Carlos Marighella, 90 anos

Enviado por Dênis de Moraes


Para Paulo Mercadante, que sabe amar os amigos.

Iniciamos a contagem regressiva para as comemorações, em 5 de dezembro próximo, dos 90 anos de nascimento de Carlos Marighella, um dos expoentes da esquerda brasileira no século XX. Numa análise serena das circunstâncias históricas, podemos questionar algumas de suas crenças, concepções estratégicas e táticas políticas. Mas devemos dar a Marighella o que é de Marighella: poucos homens demonstraram tamanha bravura e destemor na árdua luta pelo progresso social e pela emancipação econômica deste país. Ele nunca tergiversou no que é essencial: foi solidário aos oprimidos e aos excluídos, empenhando-se, até o último instante de vida, por um Brasil mais justo e digno.

Há dez anos, quando elaborava a biografia de Graciliano Ramos, O velho Graça (José Olympio, 1992), conheci um Marighella que extrapolava as imagens míticas do comandante guerrilheiro da segunda metade da década de 1960. Tive o privilégio de ouvir os relatos do advogado, filósofo e ensaísta Paulo de Freitas Mercadante, 78 anos, sobre o seu convívio fraterno com Carlos e Graciliano, a partir de 1945.

No calor das lembranças de Mercadante, quem reaparecia não era o comunista de aço, e sim um homem educado, risonho, emotivo, afável e irreverente. Que gostava de cerveja, de futebol, de samba, de Jackson do Pandeiro, de carnaval e dos bailes do Cordão da Bola Preta. Que fugia do "aparelho" em que vivia clandestino no Rio de Janeiro, durante a o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra, para saborear seus pratos favoritos - feijoada e comida baiana - no restaurante Furna da Onça, em pleno centro da cidade. Para ludibriar a vigilância da polícia política, colocava uma peruca sobre a calvície acentuada e usava óculos escuros. Graças aos disfarces, compareceu, incógnito e triste, ao velório de Graciliano Ramos, seu amigo e escritor predileto.

Esse Marighella que aprendemos a medir pela firmeza na práxis política era, segundo Paulo Mercadante, um dos raros dirigentes comunistas de sua geração com preocupações intelectuais. Não se limitava aos documentos partidários e tratados marxistas; apreciava literatura brasileira e clássicos do pensamento universal. "Carlos não se apegava a certezas férreas diante das fragilidades humanas. Com ele podíamos nos abrir. Na sua humanidade, distinguia-se daqueles dirigentes que vinham logo com uma citação de Marx para desqualificar os problemas pessoais como debilidades burguesas. Ao expressar-se, ele não recorria aos jargões partidários. Conversava normalmente, não seguia as fórmulas feitas e os maniqueísmos", acrescenta Mercadante.

Jacob Gorender, que o conheceu em 1945, traça um perfil de Carlos bem semelhante ao apresentado por Paulo Mercadante: "Marighella era um líder revolucionário muito diferente de outros que eu acompanhei na direção. Era um homem fraternal, não tinha nenhum ar de superioridade, nunca se atribuiu méritos pessoais particulares. Quando falava de suas experiências na tortura, na prisão e em outras circunstâncias, só o fazia para ensinar, para alertar os companheiros que não tinham essa experiência. Um homem, um líder, que jamais usava de grosserias, que se interessava pelos problemas pessoais dos companheiros, problemas de alojamento, de dinheiro para comprar comida, para atender a necessidades familiares e assim por diante. Ao mesmo tempo, um homem que dava o exemplo e por isso tinha condições de exigir o cumprimento de tarefas, podia ser rigoroso nas cobranças das tarefas de que os outros companheiros estavam encarregados".

Carlos Marighella nasceu em um sobrado na Baixa do Sapateiro, em Salvador, no dia 5 de dezembro de 1911, filho de Augusto Marighella, um imigrante italiano, mecânico e simpatizante do anarquismo, e de Maria Rita do Nascimento, negra baiana descendente de escravos sudaneses. As idéias libertárias do pai conformaram-lhe o espírito avesso à discriminação e ao preconceito. Indignava-se com a segregação dos negros. Craque nas peladas e em matemática, adorava escrever poemas e lia, à luz de velas, os jornais que o pai lhe passava. Na última série do curso científico do Colégio Central da Bahia, tirou nota 10 ao responder a uma prova de física com versos. O poema ficou exposto em um mural como exemplo de imaginação criadora.

Em 1932, aos 21 anos, aderiu à Federação Vermelha dos Estudantes, vinculada ao Partido Comunista Brasileiro, abandonando no terceiro ano o curso de engenharia civil na Escola Politécnica da Bahia. "Um sentimento profundo de revolta ante a injustiça social não me permitia prosseguir em busca de um diploma e dedicar-me à engenharia civil, num país onde as crianças são obrigadas a trabalhar para comer", relembraria três décadas depois. A militância levou-o diversas vezes à prisão. A primeira delas ainda em 1932, quando participava de manifestação pela redemocratização, dissolvida pela polícia do interventor federal no estado, Juracy Magalhães. Nos anos seguintes, Marighella juntou-se ao esforço de tentar organizar, em condições adversas, o PCB baiano.

Mudou-se para o Rio de Janeiro no início de 1936, onde passou a atuar no setor de imprensa e divulgação do partido. O clima era de guerra: após o malsucedido levante comunista de novembro de 1935, Getúlio Vargas desfechou uma violenta perseguição aos opositores do regime, superlotando as cadeias. Luiz Carlos Prestes, inúmeros dirigentes e militantes foram presos e condenados pela Lei de Segurança Nacional.

No 1º de maio de 1936, detido pela Polícia Especial de Filinto Müller, Carlos foi torturado 23 dias. Cumpriu um ano de prisão. Solto, partiu para São Paulo a fim de reerguer o partido e combater a dissidência trotsquista. Aos 26 anos, tornou-se membro do Comitê Estadual. Novamente preso em 1939, queimaram-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiaram-lhe estiletes sob as unhas, arrancaram-lhe alguns dentes e abriram sua testa com uma coronhada. Não cedeu aos algozes. Numa solitária do Presídio Especial de São Paulo, escreveu o soneto "Liberdade":

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,

tudo farei por ti para exaltar-te,

serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te

dominadora, em férvido transporte,

direi que és bela e pura em toda parte,

por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,

que não exista força humana alguma

que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,

possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome.


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