partir de um ponto do presente." Para o autor, "os relatos de vida estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado e vêm carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememoração ... " (1994: 79).

No caso de meus entrevistados, percebi, em alguns depoimentos, que o tema da história do Grajaú subsumia os demais. A vida individual fundia-se e confundia-se com a história do bairro, os relatos buscavam colocar em relevo certas conexões entre trajetórias particulares e processos sociais. O passado era contado a partir de alguns traços considerados expressivos na vida atual do bairro, numa reconstrução que valorizava elementos e personagens que representavam ou que poderiam estabelecer uma relação com o presente. Recolhi, assim, várias versões sobre a história do Grajaú, diferentes reconstruções históricas sobre sua origem, data e local de fundação, atores envolvidos e modo de expansão.

No curso de minha pesquisa, já havia examinado a evolução urbana da região, detendo-me nas análises sobre a integração do Grajaú à malha urbana da cidade a que me referi anteriormente. Mas não se tratava de equacionar as contradições verificadas nos depoimentos, recorrendo a essas fontes para restaurar a "veracidade dos fatos" (Ortiz, 1994; Novaes, 1996). Até porque, seguindo a perspectiva de que "são justamente as narrativas construídas - em suas dimensões identitárias e simbólicas - que devem se transformar em objeto de reflexão sociológica" (Novaes, 1996: 188), o que me interessava era examinar como aqueles fatos e processos foram percebidos e a história do bairro foi reconstituída em narrativas que destacavam alguns eventos do passado, por concebê-los articulados segundo lógicas que possivelmente então constituíam, cada qual, apenas uma virtualidade entre outras, mas que parecem ter sido, à época, plenas de sentido.

Assim, considerei as diversas versões da história do Grajaú como narrativas que dialogavam entre si, enquanto buscavam refazer o passado, reconstruindo a memória coletiva. Ao fazê-lo também disputavam a versão oficial da história do Grajaú. Acompanhando estes movimentos, pude observar que, através deles, também se encontravam em disputa a identidade dos grajauenses e a possibilidade de representação dos mesmos na política comunitária e partidária.

 

As várias versões da história do Grajaú: construindo a memória coletiva

Ao longo do trabalho de campo, conheci e entrevistei vários personagens que se apresentavam como portadores da memória do bairro, ora por serem moradores muito antigos (grajauenses de raiz), ora por terem pesquisado sua história, ou ainda por atuarem como os seus promotores/divulgadores. No plano do bairro, eram atores que disputavam qual seria a "verdadeira" história do Grajaú.

Através de seus relatos, de diversas publicações locais e de outras fontes, pude acompanhar dois momentos desta disputa. Um primeiro, ocorrido no início dos anos noventa, com acirrada polêmica entre duas versões sobre a data e o local de fundação do bairro, bem como sobre seu modo de expansão. O segundo estava em curso naquele ano de 1999, quando realizei minhas entrevistas. Articulando vários grupos e atores já em torno de três versões sobre a origem e desenvolvimento do bairro, associava-se a dois processos eleitorais: para a associação de moradores local, ocorrido em setembro de 1999, e para a Câmara de Vereadores, previsto para outubro de 2000.


 
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