Censuras e Memórias da Pacificação Waimiri-Atroari [1]

 

 

Stephen G. Baines
Professor do Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília e pesquisador nível 1B do CNPq.

Os Waimiri-Atroari, grupo indígena da família lingüística Carib, que se referem a si mesmos como ki?in'ja (gente) [2], habitam uma região de floresta tropical no norte do Amazonas e sul de Roraima, nas bacias dos rios Alalaú, Camanaú, Curiuaú e o Igarapé Santo Antônio do Abonari. Após uma longa história de invasões violentas [3] do seu território, estreitamente relacionadas às flutuações dos preços no mercado internacional de produtos florestais como castanha-do-pará, balata, peles de ariranha e jacaré e madeira, a população dos Waimiri-Atroari foi reduzida a um ponto baixo de aproximadamente 332 pessoas em 1982 (Baines, 1988:109) [4]. A partir de 1983, a população vem-se recuperando rapidamente e, em 1990, estava acima de 400 indivíduos. Com pequenas variações de dialeto entre grupos locais, os Waimiri-Atroari falam a mesma língua.

Até a metade deste século eram esporádicas as invasões por regionais, tanto as espontâneas como as dirigidas pelo governo local, e a invasão e ocupação permanente do território indígena restringiram-se ao vale do rio Jauaperí. A partir do final da década de 1960, o Governo Federal iniciou uma ocupação maciça do território Waimiri-Atroari através de grandes projetos de desenvolvimento regional.

Nos anos 1972-1977 esse território foi cortado com a construção da estrada BR-174 que liga Manaus a Boa Vista, seguida pela implantação da mina de estanho de Pitinga do Grupo Paranapanema [5], a construção da hidrelétrica de Balbina pela Eletronorte [6], e colonização através de projetos pecuários nos limites da área. Para abrir a BR-174, foi organizada uma operação de "pacificação" e relocação dos Waimiri-Atroari pela FUNAI cujas estruturas dominam a vida desses índios até hoje [7].

Depois de a população Waimiri-Atroari ter sido aglomerada em três grandes aldeamentos [8] no final da década de 1970 e início da de 1980, e várias transferências e remanejos dirigidos pela "Frente de Atração Waimiri-Atroari" (FAWA) nos anos seguintes, existiam nove aldeamentos em 1985. Dois anos depois, uma área de aproximadamente 2.440.000 hectares foi declarada de ocupação dos Waimiri-Atroari [9]. No mesmo ano da criação do Programa Waimiri-Atroari (FUNAI/ELETRONORTE) que, substituindo a FAWA, passou a dirigir a política indigenista nesta área a partir de 1987, o vale do Igarapé Santo Antônio do Abonari e seus afluentes tornou-se inabitável pelo fechamento das comportas da represa hidrelétrica de Balbina. A água do reservatório tornou-se imprópria para o uso humano com a putrefação de floresta submersa, resultando na transferência forçada dos aldeamentos de Tobypyna e Taquari [10], ou seja, de aproximadamente um terço da população total.

Durante a construção da estrada e, posteriormente, quando a maioria dos Waimiri- Atroari passara a morar em aldeamentos próximos aos Postos Indígenas da FUNAI (a partir de 1978 e, sobretudo, em 1980-81), suas representações do branco foram remodeladas dentro do contexto de dominação imposto pelos numerosos servidores da FAWA, implantada a partir de 1970. Sua visão dos brancos antes e durante a "pacificação", como predadores que invadiam seu território, foi substituída pela censura da sua história e a absorção do discurso interétnico da FUNAI, nos aldeamentos onde os sobreviventes Waimiri-Atroari foram sujeitos a um controle que atingia todos os aspectos da sua vida.

Ao abordar as formas de representação do branco e das interpretações indígenas dos efeitos da sua intrusão na sociedade Waimiri-Atroari, focalizarei aqui este recente processo de "pacificação"/aldeamento, procurando captar neste contexto a atividade da consciência histórica indígena face ao contato. Tal abordagem permitirá a compreensão dos eventos do contato durante a "fase de atração" dirigida pela FUNAI, iniciada em 1969 [11] até o início dos anos 80, quando a grande maioria dos Waimiri-Atroari estava morando nos aldeamentos da FAWA. Pesquisei este período, imediatamente anterior ao da minha estada no campo, através de documentos da FUNAI e depoimentos orais tanto de seus servidores na área como dos Waimiri-Atroari.

As mudanças abruptas e violentas impostas durante a sua "pacificação" pela FAWA submeteram os Waimiri-Atroari a um estilo de vida totalmente alheio à sua vida anterior, seguindo o regime de trabalho e modelo social dos funcionários da FUNAI, e os obrigaram a se acomodar à dominação. Com a população drasticamente dizimada por epidemias que desestruturaram a rede de aldeias, os sobreviventes foram submetidos a campos de ressocialização forçada (os aldeamentos da FAWA) onde a única opção que tinham era de interiorizar as regras do jogo do indigenismo oficial norteado por um modelo de desenvolvimento econômico regional, adotando o modelo de "índio civilizado" da FUNAI.

Foi, assim, bastante difícil de obter informações, durante a minha pesquisa, sobre a vida dos Waimiri-Atroari antes de serem incorporados ao sistema de aldeamentos da FAWA, tão fortemente estava sendo censurado seu passado não apenas pelos funcionários da FUNAI mas também pelos próprios índios que eram recrutados para cargos de "Capitão" [12]. Quando narravam o seu passado, os Waimiri-Atroari revelavam que nos primeiros anos da FAWA as visitas de funcionários da FUNAI a aldeias seguidas por epidemias repercutiam primeiro dentro da sua sociedade na forma de acusações de 24.06.89, entre a Mineração Taboca S.A. (Paranapanema) e os Waimiri-Atroari. O gerente do Programa Waimiri-Atroari e Superintendentes Regionais da FUNAI assinaram estes documentos como testemunhas.

Durante a construção da estrada e, posteriormente, quando a maioria dos Waimiri- Atroari passara a morar em aldeamentos próximos aos Postos Indígenas da FUNAI (a partir de 1978 e, sobretudo, em 1980-81), suas representações do branco foram remodeladas dentro do contexto de dominação imposto pelos numerosos servidores da FAWA, implantada a partir de 1970. Sua visão dos brancos antes e durante a "pacificação", como predadores que invadiam seu território, foi substituída pela censura da sua história e a absorção do discurso interétnico da FUNAI, nos aldeamentos onde os sobreviventes Waimiri-Atroari foram sujeitos a um controle que atingia todos os aspectos da sua vida.

Ao abordar as formas de representação do branco e das interpretações indígenas dos efeitos da sua intrusão na sociedade Waimiri-Atroari, focalizarei aqui este recente processo de "pacificação"/aldeamento, procurando captar neste contexto a atividade da consciência histórica indígena face ao contato. Tal abordagem permitirá a compreensão dos eventos do contato durante a "fase de atração" dirigida pela FUNAI, iniciada em 1969 [11] até o início dos anos 80, quando a grande maioria dos Waimiri-Atroari estava morando nos aldeamentos da FAWA. Pesquisei este período, imediatamente anterior ao da minha estada no campo, através de documentos da FUNAI e depoimentos orais tanto de seus servidores na área como dos Waimiri-Atroari.

As mudanças abruptas e violentas impostas durante a sua "pacificação" pela FAWA submeteram os Waimiri-Atroari a um estilo de vida totalmente alheio à sua vida anterior, seguindo o regime de trabalho e modelo social dos funcionários da FUNAI, e os obrigaram a se acomodar à dominação. Com a população drasticamente dizimada por epidemias que desestruturaram a rede de aldeias, os sobreviventes foram submetidos a campos de ressocialização forçada (os aldeamentos da FAWA) onde a única opção que tinham era de interiorizar as regras do jogo do indigenismo oficial norteado por um modelo de desenvolvimento econômico regional, adotando o modelo de "índio civilizado" da FUNAI.

Foi, assim, bastante difícil de obter informações, durante a minha pesquisa, sobre a vida dos Waimiri-Atroari antes de serem incorporados ao sistema de aldeamentos da FAWA, tão fortemente estava sendo censurado seu passado não apenas pelos funcionários da FUNAI mas também pelos próprios índios que eram recrutados para cargos de "Capitão" [12]. Quando narravam o seu passado, os Waimiri-Atroari revelavam que nos primeiros anos da FAWA as visitas de funcionários da FUNAI a aldeias seguidas por epidemias repercutiam primeiro dentro da sua sociedade na forma de acusações de feitiçaria contra habitantes de outras aldeias, resultando em atritos entre grupos locais. Mais tarde, a coincidência das visitas de servidores da FAWA com epidemias letais, que aumentaram desmesuradamente na época em que os trabalhadores do Exército e empresas empreiteiras invadiram seu território durante a construção da BR-174, levaram os Waimiri- Atroari a mudar sua interpretação das mortes maciças nas aldeias. Passaram a interpretá-las como atos de feitiçaria dirigidos contra eles pelos invasores. Enquanto sofriam a eliminação de aldeias inteiras e a depopulação de outras, sobreviventes de grupos locais diversos se juntaram em tentativas de expulsar os invasores que traziam sua morte.

Paralelamente, as interpretações, dos servidores da FUNAI, sobre os ataques aos Postos Indígenas (com a participação de índios que lhes eram conhecidos e que haviam freqüentado esses Postos) traduziam sua incompreensão dos acontecimentos e da visão que os índios tinham deles. As mudanças do comportamento dos Waimiri-Atroari só reforçavam para eles os estereótipos populares a respeito dos índios "traiçoeiros", "bravos", "maus", "perversos", "selvagens", "bichos", "feras", etc. Elaboravam, assim, múltiplas hipóteses a respeito dos ataques aos Postos, vendo-os como conseqüência do "instinto", de "ritual religioso", de "disputas" entre os líderes indígenas, e até da "existência, entre os índios, de um civilizado ou índio civilizado que os induz às hostilidades", da presença de um "índio barbudo" ou de "foragidos da justiça" que comandavam os ataques, e outras explicações refletindo as imagens do "índio" criadas pelos brancos [13].

Com base nestes estereótipos e nesta reconstrução imaginária da experiência histórica indígena, os servidores da FUNAI censuraram totalmente o passado Waimiri- Atroari e tudo que era relacionado à sua vida anterior à FAWA, impondo-lhes um regime de trabalho disciplinar para tentar transformá-los em trabalhadores agrícolas e eliminar seu passado "selvagem". Através deste dispositivo de censura histórica e reconstrução cultural, a FAWA "capturou" os Waimiri-Atroari, a fim de recriar a sua sociedade ("índio civilizado") e redimi-los do seu "pecado original": os ataques aos Postos Indígenas da FUNAI ("índio bravo").

 

"Outros" e "Índios": Os Brancos Ocultos

No ambiente criado pela FAWA, os jovens Waimiri-Atroari raramente falavam sobre o passado. Quando o faziam, transformavam-no em zombaria como fazia a maioria dos funcionários da FAWA, esperando o mesmo comportamento do antropólogo. Quando tentei abordar assuntos relacionados ao passado, direta ou indiretamente, normalmente censuravam-nos com exclamações como "É besteira de velho!", "Índio não sabe!".

Freqüentemente, ridicularizavam os anciãos, arremedando as formas de discursos de velhos líderes (Taha'kome 'jira - "formas de discursos dos velhos"), em uso antes da "redução" nos aldeamentos da FAWA. Transmitiam, assim, os preconceitos de muitos funcionários da FUNAI, inclusive daqueles que se autodesignavam "funcionários índios" ou "índios civilizados" [14]. Estes preconceitos incluíam a idéia de que os Waimiri-Atroari, como índios que "não sabem", tinham que ser "ensinados". Além de coagir os Waimiri-Atroari a se conformar aos seus padrões de "índios civilizados", os funcionários índios se encarregavam de "lhes ensinar" tudo a respeito da sua nova identidade, através de uma revisão da oposição "índio"/"branco" de sua classificação interétnica.

Certa vez, quando indaguei do "Capitão" principal, Dalmo [15], sobre as aldeias onde havia morado no passado, ele respondeu: "Eu já andei. Naquele tempo não fazia nada.

Agora `trabalha'!" Desprezava sua vida anterior colocada, conforme o discurso dos servidores, em oposição ao regime atual de trabalho dirigido da FAWA, e associada ao preconceito de "índio" como "preguiçoso" que "não faz nada". Os Waimiri-Atroari repudiavam assim seu passado, inclusive a classificação que faziam do branco que, antes da época dos aldeamentos da FUNAI, era incluído na mesma categoria que todos "os outros" (não Waimiri-Atroari) como ka?amin'ja, enquanto agora os funcionários "índios" da FUNAI eram associados aos Waimiri-Atroari como ki?in'ja ("gente"), e ka?amin'ja passou a designar exclusivamente os "brancos".

Vários "Capitães" e jovens explicavam-me com insistência que no passado eles "não sabiam", pois achavam que todos "os outros" eram ka?amin'ja, porém, agora sabiam que ki?in'ja é "índio", seguindo o ensinamento dos "funcionários índios". Essa reinterpretação da classificação interétnica foi também expressa claramente por Dalmo, quando mencionei que os Waimiri-Atroari mais idosos se referiam a todos os funcionários como ka?amin'ja. Dalmo retorquiu: "Ele não sabe explicar. Ki?in'ja é todo índio. FUNAI chama índio, nós chamamos ki?in'ja. Não é `branco', não. É ki?in'ja, índio". Presenciei "Capitães" Waimiri-Atroari perguntarem a "funcionários índios" (que "sabiam") quem era "índio" e quem era "branco" entre as pessoas que chegavam aos Postos Indígenas, aceitando sem questionar a definição fornecida pelo servidor. Quando abordei esta aceitação passiva das definições dos funcionários pelos Waimiri-Atroari, estes me responderam que "É a FUNAI que sabe", visivelmente consternados por eu ter levantado uma questão proibida pela equipe da FAWA. Entendi esta revisão da oposição "branco"/"índio" pelos Waimiri-Atroari, expressa na retórica indigenista veiculada pelos servidores da FUNAI (na maioria índios aculturados), como um índice revelador do processo de reinterpretação imposto a seu passado no contexto político da FAWA, onde suas imagens do branco anteriores à mudança para os aldeamentos sofriam censura. Era como se a linguagem de dominação da FAWA, através da sua insinuação na classificação da alteridade, estivesse tentando (e conseguindo) bloquear a consciência de sua história dramática. Essa ocultação histórica operou-se através de uma manipulação da classificação interétnica, associando a maioria dos servidores da FUNAI, como "índios", aos Waimiri- Atroari e rejeitando os "brancos" (predadores da memória Waimiri-Atroari) numa exterioridade social (coordenadores da FAWA, chefes de Postos Indígenas, representantes do governo, gringos) e geográfica que permite exclui-los da problemática histórica local.

Porém, alguns Waimiri-Atroari faziam às vezes referência ao passado, lançando de 10.02.81, "quase todos os servidores de origem indígena tiveram problemas dentro das suas áreas e procuraram na FUNAI uma fonte de sobrevivência econômica quando a maioria se encontrava fora do grupo, na capital do Estado". A maioria guardava os preconceitos mais acirrados contra o "índio".

Certa vez, quando indaguei do "Capitão" principal, Dalmo [15], sobre as aldeias onde havia morado no passado, ele respondeu: "Eu já andei. Naquele tempo não fazia nada.

Agora `trabalha'!" Desprezava sua vida anterior colocada, conforme o discurso dos servidores, em oposição ao regime atual de trabalho dirigido da FAWA, e associada ao preconceito de "índio" como "preguiçoso" que "não faz nada". Os Waimiri-Atroari repudiavam assim seu passado, inclusive a classificação que faziam do branco que, antes da época dos aldeamentos da FUNAI, era incluído na mesma categoria que todos "os outros" (não Waimiri-Atroari) como ka?amin'ja, enquanto agora os funcionários "índios" da FUNAI eram associados aos Waimiri-Atroari como ki?in'ja ("gente"), e ka?amin'ja passou a designar exclusivamente os "brancos".

Vários "Capitães" e jovens explicavam-me com insistência que no passado eles "não sabiam", pois achavam que todos "os outros" eram ka?amin'ja, porém, agora sabiam que ki?in'ja é "índio", seguindo o ensinamento dos "funcionários índios". Essa reinterpretação da classificação interétnica foi também expressa claramente por Dalmo, quando mencionei que os Waimiri-Atroari mais idosos se referiam a todos os funcionários como ka?amin'ja. Dalmo retorquiu: "Ele não sabe explicar. Ki?in'ja é todo índio. FUNAI chama índio, nós chamamos ki?in'ja. Não é `branco', não. É ki?in'ja, índio". Presenciei "Capitães" Waimiri-Atroari perguntarem a "funcionários índios" (que "sabiam") quem era "índio" e quem era "branco" entre as pessoas que chegavam aos Postos Indígenas, aceitando sem questionar a definição fornecida pelo servidor. Quando abordei esta aceitação passiva das definições dos funcionários pelos Waimiri-Atroari, estes me responderam que "É a FUNAI que sabe", visivelmente consternados por eu ter levantado uma questão proibida pela equipe da FAWA. Entendi esta revisão da oposição "branco"/"índio" pelos Waimiri-Atroari, expressa na retórica indigenista veiculada pelos servidores da FUNAI (na maioria índios aculturados), como um índice revelador do processo de reinterpretação imposto a seu passado no contexto político da FAWA, onde suas imagens do branco anteriores à mudança para os aldeamentos sofriam censura. Era como se a linguagem de dominação da FAWA, através da sua insinuação na classificação da alteridade, estivesse tentando (e conseguindo) bloquear a consciência de sua história dramática. Essa ocultação histórica operou-se através de uma manipulação da classificação interétnica, associando a maioria dos servidores da FUNAI, como "índios", aos Waimiri- Atroari e rejeitando os "brancos" (predadores da memória Waimiri-Atroari) numa exterioridade social (coordenadores da FAWA, chefes de Postos Indígenas, representantes do governo, gringos) e geográfica que permite exclui-los da problemática histórica local.

Porém, alguns Waimiri-Atroari faziam às vezes referência ao passado, lançando algumas luzes sobre suas imagens de brancos anteriores à FAWA. Contando sobre um dos últimos líderes Waimiri-Atroari (apelidado "Comprido") que não foram nomeados no contexto da FAWA, e que resistia à invasão do seu território pelos servidores da FAWA, Dalmo revelou:

`branco' apareceu com estrada. Nós tínhamos medo. Comprido tinha medo de `branco'. Aí nós fomos lá para dentro (longe da estrada BR-174, nos afluentes do alto rio Alalaú). Aí `branco' apareceu lá em cima (no alto rio Alalaú [1972]). Aí Comprido ficou com raiva ...

e, em outra ocasião:

Os velhos tinham medo de `branco' porque `branco' matou nosso parente. Ele foi atrás de ferramenta e `branco' matou, no passado ... Mataram o pai da minha mãe ...

Quando Amélia, uma idosa viúva de "Comprido", recordava as epidemias e mortes em massa, os atritos concomitantes entre membros de diversas aldeias, os ataques dirigidos pelos líderes contra os Postos Indígenas da FUNAI e vôos rasantes sobre as aldeias, as fugas desesperadas com medo de perseguição dos invasores, e uma situação de transtorno social que os Waimiri-Atroari não controlavam mais, seu corpo tremia.

Damião, que tinha cerca de quarenta anos e não tinha muita intimidade com o esquema da FAWA, às vezes falava também do medo que tinha dos ka?amin'ja ("brancos") nos anos anteriores, quando as epidemias se alastravam pelas aldeias.

Certa vez, Dalmo contou-me um mito, em português, relatando como o "branco" conseguiu a espingarda e os Waimiri-Atroari, o arco e flecha:

Nós temos espingarda primeiro. Depois `branco' pegou. Pegou espingarda, aí deixou flecha com `índio'. Deixou com ele, aí `branco' levou espingarda, aí `branco' acostumou espingarda. Depois `índio' acostumou flecha dele, aí ficou com ela. Acho que disse que nós tínhamos primeiro, tínhamos espingarda ... `branco' pegou espingarda ... porque disse que nós não gostamos mais de espingarda. `Branco' já acertou um pássaro, aí levou.

Nós acertamos com flecha mutum. Aí nós pegamos flecha. Aí `branco' já foi embora.

Quando perguntei a Dalmo de onde veio o primeiro ka?amin'ja, ele respondeu:

Isso não sei, não. Dizem que veio primeiro de lugar de fogo. Diz assim. Até chegou e trouxe flecha ... aí começou, aí mostrou flecha, aí experimentou arma mesmo, acertou pássaro e depois pegou e foi embora. Índio primeiro contava ... Eu estava mesmo esquecendo. Aí tu falou e me lembrei.

Os relatos de Dalmo, como os de Amélia, Damião e outros Waimiri-Atroari, apesar de apresentarem visões diversas do passado visto pelo prisma do presente, revelam o medo que os Waimiri-Atroari tinham dos "civilizados" nos anos da "pacificação", após terem sofrido uma longa e violenta história de contato interétnico. O tema mitológico da flecha e da espingarda, com muita difusão entre populações indígenas da Amazônia, afirma a superioridade tecnológica e bélica dos brancos e reflete a influência do esquema de dominação imposto aos índios pela situação colonial e a interiorização cosmológica de sua posição de sujeição ao poder e à violência dos brancos (ver Hugh-Jones, 1988:146) [16].

Manipulando Identidades Étnicas e Retóricas Indigenistas na FAWA

A equipe de funcionários da FAWA [17] foi constituída principalmente de servidores que se identificavam como "índios" [18]. A maioria destes identificavam-se em duas categorias conforme critérios regionais: "índios do Alto Rio Negro" (de diversos grupos étnicos) e "índios do Baixo Amazonas" (Sateré-Maué e Munduruku), além de outros de outras partes do Amazonas e de outros Estados. Muitos tinham uma longa experiência urbana em Manaus e outras cidades. Ao seguir uma política de colocar uma minoria de funcionários "civilizados" em cargos de Chefia aos quais estava subordinado um grande contingente de servidores "índios" como braçais [19], a FUNAI criou uma situação que acirrava a oposição "índio"/"branco" na FAWA, acrescentando àquela vivida pelos Waimiri-Atroari a que os servidores indígenas manipulavam nas suas relações hierárquicas de emprego. Durante os períodos em que estive na área (entre 1982 e 1985), havia uma tensão constante entre Chefes de Posto "brancos" e servidores auxiliares "índios", muitos destes agindo em conjunto para tentar expulsar aqueles, com o objetivo de ganhar os cargos de chefia. Apelavam, freqüentemente, para a identidade genérica de "índio", valorizada num discurso indigenista de "índio" para "índio" contra "branco", travando intimidade com os Waimiri-Atroari para instigá-los a rejeitar os Chefes brancos e solicitar ao Coordenador da FAWA sua própria nomeação. Nessa estratégia, apropriavamse, também, da visão pejorativa que os Waimiri-Atroari guardavam a respeito de ka?amin'ja (os outros) para se incluirem com os Waimiri-Atroari na categoria ki?in'ja ("gente"), redefinindo esta palavra como "índio" genérico, embora sua dominação sobre os Waimiri-Atroari na função de servidores da FUNAI seguisse os mesmos padrões dos funcionários brancos.

Neste contexto, além de tramar intrigas com os Waimiri-Atroari contra funcionários brancos, alguns desses servidores indígenas tentaram monopolizar o comércio de artesanato local, entrando em acordos particulares com os "Capitães" para vender os produtos dos Waimiri-Atroari em Manaus e trazer bens industrializados. Avisaram também os Waimiri-Atroari que, como funcionários "índios", foram autorizados pela FUNAI a ter acesso sexual às mulheres Waimiri-Atroari [20] e, em troca, levar alguns Waimiri-Atroari a prostíbulos quando hospedados na "Casa do Índio" da FUNAI em Manaus. Entravam, finalmente, em acordos com os "Capitães" para encobrir dos Chefes de Posto e Coordenadores brancos o consumo de bebida alcoólica nos Postos Indígenas da FAWA.

Nestas tramas, a identidade de "índio" foi estendida para incluir todos os funcionários que delas participavam, independentemente de critérios étnicos: foi igualmente manipulada para excluir funcionários "índios" que delas não participavam. Para reconciliar estas contradições no uso de identidades étnicas, os funcionários envolvidos muitas vezes redefiniam a oposição "índio"/"branco" para "FUNAI"/ "branco mesmo".

Usavam também a oposição "peão" (braçal)/"branco" (funcionário em cargo de chefia).

Assim, a situação do Posto Indígena reproduzia a nível local a estrutura de poder da FUNAI e da sociedade nacional: o estabelecimento de relações assimétricas de sujeiçãodominação (Cardoso de Oliveira, 1976:55-57) entre índios e brancos genéricos, e também entre "índios" Waimiri-Atroari de um lado, e funcionários brancos e índios de outras etnias, de outro.

Os servidores indígenas da FUNAI apelavam para a identidade contraditória de "índio civilizado" para envolver os Waimiri-Atroari na luta pelo poder entre os funcionários da FAWA. Ramos menciona nessa perspectiva (1990:134) que a nomeação de índios para altos cargos da FUNAI, em decorrência do movimento indígena no Brasil a partir da década de 1970, tem todas "as características de uma faca de dois gumes", pois além de líderes indígenas que se empenham no movimento indígena terem acesso aos altos escalões da administração, "surgiu o novo personagem, o `indio funcionário', uma categoria de jovens, aparentemente oportunistas, mais interessados no emprego do que na causa indígena, que preferem se opor ao movimento a pôr em risco seus cargos..." (Ibid.).

A incorporação de "índios funcionários", ou "funcionários índios" como se autodesignavam na FAWA, em cargos braçais para a atração e sedentarização de outros grupos indígenas, tem sido uma política na área dos Waimiri-Atroari não só na FAWA mas já durante as décadas da atuação do S.P.I. nos rios Jauaperí e Camanaú. Essa prática tem suas raízes históricas na política colonial dos "descimentos" [21]. A diferença notável da situação atual é que, com o surgimento do movimento indígena, evocado por Ramos, os "funcionários índios" da FAWA apelavam para a retórica indigenista gerada por esse movimento a fim de ocultar sua manipulação de identidades étnicas e sua dominação dos Waimiri-Atroari, apresentando-se para os brancos como as pessoas mais adequadas para trabalhar junto aos índios Waimiri-Atroari por serem "índios também".

Os "funcionários índios" na FAWA desempenharam um papel em alguns aspectos parecido com aquele dos corpos de guardas indígenas "recrutados e treinados pela companhia (Peruana de Borracha)", descritos por Taussig (1983:60; 1987:47-48, 122-124), na época da borracha no rio Putumayo no início deste século: "como índios civilizados (...) incorporavam todas as diferenças de classe e de casta impostas pelo sistema produtivo..." e "...trocavam sua identidade de selvagens pelo novo status social de guardas e de índios civilizados" (1983:60).

Embora muitos servidores da FAWA recorressem a discursos indigenistas de unidade e solidariedade entre "índios" genéricos, o fato de serem funcionários da FUNAI, em si, desunia-os. A hierarquia de cargos e salários dividia-os, pela concorrência por cargos de maior salário e prestígio. Entre os "funcionários índios" de grupos étnicos diversos as rivalidades ocasionadas pela hierarquia burocrática passavam por cima de qualquer unidade baseada em identidade étnica. Eram, em primeiro lugar, funcionários da FUNAI, reservando o discurso indigenista unitário essencialmente para tramar intrigas contra funcionários brancos em cargos de chefia da FAWA e para legitimar a sua dominação sobre os Waimiri-Atroari.

Muitos dos "funcionários índios" na FAWA estavam afastados dos seus grupos étnicos havia muitos anos. Vários haviam trabalhado, antes de ingressar na FUNAI, em grandes projetos de desenvolvimento que invadiam territórios indígenas, como a construção da hidrelétrica de Balbina no rio Uatumã e da estrada Perimetral Norte na região de São Gabriel da Cachoeira. Outros haviam trabalhado como marinheiros em toda a Amazônia e em diversos empregos em Manaus.

Transmitiam para os Waimiri-Atroari todos os preconceitos pejorativos da sociedade nacional quanto ao "índio" e "caboclo" na sua forma mais acirrada, num discurso que renegava suas origens indígenas e valorizava um estilo de vida citadino, ou seja, um discurso desenvolvimentista em consonância com a ideologia integracionista e empresarial da FAWA. Como era o caso de todos os servidores, admitiam que seu interesse em trabalhar na área dos Waimiri-Atroari relacionava-se ao fato de que, sendo a área classificada como "Frente de Atração", recebiam salários dos mais altos que podiam perceber no mercado de trabalho regional. Como funcionários, predominantemente solteiros ou desligados das famílias, orientavam-se para valores de consumo, ostentando como emblemas civilizatórios rádio-gravadores e outros aparelhos elétricos, relógios e malas, identificando-se com o estilo de vida de trabalhadores itinerantes. Quando queriam convencer os Waimiri-Atroari e funcionários brancos de que eles eram "índios também", valiam-se de diacríticos "indígenas" como colares e pulseiras confeccionados para a comercialização (de qualquer grupo), inserindo na sua fala expressões como "minha maloca", enquanto se esforçavam por seguir os padrões de assalariados.

relatórios do S.P.I. revelam uma política consistente de recrutar "funcionários índios" para esta área, desde a segunda década deste século.

Os "funcionários índios" na FAWA desempenharam um papel em alguns aspectos parecido com aquele dos corpos de guardas indígenas "recrutados e treinados pela companhia (Peruana de Borracha)", descritos por Taussig (1983:60; 1987:47-48, 122-124), na época da borracha no rio Putumayo no início deste século: "como índios civilizados (...) incorporavam todas as diferenças de classe e de casta impostas pelo sistema produtivo..." e "...trocavam sua identidade de selvagens pelo novo status social de guardas e de índios civilizados" (1983:60).

Embora muitos servidores da FAWA recorressem a discursos indigenistas de unidade e solidariedade entre "índios" genéricos, o fato de serem funcionários da FUNAI, em si, desunia-os. A hierarquia de cargos e salários dividia-os, pela concorrência por cargos de maior salário e prestígio. Entre os "funcionários índios" de grupos étnicos diversos as rivalidades ocasionadas pela hierarquia burocrática passavam por cima de qualquer unidade baseada em identidade étnica. Eram, em primeiro lugar, funcionários da FUNAI, reservando o discurso indigenista unitário essencialmente para tramar intrigas contra funcionários brancos em cargos de chefia da FAWA e para legitimar a sua dominação sobre os Waimiri-Atroari.

Muitos dos "funcionários índios" na FAWA estavam afastados dos seus grupos étnicos havia muitos anos. Vários haviam trabalhado, antes de ingressar na FUNAI, em grandes projetos de desenvolvimento que invadiam territórios indígenas, como a construção da hidrelétrica de Balbina no rio Uatumã e da estrada Perimetral Norte na região de São Gabriel da Cachoeira. Outros haviam trabalhado como marinheiros em toda a Amazônia e em diversos empregos em Manaus.

Transmitiam para os Waimiri-Atroari todos os preconceitos pejorativos da sociedade nacional quanto ao "índio" e "caboclo" na sua forma mais acirrada, num discurso que renegava suas origens indígenas e valorizava um estilo de vida citadino, ou seja, um discurso desenvolvimentista em consonância com a ideologia integracionista e empresarial da FAWA. Como era o caso de todos os servidores, admitiam que seu interesse em trabalhar na área dos Waimiri-Atroari relacionava-se ao fato de que, sendo a área classificada como "Frente de Atração", recebiam salários dos mais altos que podiam perceber no mercado de trabalho regional. Como funcionários, predominantemente solteiros ou desligados das famílias, orientavam-se para valores de consumo, ostentando como emblemas civilizatórios rádio-gravadores e outros aparelhos elétricos, relógios e malas, identificando-se com o estilo de vida de trabalhadores itinerantes. Quando queriam convencer os Waimiri-Atroari e funcionários brancos de que eles eram "índios também", valiam-se de diacríticos "indígenas" como colares e pulseiras confeccionados para a comercialização (de qualquer grupo), inserindo na sua fala expressões como "minha maloca", enquanto se esforçavam por seguir os padrões de assalariados.

Na FAWA, eram os funcionários "índios" que tinham contato mais direto e contínuo com os Waimiri-Atroari, inseridos como subdominadores que impunham as ordens de trabalho dos Chefes de Posto brancos aos Waimiri-Atroari. Estes tiveram também contatos esporádicos com indigenistas "alternativos", principalmente do sul do Brasil, como ocorreu durante visita de um Grupo de Trabalho da FUNAI em 1985. Estes indigenistas também lhes apresentavam discursos incentivando a criação de unidade entre "índios". Sua retórica diferia da dos servidores somente por estar desvinculada da luta pelo poder na FAWA. Entretanto, visando unificar "índios" (pensados genericamente, e incluindo os funcionários "índios" da FAWA) contra "brancos", essa retórica reproduzia uma mesma linha ideológica no sentido de pregar uma unidade imaginária do ponto de vista dos Waimiri-Atroari que, na realidade, sofriam as relações de sujeição-dominação impostas pelos servidores da FAWA. Esse discurso negava, assim, tanto a situação de extrema desigualdade entre funcionários "índios" e "índios" Waimiri-Atroari, quanto a criada e sustentada pela política local da FUNAI entre "Capitães" e os demais Waimiri- Atroari.

No contexto de tão complexos jogos de identidades étnicas acirrados pela FAWA, era sempre evidente que a minha presença - como pesquisador e inglês - predeterminava o tipo de discurso que os agentes sociais me forneciam ao se dirigirem a mim na categoria de "branco". A época em que realizei pesquisa coincidia com o momento histórico em que muitos funcionários "índios" começavam a adotar a retórica do movimento indígena. Desde minha chegada à área, muitos funcionários "índios" apresentavam-me aos Waimiri-Atroari como "branco", da mesma maneira que classificavam qualquer pessoa que chegava à FAWA, ou como "índio" em sentido valorizado, ou como "branco" em sentido pejorativo.

Em várias ocasiões ouvi funcionários "índios" dizer para os Waimiri-Atroari que eu era "branco" e que eram "meus parentes" que os tinham matado no passado, enquanto eles eram "índios também". Isso levou os Waimiri-Atroari a construir um discurso de "índio" genérico para "branco" quando se dirigiam a mim.

Os funcionários indígenas da FAWA, ao redefinirem a oposição ki?in'ja ("gente", "nós") / ka?amin'ja ("os outros") para se incluirem na primeira categoria (traduzindo ki?in'ja por "índio" em oposição a "branco") invocavam diversas identidades étnicas regionais e sua qualidade de "brasileiros" para convencer os Waimiri-Atroari de que eram "índios" como eles, e que eu era "branco" ou "branco mesmo". Os Waimiri-Atroari começavam, assim, a me chamar de "branco", "branco mesmo", "inglês", "gringo", "estrangeiro", "não é da FUNAI", "não é funcionário" e outras identificações com conotação pejorativa num discurso estereotipado de "índio" para "branco" construído por funcionários "índios" da FUNAI, incomodados por minha presença, sobretudo, pelo fato de eu estar presenciando acontecimentos que eles tentavam esconder dos funcionários brancos em cargos de chefia.

Alguns funcionários brancos da coordenação da FAWA também se revelavam constrangidos por minha pesquisa, temendo críticas à sua atuação indigenista e ao modelo de repressão histórico-cultural da FAWA. Preocupavam-se em controlar o meu acesso a informações, sobretudo com relação a visitas à área indígena de representantes do grupo empresarial Paranapanema e de militares, instruindo os Capitães e jovens Waimiri-Atroari a esconder de mim aqueles aspectos da política indigenista que julgavam censuráveis.

 

Epidemias e Feitiçaria Branca

Os relatos dos Waimiri-Atroari sobre o seu passado recente enfocavam as epidemias e a conseqüente revolta contra as "frentes de pacificação" que penetraram em suas terras. Esta referência surgia, na maioria das vezes, no contexto dos aldeamentos, como tentativas de se defenderem das agressões verbais dos servidores da FAWA (tanto "índios" quanto "brancos"), que exigiam explicações, responsabilizando-os pelos ataques contra os Postos Indígenas e mortes de seus colegas no início da década de 1970. Nessas ocasiões, os Waimiri-Atroari tentavam defender-se dessas acusações produzindo explicações aceitáveis daqueles acontecimentos no quadro da retórica oficial da FAWA (sobre a qual voltaremos na parte seguinte deste artigo). Entre si, porém, muitos Waimiri- Atroari referiam-se a doenças como a conseqüência de feitiços dos "pacificadores" da FUNAI, apesar de que os Capitães principais e jovens Waimiri-Atroari censuravam esta explicação, como também os funcionários da FAWA.

As estimativas da população Waimiri-Atroari nas décadas anteriores à instalação da FAWA são muito contraditórias. Hübner e Koch-Grünberg (1907:232) mencionam "6.000 índios no rio Jauaperí, segundo os brasileiros". Entretanto, a população regional à qual eles se referem estava em guerra com os Waimiri-Atroari nessa época e havia acabado de convencer o governo local a realizar uma expedição punitiva contra eles (Ibid. p.229), tendo, por isso, um interesse óbvio em apresentar uma estimativa alta de sua população.

Segundo o Censo Indígena do S.P.I., de agosto de 1959, havia 957 Waimiri-Atroari em contato com os Postos Indígenas de Camanaú e Alalaú. Não há, porém, estimativa da população indígena que não estava em contato com esses Postos. O Sertanista da FUNAI, Gilberto Pinto Figueiredo Costa, que percorrera extensivamente o território Waimiri- Atroari além de sobrevoar suas aldeias, admitiu, em 1973, que "A Frente de Atração não possui dados reais sobre o número de indígenas ... Contudo, estimativas do signatório do presente Relatório, dão como de 600 a 1.000 o número de índios" [22]. Em 1983 sobreviviam menos de 350 Waimiri-Atroari.

As referências que os Waimiri-Atroari faziam ao seu passado trágico de violências e epidemias apareciam em formas diversas, como em seqüências genealógicas, topônimos, ou relatos de rituais intercomunitários. Todos esses fragmentos históricos revelavam mortes em massa como um leit-motiv. Freqüentemente, citavam também longas listas de nomes de pessoas falecidas, pontuadas por um comentário lacônico: Ka?amin'ja aita'kahapa, "os civilizados mataram".

No Posto Indígena Maré do rio Camanaú, em 1982, o jovem Waimiri-Atroari Djacir contou-me, numa mistura da língua Waimiri-Atroari e português quebrado:

Os civilizados mataram. Veneno [23]. Os civilizados flecharam com feitiço, veneno ... [24]. Pai muito quente, doente. Mãe quente muito. Febre, está com febre, catarro muito. Febre, doente. Cabeça dói ... Capitão levou flecha. Mulher não tem todo mundo. Mulher morreu. Flechas. Muitas flechas. Lanças [25].

Suas declarações e as de outros Waimiri-Atroari revelam que as epidemias que se espalharam de uma aldeia para outra esfacelando a população indígena foram interpretadas como uma forma de feitiçaria dos civilizados, em que estes (ou espíritos emanados destes, como veremos a seguir) os flecharam com feitiços que agiam como um veneno nos seus corpos.

Certa noite, no Posto Indígena Abonari, o Capitão Mauro relatou: "Lá na maloca apodreceram muitos de nós. Espíritos de civilizados. Medo. Meu pai morreu" [26]. Mauro deu uns assobios, à maneira de como os xamãs Waimiri-Atroari invocavam espíritos no escuro da noite, lembrando da época em que as epidemias se alastravam pelas aldeias:

De noite, no escuro, espíritos de civilizados. Os civilizados mataram. Doente, veneno, dores no corpo. Havia muitos (espíritos de) civilizados lá na maloca.

Acabaram com os velhos. Os (espíritos de) civilizados os mataram. Mataram os velhos. Acabaram com eles. Botamos o corpo do meu pai na fogueira. Ele tinha morrido. Cremamos. No passado cremamos muitos na fogueira. De noite, no escuro, havia muitos (espíritos de) civilizados lá na maloca [27].

Essa interpretação das epidemias fundamenta-se na teoria de feitiçaria Waimiri- Atroari, em que os espíritos de agressores podem flechar suas vítimas com um veneno ou substância patogênica que os leva a sentir dores em todo o corpo, freqüentemente chegando a falecer. Os xamãs Waimiri-Atroari tinham o poder de perceber os ataques dos espíritos feiticeiros dos "brancos", cujas vozes se manifestavam, mediados pelos xamãs Waimiri- Atroari nos ritos xamanísticos, dirigindo suas invectivas contra os Waimiri-Atroari e assumindo sua responsabilidade pelas mortes entre estes, de noite, no escuro da floresta.

O Capitão Miguel, também presente na noite da minha conversa com Mauro, deu uns assobios fortes e acrescentou:

O pai de Mauro morreu também. O irmão mais velho da mulher de Mauro morreu. Os civilizados os mataram ... No passado, nós éramos muitos. Muitas aldeias foram extintas. Dores no corpo. Fugimos com medo ... Extinguiram-nos há muito tempo, no escuro da noite [28].

Depois, Miguel silvou com força e emitiu sons: "Uichchch! Uichchch! Uichchch!" lembrando os que pontuam o momento em que os xamãs incorporavam espíritos.

Para esclarecer minhas dúvidas, perguntei-lhes se os (espíritos de) civilizados se manifestavam nas aldeias durante o dia. Miguel respondeu: "De dia, não. De noite havia muitos. Os (espíritos dos) civilizados são bravos. Mataram-nos. De noite os civilizados vinham" [29]. Mauro prosseguiu: "Quando nos tinham matado, os (espíritos dos) civilizados voltaram para Manaus" [30]. Mauro citou a seguir os nomes de muitas pessoas falecidas, acrescentando que cremaram todos os corpos: "Eles lançaram dores no corpo. Os civilizados lançaram dores no corpo" [31]. Mauro deu mais assobios, vários estalidos da língua e mais silvos fortes:

Eu fiquei com medo. Os civilizados são bravos. De noite os (espíritos dos) civilizados vinham matar. Os civilizados matam. Matavam com veneno, dores em nossos corpos, veneno [32].

Em todos os aldeamentos, os Waimiri-Atroari se referiam a 'Kamtxa ("dores no corpo") e usavam a expressão Ka?amin'ja txi'kwahapa ("os civilizados flecharam") quando contavam das ondas de mortes que se alastravam pelas aldeias na época da construção da BR-174. No aldeamento do Posto Indígena Alalaú Primeiro, um grupo de Waimiri-Atroari estava conversando a respeito de mortes ocorridas em 1971-72 e Fausto, um jovem, comentou assim a morte de uma mulher: "Dores no corpo. Os civilizados a flecharam" ("'Kamtxaji. Ka?amin'ja txi'kwahapa"). Em outra ocasião, neste mesmo aldeamento,

Anselmo, um homem de meia-idade, estava deitado na rede reclamando de dores nas costas, vômitos e diarréia. Apontou as costas e murmurou com olhos assustados:

"'Kamtxa". O Capitão André esclareceu-me: "No passado era assim. Dores no corpo, ...

'Kamtxa matava. Primeiro dói nas costas, na cabeça, nas pernas também, no nariz também ...".

Na situação de crise ocasionada pelas epidemias que se seguiram aos contatos com os invasores ka?amin'ja, os Waimiri-Atroari haviam assim recorrido ao meio mais próximo que existia no seu mundo cultural para explicar mortes em tais circunstâncias, isto é, as acusações de feitiçaria: primeiro dirigidas contra membros de outras aldeias e, rapidamente, quando as epidemias se espalharam entre todas as aldeias, contra os "brancos".

O sistema de feitiçaria Waimiri-Atroari deve ser melhor entendido a partir da construção espacializada da alteridade social que o sustenta. Na época em que iniciei pesquisa de campo com os Waimiri-Atroari, não existiam mais aldeias independentes da FAWA. Conforme os depoimentos indígenas e a avaliação pelo número e distribuição de capoeiras e aldeias recentemente abandonadas, nos anos imediatamente anteriores ao estabelecimento da FAWA, havia três aglomerações principais de aldeias, interligadas por vários caminhos grandes. Cada aldeia consistia de uma habitação comunal, de forma redonda ou elíptica, e suas roças. Cada aglomeração de aldeias ocupava a bacia de um dos rios da região: Camanaú, Alalaú, e Igarapé Santo Antônio de Abonari [33].

Como outros grupos indígenas da região güianense (Rivière, 1984), os Waimiri- Atroari consideravam suas aldeias como se fossem unidades quase autônomas econômica e politicamente, baseadas numa dicotomoia básica entre "dentro" e "fora" - por um lado, 'aska ("os verdadeiros parentes"), por outro lado, baixi'ra, 'amba mydy'tany ("povo de outra aldeia"). A expressão a'jaska [34] abrange co-residência e laços de parentesco cognático, que são muitas vezes, mas não sempre, superpostos [35]. A expressão abaixi'ra [36], 'amba mydy'tany, que abrange todas as pessoas consideradas a'jaska ka'by (não 'aska), é usada com referência a indivíduos de outros grupos locais Waimiri-Atroari, com exceção daqueles considerados parentes cognáticos próximos do falante. Co-residentes que passam a morar em outras aldeias deixam de ser a'jaska, a não ser que sejam considerados parentes cognáticos próximos. A terminologia de parentesco Waimiri-Atroari é uma variante do tipo dravidiano e o matrimônio preferencial ocorre entre primos cruzados bilaterais.

A dicotomia 'aska / baixi'ra reflete-se na marcada preferência que os Waimiri- Atroari expressam pela endogamia a nível de aldeia e, quando esta não é possível por razões demográficas, na endogamia a nível de grupo de aldeias próximas. Pessoas de outras aldeias eram tratadas com muita desconfiança, sobretudo as de aldeias distantes, sendo o alvo mais comum de acusações de feitiçaria. Os Waimiri-Atroari insistiam nas dificuldades de um indivíduo ser aceito por membros de aldeias distantes e de realizar casamentos com pessoas de longe. O Capitão Dalmo relatava, freqüentemente, que Amélio, seu parente cognático próximo e antigamente co-residente, que após um atrito entre membros da sua aldeia, fugira do vale do rio Alalaú para o vale do rio Camanaú, era maltratado pelos Waimiri-Atroari de lá.

O surgimento de animosidades numa aldeia Waimiri-Atroari era resolvido por cisão, o que continuava acontecendo nos aldeamentos da FAWA, apesar da intermediação dos funcionários da FUNAI. Neste aspecto, a aldeia Waimiri-Atroari era parecida com a aldeia Tiriyó descrita por Rivière: hostil a "divisões dentro de si" (1970:253), concebida como uma unidade fechada e autônoma (1984:72) opondo socialmente o "dentro" ao "fora" através do idioma da feitiçaria (1970:254), e associando, assim, doença e morte às visitas de forasteiros (1969:30).

Foi, portanto, a partir desse modelo que, com a eclosão de epidemias e mortes, os Waimiri-Atroari dirigiram suas acusações de feitiçaria, primeiro, a membros de outras aldeias, e depois aos civilizados. Como atestam os documentos históricos, eles já tinham uma longa história de dizimação por epidemias e massacres. Em 1928, os indígenas do rio Alalaú informaram assim ao Encarregado do Posto Indígena do S.P.I. que haviam matado invasores, porque o contato com estes "tinha empestado eles de catarro e morreram muitos parentes d'eles", além dos mesmos invasores terem atirado contra eles [37].

É interessante, finalmente, sublinhar a perenidade desse modelo de interpretação das doenças: nos aldeamentos da FAWA, muitos Waimiri-Atroari continuavam explicando doenças como a conseqüência de atos de feitiçaria, acusando os brancos ou os habitantes de outros aldeamentos. "Está doente. Os civilizados o flecharam" [38], foi o que comentaram no Posto Indígena Taquari, na minha presença, sobre um homem que estava com dores. No dia seguinte, alguns funcionários trouxeram o Capitão Dalmo do Posto Indígena Terraplenagem, com o intuito de reforçar sua posição de "Capitão geral" sobre todos os Waimiri-Atroari. Alguns dos habitantes de Taquari estavam com dor de barriga e, quando Dalmo e sua comitiva entraram nas habitações do aldeamento de Taquari, uma mulher resmungou, publicamente, que Dalmo e as pessoas do seu aldeamento é que os haviam acometido com essas dores.

Apesar da forte censura imposta pelos servidores da FAWA e os Capitães principais, foi a permanência desse modelo de interpretação das doenças que permitiu o resgate de fragmentos da história da "pacificação" via relatos de epidemias.

Freqüentemente, os mesmos Waimiri-Atroari apresentavam explicações das epidemias que incorporavam, simultaneamente, as versões dos servidores a respeito de "doenças" anônimas e as dos Waimiri-Atroari sobre "feitiços" dos brancos. Quando os funcionários lhes cobravam explicações sobre os ataques aos Postos Indígenas, ofereciam-lhes versões na linguagem que estes exigiam deles, referindo-se a "doenças" e responsabilizando indivíduos Waimiri-Atroari como "índios bravos" que deviam ser eliminados ou transformados em "índios civilizados".

Reescrevendo a "Pacificação": Os Relatos dos "Capitães Principais" da FAWA Após esboçar as características do cargo de "Capitão" na FAWA, passo a examinar aqui alguns relatos dos contatos dos Waimiri-Atroari com o esquema de pacificação da FUNAI no período entre a instalação da FAWA e o estabelecimento de alguns jovens Waimiri-Atroari nos Postos Indígenas (1970 a 1978). Estes relatos revelam que houve uma reinterpretação da "pacificação" por estes Capitães, oferecendo uma versão "indígena" que fosse aceitável pelos funcionários da FAWA e em conformidade com as suas próprias versões, a fim de legitimar a atuação da FAWA tanto no passado como no presente.

Os servidores da FAWA implantaram o cargo de "Capitão", escolhendo, entre os primeiros homens jovens Waimiri-Atroari que visitavam os Postos Indígenas, aqueles que se mostraram mais propensos a permanecer e seguir o estilo de vida imposto. Recrutavam estes jovens e os investiam de poder e prestígio político no sistema de "pacificação" da FUNAI.

Os funcionários aproveitaram-se do desaparecimento da maioria dos velhos que tinham autoridade outorgada pelo consenso da sua própria sociedade para justificar a nomeação de "Capitães" jovens. Contudo, alguns velhos sobreviveram, inclusive líderes que antes tinham autoridade nas suas aldeias, mas foram eliminados do jogo político, tanto pelos funcionários da FUNAI, quanto pelos Capitães Waimiri-Atroari. Aqueles que, no passado, mostraram resistência à ocupação do seu território foram particularmente censurados na organização sócio-política da FAWA. Os Capitães constantemente recebiam favores dos servidores da FUNAI, com acesso privilegiado a bens manufaturados, proporcional à sua disposição para se submeter. Desempenhavam o papel de agentes interculturais a serviço da FAWA, transmitindo as ordens da equipe de funcionários para os demais Waimiri-Atroari. Ao incorporarem estes jovens Waimiri-Atroari na FAWA como subdominadores, os funcionários prepararam um deles e seu irmão como Capitão principal e substituto, encarregados de transmitir as ordens da administração a todos os outros Waimiri-Atroari, inclusive aos outros Capitães.

O Capitão principal, Dalmo, veio para o Posto Indígena Terraplenagem, à beira da BR-174, em abril de 1978, depois da morte de sua mãe (o pai morrera vários anos antes) e de conflitos na aldeia em que residia [39]. Segundo uma publicação da FUNAI, Dalmo foi escolhido pelos servidores da FAWA para ser uma pessoa que "desempenha as funções de `embaixador'..." e de "...intérprete da missão pacificadora dos brancos" [40].

Era uma época em que a população Waimiri-Atroari estava assolada por epidemias, já muito dizimada e entrando em colapso social. Os esforços dos líderes e xamãs para afastar os invasores com ataques aos Postos Indígenas em 1973 e 1974 mostraram-se ineficazes, tendo como conseqüência demonstrações de força bélica por parte do Exército e um aumento do número de funcionários da FUNAI armados nos Postos. A partir do final de 1975, segundo estatísticas da FUNAI, recomeçaram as visitas dos Waimiri-Atroari aos Postos. Durante os anos seguintes, os sobreviventes visitavam os Postos com mais freqüência e duração, trazendo notícias de ondas de mortes que continuavam a devastar as aldeias.

No Posto Indígena Terraplenagem, geralmente acompanhado por outros jovens que também perderam seus pais nas epidemias, isolado dos homens mais velhos que desfrutavam de autoridade na sua sociedade, Dalmo foi exposto a uma doutrinação intensiva pelos funcionários da FUNAI, que se encarregavam de "ensinar-lhe" a se conformar às suas idéias a respeito do que é um "Capitão", "Chefe", "Cacique" ou "Tuxaua" indígena. Considerando que os funcionários não encontraram entre os Waimiri- Atroari um "Capitão" que correspondesse às suas expectativas, eles se empenhavam em criar um por completo.

Nas aldeias tradicionais, os líderes idosos tinham uma autoridade que raramente se estendia além do grupo local. Não encontrando um modelo de poder centralizado e abrangente na sociedade Waimiri-Atroari, os funcionários da FUNAI atribuíram poderes a Dalmo e seu irmão Dario, dentro da administração da FAWA, para estabelecê-los como Capitães com autoridade sobre todos os aldeamentos. No início, os Waimiri-Atroari sobreviventes de aldeias distantes da de Dalmo e Dario não os aceitavam, mas, à medida em que a administração ia aumentando seu controle sobre eles, consolidaram-se os cargos do Capitão principal e do seu irmão.

Os jovens Capitães foram definidos e colocavam-se em oposição aos homens mais idosos, desprezando-os. Um Chefe do Posto Terraplenagem mandou construir para Dalmo uma casa no estilo do Posto, com teto de zinco. Posteriormente, Dalmo e Dario pediram casas de alvenaria à empresa mineradora Paranapanema, que invadiu a área indígena. A empresa entregou-lhes as casas em 1988, construídas nos aldeamentos onde residem os Capitães principais. Tanto Dalmo como Dario adotavam um comportamento próprio para se distinguir dos demais Waimiri-Atroari, como evitar participar dos ritos e modelar seu comportamento ao do Chefe do Posto com relação aos servidores braçais. Demonstravam uma preocupação constante com a hora e o cumprimento do horário de serviço, ostentavam relógios e rádio-gravadores e seguiam o estilo de vida prescrito pelos funcionários da FUNAI.

A posição de Dalmo era única na FAWA. A conversa de todos os servidores era permeada por referências a ele. Com o irmão Dario, nomeado Capitão do aldeamento Xerí pelo Coordenador da FAWA que mandou implantá-lo, foi transformado em porta-voz da administração indigenista para todos os Waimiri-Atroari. Disse-me um funcionário branco:

Desde o início deram tratamento especial para o Dalmo. Compraram aqueles calções chiques americanos para ele. Levaram ele para Manaus. Deram muitas coisas para ele, até que ele ficou assim ... Trataram Dalmo como se ele fosse especial, e ele acabou achando que ele é ... Otávio (um Chefe de Posto) levava Dalmo para Manaus, pagava hotel para Dalmo. Zé Maria (um Chefe de Posto anterior) deixou Dalmo dirigir carro.

À medida em que Dalmo se aproximava dos padrões de comportamento dos servidores, dominava a língua portuguesa e a retórica da FAWA e se mostrava disposto a se subordinar aos funcionários, estes se referiam a ele como "mais inteligente", "mais esclarecido", "mais entendido" e "mais adiantado" que os demais Waimiri-Atroari. Em função de suas declarações, a inteligência de Dalmo era assim avaliada pelos agentes da FUNAI numa escala de apreciação mínima/máxima inscrita na oposição "índio"/"branco", como se as relações de sujeição-dominação nas quais o seu papel era construído fossem traduções de leis da evolução natural. Nessa base, os funcionários delegaram também a Dalmo e Dario o poder de "ensinar" aos outros Waimiri-Atroari, embora os dois tivessem que aceitar serem "ensinados" pela FUNAI.

Examino agora alguns depoimentos destes dois Capitães principais, Dalmo e Dario, que revelam suas imagens do branco na época de "pacificação" e sua visão da história recente do seu povo. Os Waimiri-Atroari, sobretudo os Capitães e jovens, apresentavam, nas suas referências ao passado dirigidas aos funcionários e a mim, versões da "pacificação" que incorporavam, quase exclusivamente, os personagens da FAWA.

Raramente mencionavam o ataque contra a equipe de pacificação do padre Calleri, em 1968. Os membros dessa equipe anterior, com exceção de um [41], todos mortos no ataque, não eram conhecidos pelos funcionários da FAWA. Por outro lado, os servidores da FUNAI lembravam-nos constantemente do Sertanista Gilberto Costa e outros colegas que morreram no início da década de 1970, porque os haviam conhecido. Assim, os funcionários da FAWA dirigiram a elaboração de uma "história oficial" da pacificação entre a FAWA e os Capitães principais.

Certa vez, em 1983, vários Waimiri-Atroari do aldeamento Xerí conversavam entre si sobre as mortes nas aldeias durante os primeiros anos da FAWA. O Capitão Dario, ao ver que eu estava escutando, dirigiu-se a mim [42]:

Começou quando Gilberto entrou. Gilberto trouxe doença. Muita gente morreu. Comprido [43] ficou com raiva. Pai de Comprido morreu, aí Comprido matou Gilberto. Começou tudo. Todo mundo morreu. Pai de Wilson morreu, pai de Clotilde, pai da minha mulher, pai de Gentil. Aí Comprido ficou puto. Ele falou: `Este traz doença. Eu quero matar logo'.Doença começou lá no Camanaú. Gilberto passou a `travessia' [44].

Esta fala de Dario abrangia elementos que eu ouvira no discurso dos servidores da FUNAI, associando as mortes de Waimiri-Atroari durante a "pacificação" às visitas de Gilberto Costa, e explicando-as como conseqüência de uma contaminação involuntária por "doença". Os funcionários repetidamente cobravam dos Waimiri-Atroari uma explicação para a morte do Sertanista, "culpando" exclusivamente Comprido pelo que eles julgavam ser uma agressão arbitrária. Dario também responsabilizava Comprido pela morte de Gilberto Costa, oferecendo uma versão em conformidade com as versões dos funcionários da FUNAI e distinta das interpretações dos outros Waimiri-Atroari, em termos de uma resposta do grupo a uma agressão maléfica dos brancos (feitiçaria maxki).

Dario relatou que ele morava então numa aldeia próxima à "travessia", na margem esquerda do rio Alalaú, onde se encontrava no momento dos acontecimentos:

Todos morreram dentro de poucos dias, depois que Gilberto foi lá. Primeiro passou Gilberto. Gilberto passou lá no Alalaú. Nós fomos na `travessia' ver. Voltou, pegou doença e aí começou. Não queimaram os mortos, estavam com medo. Deixaram morrer e aí vai embora outro lugar.Ficou todo mundo chorando. Demóstenes pegou. Ele passou um mês para ficar bom. Eu peguei, passou logo, dez dias para ficar bom. Peguei só gripe. Foram lá na `travessia'. Primeiro pegou gripe, depois pegou outro e morreu. Eu não vi Gilberto, não. Eu estava lá na minha casa ... Morreram muitos quando entrou a estrada. Morreu até o Comprido ...

Neste relato, dirigido a mim classificado como "branco", Dario fez questão de se dissociar do ataque em que Gilberto morreu, defendendo-se da possibilidade de que eu o incriminasse, como fazia a maioria dos servidores da FAWA. Dario justapôs a interpretação dos funcionários das epidemias como "gripe" à representação Waimiri- Atroari em termos de "depois pegou outro e morreu", uma alusão à feitiçaria branca. Ele apresentava, assim, um discurso que incorporava as duas explicações, apesar de ele, como um dos Capitães principais da FAWA, censurar fortemente a versão Waimiri-Atroari reduzida a uma evocação muito alusiva.

Poucas semanas depois, no Posto Indígena Terraplenagem, alguns Waimiri-Atroari e eu estávamos folheando um livro. Quando Dalmo viu uma fotografia do Sertanista Gilberto Costa, interpolou:

Comprido queria matar Gilberto porque ele falou, `Depois que aquele homem gordo entrou, morreu muita gente'. Achou que ele matou ... Quando aquele homem gordo entrou na nossa terra morreu muita gente. Morreram todos os velhos e só ficou Comprido. Aí Comprido ficou com raiva. Ele achava que era `branco'... Eu fui morar em Terraplenagem primeiro. Não sabia que era FUNAI. Achava que era `branco mesmo'. Eu fiquei em Terraplenagem com raiva.

O Capitão Dalmo, como seu irmão Dario, referia-se a estes acontecimentos do passado numa linguagem que refletia a manipulação de identidades étnicas dos funcionários da FAWA no presente. Sua fala, impregnada com o conceito de "branco" propagado por muitos funcionários "índios" da FAWA, traduzia a oposição ki?in'- ja/ka?amin'ja dos Waimiri-Atroari para a de "índio"/"branco" da FAWA. Dalmo expressava esta reinterpretação, também, na oposição "FUNAI"/"branco mesmo". Assim, a maioria dos servidores "índios" redefiniu para os Waimiri-Atroari os ataques contra os Postos Indígenas dos anos 70 em termos da oposição "índio"/"branco", acusando os brancos, e não os funcionários índios da FUNAI, de serem responsáveis pelas mortes de Waimiri-Atroari no passado. Além disso, estes servidores usavam esta manipulação para canalizar descontentamento contra aqueles indivíduos que designavam como "brancos".

Acionavam esta oposição, repetindo a fórmula "Branco não presta", inserida constantemente na sua fala dirigida aos Waimiri-Atroari, associada à expressão "Eu sou índio também".

Os servidores censuravam Comprido veementemente, usando-o como bode expiatório para dirigir contra ele seu rancor pela morte de colegas nos ataques contra os Postos Indígenas. Também Dalmo e Dario, reproduzindo a história oficial da FAWA, apresentavam versões da morte do Sertanista, insistindo em atribuir sua responsabilidade exclusiva a Comprido.

Certa ocasião, contei para Dalmo que, quando passara pela BR-174 que ainda estava em fase de construção (em outubro de 1976), eu vira cinco homens Waimiri-Atroari no local do Posto Indígena Terraplenagem, onde a estrada atravessa um dos seus caminhos.

Dalmo relatou:

Tinha muita gente que veio aqui no Posto, aqui na estrada. Morreu tudo. Morreu minha mãe. Maxi, tipo veneno. Comprido pensou assim. Comprido pensou que `branco' matou com veneno. Já faz muito tempo, já. Aqui não tinha estrada, não. Primeiro FUNAI abriu Posto, aquela gente morreu, maxi, `bomba'.

Indaguei a respeito da "bomba" [45], pois em diversas ocasiões presenciei servidores índios da FAWA dizendo para os Waimiri-Atroari que os brancos haviam jogado bombas neles e usado veneno para matá-los [46]. Perguntei a Dalmo se houvera estrondo e se passara avião. Dalmo respondeu: "Não, não tem barulho, não. 'Kamtxa, veneno".

Dalmo me relatou que, certa vez, após a instalação do primeiro Posto Indígena Alalaú II (1972), um grupo de homens da sua aldeia foi convidar os habitantes de outra aldeia próxima, localizada a poucas horas da margem direita do rio Alalaú, para participar de ritual de maryba [47]. Encontraram só cadáveres:

Tinha gente morta na rede, já podre. Nós tínhamos medo porque achávamos que era `branco' que matou [48]. Voltamos. Depois alguém foi lá e queimou a maloca. Já tinha FUNAI neste lado [49]. Comprido ficou com raiva porque ele achou que foi `branco' que matou. Por isso Comprido ficou com raiva.

Dalmo, como Capitão principal, usava a linguagem dos funcionários "índios" da FAWA no seu relato da história recente do seu grupo, incessantemente dividindo os seus protagonistas entre "brancos" e "índios" genéricos para desculpar a FUNAI das mortes de Waimiri-Atroari e incriminando Comprido ao destacá-lo como o responsável pelos ataques contra os Postos Indígenas e as mortes dos seus servidores. Os funcionários concebiam os ataques contra os Postos dos anos 70 como assassínios perpetrados contra "indivíduos" inocentes. Exigiram que os Waimiri-Atroari culpassem os "indivíduos" responsáveis [50], reduzindo sua luta coletiva para sobreviver dentro dos códigos de violência criminal da sociedade nacional, a atos de indivíduos perpetrados contra outros indivíduos [51].

Os Capitães Dalmo e Dario, ao assumirem as atitudes dos servidores da FAWA, censuravam a explicação das epidemias como feitiçaria "branca" que deu origem a uma revolta armada dos Waimiri-Atroari contra os invasores de suas terras. Por haverem internalizado o sistema de poder instaurado pela FUNAI, do qual eles se tornaram parte, refutavam a interpretação indígena que desafiava este sistema. Sua "reescrita" da história recente pelo prisma da ideologia da FAWA refletia a manipulação das categorias interétnicas para inocentar a FUNAI da contaminação, acusando brancos genéricos e não os funcionários "índios" da FAWA. Ao apresentarem as mortes nas aldeias em termos de "doença" anônima, os Capitães principais reforçavam a criação de um bode expiatório na forma de um líder antigo, Comprido [52], dando-o como autor de matanças arbitrárias, uma explicação baseada na imaginação branca a respeito de "índios bravos".


 
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