Esclarecimento, desencantamento e instrumentalização
da vida e a onda de corporalidade

 

José Geraldo Pedrosa*

 

 

RESUMO

O objeto de reflexão deste texto é o que se define como onda de corporalidade, essa crescente preocupação dos indivíduos com a estética do corpo.

A questão fundamental, em torno da qual o raciocínio é desenvolvido é a seguinte: o que motiva essa onda de corporalidade e que relação estabelece com a formação do indivíduo? A reflexão é realizada com base em três idéias desenvolvidas pelo sociólogo alemão Max Weber: esclarecimento, desencantamento e instrumentalização. Com base nesse repertório, a hipótese é de que, num mundo sem encantos e no qual prevalece a lógica dos fins e a calculabilidade, o indivíduo passa a buscar sentido naquilo que ele ainda supõe que lhe resta: seu próprio corpo, que passa a ser objeto daquela adoração que Auguste Comte almejaria que o indivíduo dedicasse à sociedade, como forma específica de religião.

Palavras-chave: Max Weber, coporalidade, instrumentalização da vida.

 

ABSTRACT

This article can be defined as a "bodymania" ware in the increasing concern about the aesthetic of the body in our society. The main point to be developed is: what the main cause of this growing concern is and what the relations to be established with the individual formation are. The reflexion is based upon three ideas originally developed by a German sociologist Max Weber: enlightenment, disenchantment and instrumentation. From this repertoire , this hypothesis is that in a world without any charm, where the logic of the ends and the calculability reigns, the individual starts searching for meaning in the place that he still believes he possesses: the body, that now becomes the worship object, as once August Comte, with the same kind of worship , man should devote to society, as a specific form of religion.

Key-words: Max Weber, "bodymania", instrumentation of life.

 

Introdução

Este artigo se propõe a refletir sobre a relação entre corporalidade e formação, tendo como referência algumas das idéias presentes no repertório de Max Weber. O que aqui se denomina questão da corporalidade é a expansão, nas últimas décadas, da preocupação dos indivíduos com a estética do corpo.

Talvez a forma mais contundente de manifestação dessa corporalidade seja a expansão das práticas esportivas, a proliferação das academias de ginástica ou o hábito cada vez mais comum da prática de exercícios com o corpo. Mas essa corporalidade se manifesta também através da proliferação da indústria de cosméticos e dos equipamentos cada vez mais sofisticados e que permitem a modelagem de partes específicas do corpo; do surgimento de recursos clínicos como as técnicas de bronzeamento artificial, as cirurgias para eliminação de "excessos" ou de "pequenos desvios", os implantes de próteses de silicone etc.

O que motiva essa onda de corporalidade, típica das últimas décadas? Que relação ela estabelece com a formação do indivíduo? Neste artigo, a reflexão sobre essas questões será realizada com base em idéias desenvolvidas pelo sociólogo alemão Max Weber, pensador social que desenvolveu suas idéias tendo como referência o ambiente predominante no mundo ocidental do final do século XIX e início do século XX. Seus temas prediletos incorporam questões como a especificidade da cultura ocidental, o desenvolvimento do capitalismo e sua relação com o progresso das ciências, a expansão da racionalidade instrumental e a burocracia. A rigor, não existem, no pensamento social e epistemológico de Weber, tematizações específicas sobre a corporalidade. A despeito dessa ausência, uma hipótese aqui adotada é de que é possível resgatar do pensamento Weberiano determinadas concepções que podem contribuir para uma análise dessa onda de corporalidade. De maneira específica, este artigo busca refletir sobre o tema com base no resgate e no aprofundamento de duas noções: 1. A relação entre o progresso do esclarecimento e o desencantamento da vida; 2. A preponderância da calculabilidade e da razão instrumental sobre as demais formas de ação social. Com base nestas ferramentas conceituais, a outra hipótese que se adota é de que essa onda de corporalidade pode ser entendida como expressão de um tipo específico de cultura que se tornou hegemônica no mundo ocidental: esclarecimento, desencantamento e instrumentalização. Num mundo sem encantos e no qual prevalece a lógica dos fins e a calculabilidade, o indivíduo passa a buscar sentido naquilo que ele ainda supõe que lhe resta: o seu próprio corpo, que passa a ser objeto daquela adoração que Auguste Comte almejaria que o indivíduo dedicasse à sociedade, como forma específica de religião. O sentido mais geral da análise que se desenvolve é de que este culto ao corpo, tão comum nos dias atuais, é resultado de um tipo específico de formação proporcionada pela moderna civilização ocidental.

 

Esclarecimento, desencantamento e corporalidade.

As idéias de Weber sobre a racionalização e o desencantamento foram construídas a partir de duas perspectivas: a societal e a epistemológica. Na primeira, pensa-se o conceito de sociedade e, particularmente, o de ação social; na segunda, elabora-se a concepção de ciência da cultura. Essas idéias estão presentes em três obras: A ciência como vocação (1993), A ética protestante e o espírito do capitalismo (1992) e Economía y sociedad (1997), de forma mais específica no capítulo intitulado Conceptos sociológicos fundamentales.

Dois dos objetivos que Weber persegue ao analisar o processo de racionalização relacionam-se à crítica da concepção positivista de ciência e ao estilo de vida que daí emerge: a era da calculabilidade, este processo através do qual todos os agentes tendem a se tornar racionais, o que apresenta como conseqüência a irracionalidade da totalidade social.

A concepção Weberiana sobre a produção do conhecimento científico foi construída com base numa disputa realizada no final do século XIX, sobre o que deveria constituir-se no estatuto das ciências sociais (FREUND, 1987). Weber estava envolvido com a afirmação da autonomia das ciências da cultura em relação às ciências da natureza e sua preocupação fundamental, mas também de Dilthey, Wildelband e Rickert (COHN, 1979), estava em boa parte centrada na crítica ao discurso positivista, notadamente de Durkheim, que enfatizava o trabalho das ciências sociais como o de explicação ou revelação das conexões "objetivas" entre as "coisas" ou entre os " fatos sociais" (DURKHEIM, 1995). Após dialogar com esses homens de seu tempo, Weber afirma sua posição no sentido de que o divisor de águas entre as ciências da natureza e as ciências da cultura, e a conseqüente definição do seu estatuto, não se resume a uma distinção de natureza metodológica, uma vez que qualquer Ciência, ao ritmo das circunstâncias, pode se valer tanto da perspectiva individualizante quanto da generalizante.

Fiel ao espírito da epistemologia kantiana, Weber nega que o conhecimento possa ser uma reprodução ou uma cópia integral da realidade, tanto no sentido da extensão, como da compreensão. O real é infinito e inesgotável. Consequentemente, o problema fundamental da teoria do conhecimento é o das relações [...] entre conceito e realidade. (FREUND, 1987, p. 33)

Se a realidade é infinita, todo processo de percepção é uma seleção que se realiza a partir de valores que são subjetivos e que dependem da cultura do agente do conhecimento. Para Weber,

[...] tão logo tentamos tomar consciência do modo como se nos apresenta a vida, verificamos que se nos manifesta, "dentro" e "fora" de nós, sob uma quase infinita diversidade de eventos que aparecem e desaparecem sucessiva e simultaneamente.

[...] Assim, todo o conhecimento reflexivo da realidade infinita realizado pelo espírito humano baseia-se na premissa tácita de que apenas um fragmento limitado dessa realidade poderá constituir de cada vez o objeto da compreensão científica [...]. (WEBER, 1986, p. 88)

Mas negar o caráter puramente objetivo do conhecimento científico não significa afirmar que as investigações da Ciência, dada a seletividade que se processa a partir de valores subjetivos, só conseguem resultados igualmente subjetivos e, portanto, válidos para alguns e inválidos para outros. Para Weber, os valores subjetivos determinam a seleção do fragmento de realidade a ser considerado, ou seja, o objeto da investigação, a formulação do problema e das hipóteses. Todavia, no que se refere

[...] ao método da investigação – o "como" – é o ponto de vista dominante que determina a formação dos conceitos auxiliares de que se utiliza; e quanto ao modo de utilizá-los, o investigador encontra-se evidentemente ligado às normas de nosso pensamento. [...] só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para todos os que querem a verdade. (WEBER, 1986, p. 100)

Neste ponto, Weber estabelece a sua concepção de Ciência enquanto modalidade de conhecimento e, nesta definição, a principal ênfase refere-se ao processo de racionalização e às conseqüências que daí emergem.

Para Weber, a intelectualização ou a racionalização é um processo que ocorre desde que Sócrates compreendeu o conceito como instrumento do conhecimento, mas que somente se expandiu com o progresso da Ciência moderna (WEBER, 1993). Isso significa que o "...progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios..." (WEBER, 1993, p. 30) A relação que Weber estabelece entre a Ciência e o processo de racionalização está diretamente ligada à ruptura com a crença no valor da verdade científica. O progresso da ciências contribui para despojar a magia do mundo e para desencantá-lo, mas, num mundo desprovido de encantos, o conhecimento científico não é visto como "...um produto de revelações, nem é graça que um profeta ou um visionário houvesse recebido para assegurar a salvação das almas; não é também porção integrante da mediação de sábios e filósofos que se dedicam a refletir sobre o sentido do mundo." (WEBER, 1993, p. 46) A posição que Weber firma sobre a ciência é derivada da resposta que se dá à seguinte pergunta: "qual, em essência, a contribuição positiva da ciência para a vida pessoal?" (WEBER, 1993, p. 45). A resposta é que, em primeiro lugar, a ciência coloca "À nossa disposição certo número de conhecimentos que permitem dominar tecnicamente a vida por meio da previsão, tanto no que se refere à esfera das coisas exteriores como no campo da atividade dos homens." (WEBER, 1993, p. 45).

Em segundo lugar, "[...] a ciência nos fornece [...] métodos de pensamento, isto é, os instrumentos e uma disciplina" (WEBER, 1993, p. 45). E, em terceiro lugar, "[...] a ciência contribui para a clareza. Com a condição de que nós, os cientistas, de antemão a possuamos" (WEBER, 1993, p. 46). Isso significa que os homens de ciência

[...] podem – e devem – mostrar que tal ou qual posição [...] deriva, [...] de tal ou qual visão última e básica do mundo. [...] Dessa forma, o cientista pode esclarecer que determinada posição deriva de uma e não de outra concepção. [...] A ciência mostrará que, adotando tal posição, certa pessoa estará a serviço de tal Deus e ofendendo tal outro e que, se desejar manter fiel a si mesma, chegará, certamente, a determinadas conseqüências íntimas, últimas e significativas. (WEBER, 1993, p. 46)

Mas a ciência não deve ser encarada como uma substituta do pensamento, pois, afinal, "[...] ela não tem sentido, pois que não possibilita responder à indagação que realmente importa – ‘Que devemos fazer? Como devemos viver?" (WEBER, 1993, p. 35-36) Aqui, para elucidar a relação que Weber estabelece entre ciência e verdade, bem como entre racionalização e desencantamento, pode ser significativo o recurso ao romance de Milan Kundera. Em sua Insustentável leveza do ser, KUNDERA (1983) relata a angústia vivida pelo moderno Tomas, quando este torturava-se frente à necessidade de decidir o futuro de sua vida. É somente no mundo moderno que os indivíduos se sentem capazes de decidir o futuro de suas vidas e este é um problema pois num mundo dessacralizado e desencantado, no qual pouco se acredita em profetas ou salvadores, nunca se sabe aquilo que se deve querer, pois "só se tem uma vida e não pode nem compará-la com as vidas anteriores e nem corrigí-las nas vidas posteriores".

Neste caso, abandonado à sua própria individualidade, num mundo onde as pessoas vivem cada vez mais agregadas e, ao mesmo tempo, isoladas, num mundo crescentemente individualista e desprovido de encantos, o sujeito individual experimenta a outra face da liberdade e se sente fragilizado. Nesta circunstância é que Kundera entende a angústia de seu personagem Tomas:

[...] não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se uma ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é esboço de nada, é um esboço sem quadro. (KUNDERA, 1983, p. 14)

Para Weber, a ciência não tem sentido porque sua contribuição é com o desencantamento do mundo e um mundo desencantado é um mundo sem sentido.

"Com os progressos da ciência e da técnica, o homem deixou de acreditar nos poderes mágicos, nos espíritos e nos demônios: perdeu o sentido profético e, sobretudo, o do sagrado." (FREUND, 1987, p. 23)

A Ciência, portanto, "[...] não é produto de revelações, nem é graça que um profeta ou um visionário houvesse recebido para assegurar a salvação das almas; não é também porção integrante da meditação de sábios e filósofos que se dedicam a refletir sobre o sentido do mundo." (WEBER, 1993, p. 47) Isso significa que ela não caracteriza uma instância engendrada de poderes imperativos e com capacidade de definir o que deve ser feito. Mas há um tipo de contribuição que somente a Ciência pode fornecer. Trata-se de "...conceitos e juízos que não constituem a realidade empírica nem podem produzi-la, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de modo válido." (WEBER, 1986, p. 126)

É neste ponto que uma opção central da epistemologia de Weber se torna evidente: a importância atribuída ao conceito como instrumento de mediação entre a consciência e a realidade. Interessa, mais uma vez, salientar que a reflexão epistemológica de Weber tem por base o estabelecimento do estatuto próprio das ciências da cultura e que nesta reflexão o sentido atribuído ao conceito é um divisor de águas. Primeiro fica clara a diferenciação entre Weber e o Positivismo: para o sociólogo alemão, a Ciência não tem por base as conexões "objetivas" entre as "coisas", mas as conexões conceituais entre os problemas. "Só quando estuda um novo problema com o auxílio de um método novo e se descobrem verdades que abrem novas e importantes perspectivas é que nasce uma nova ‘ciência’." (WEBER, 1986, p. 84)

É através do sentido atribuído ao conceito que Weber define a própria autonomia da Ciência em relação à Arte e ao senso comum. O papel da intuição não é menos importante na Ciência do que na Arte: a diferença é que a intuição é para a Ciência o ponto de partida para a empreitada do conhecimento.

É através do conceito que ocorre uma transformação reflexiva da realidade imediatamente dada. Quando a mente opera através de conceitos é que o caos, como se nos apresenta a vida, adquire sentido.

Qualquer descrição meramente intuitiva faz-se acompanhar do fenômeno particular da importância assumida pelo enunciado estético: ‘Cada um vê o que tem no coração’. Os juízos válidos pressupõem sempre, pelo contrário, a elaboração lógica do intuitivo, isto é, a utilização de conceitos. (WEBER, 1986, p. 123)

Mais uma vez fica clara a relação que Weber estabelece entre a Ciência, a racionalização e o desencantamento do mundo. Compreender cientificamente a vida significa ordená-la através de conceitos e isso eqüivale a despojar a magia do mundo, a exorcizar a crença nos poderes metafísicos e remeter "valores supremos a mais sublimes" ao "refúgio na transcendência da vida mística".

Neste caso, pelo menos duas conseqüências se tornam evidentes. A primeira é que, se cada agente racional segue seus próprios interesses, o todo se torna irracional. A Segunda é que, na medida que o agente individual age fundamentalmente movido por objetivos extrínsecos, ele acaba prendendo-se numa "gaiola de ferro". Assim, num mundo desprovido de encantos, o real se torna "[...] aborrecido, cansativo e utilitário, deixando nas almas um grande vazio que elas tentam preencher com a agitação e com toda espécie de artifícios e de sucedâneos." (FREUND, 1987, p. 23).

E, neste ponto, Weber parece estabelecer uma referência para se pensar naquilo que se denominou onda de corporalidade. A proliferação da prática de esportes, das academias de ginástica, enfim, o culto ao corpo, caracterizam possibilidades de artifícios que o indivíduo lança mão para dar sentido à sua própria vida. Ou melhor, essa onda de agitação do corpo é resultado desse "grande vazio" deixado na alma das pessoas pela era da calculabilidade.

Entregues ao relativismo precário, ao provisório e ao ceticismo tedioso, os seres tentam mobiliar sua alma com uma confusão de religiosidade, esteticismo, moralismo e cientificismo, enfim, com uma espécie de filosofia pluralista que acolhe indistintamente as máximas mais heteróclitas de todos os campos do mundo. (FREUND, 1987, p. 23)

Neste ambiente desencantado e instrumentalizado, a "...mística se torna mistificação; a comunidade, comunitarismo, e a vida se reduz a uma seqüência de experiências vividas" (FREUND, 1987, p. 23). Desde que a racionalização e a intelectualização "despojaram o mundo de um encanto", os agentes individuais se deparam com a busca constante de sentidos para a vida. A onda de corporalidade e os sacrifícios que ela impõe ao próprio corpo dos indivíduos, pode, em boa parte ser entendida como uma espécie de militantismo, como um recurso utilizado pelos indivíduos como forma de "mobiliar suas almas".

 

Instrumentalização, calculabilidade e corporalidade.

Pela via societal, importante no pensamento de Weber é a concepção de que a sociedade não é uma entidade distinta e transcendente aos indivíduos.

Como conseqüência, uma das noções centrais da sociologia, passa a ser a "ação social", de onde se deriva o conceito de ação instrumental. Weber foi o primeiro sociólogo a perceber a centralidade do conceito de ação social, que se define como a conduta ou a atividade do agente individual, dentro da sociedade, e orientada por um motivo ou um sentido que só pode ser subjetivo ou intersubjetivo, uma vez que, ao definir o sentido de sua ação, o indivíduo leva em consideração as respostas ou as reações dos demais agentes, que ele é capaz de prever e avaliar. Ao colocar o agente individual no centro da análise sociológica, Weber, de fato, rompia com o Positivismo e com o Historicismo: a conduta do agente individual resulta de uma intenção subjetiva e não de mecanismos de coerção ou de condicionamentos recíprocos entre os fenômenos.

Com isso, Weber assegura a liberdade dos agentes e a imprevisibilidade da ação humana sem, no entanto, atribuí-las à irracionalidade. Isso significa que previsibilidade e imprevisibilidade são noções inseparáveis: a imprevisibilidade da conduta dos sujeitos e da própria história é decorrente da capacidade que estes têm de fazer previsões e de avaliar conseqüências. É a capacidade do sujeito de realizar escolhas que torna a história imprevisível.

Na seqüência deste raciocínio e na tentativa de construir recursos metodológicos, Weber sugere quatro modalidades típicas de ações sociais. Uma delas é a ação instrumental, na qual o sentido subjetivo que move o agente são os fins a serem alcançados. O agente concebe com clareza os seus interesses, os objetivos ou os fins a serem atingidos e, a partir daí, escolhe e combina os meios mais satisfatórios para atingí-los. Aqui, literalmente, os fins justificam os meios. Outra modalidade é a ação axiológica, na qual os valores, e não os interesses, são determinantes da conduta do agente. A ação é racional, não porque proporcione alcançar um objetivo definido e exterior, mas porque o agente mantém-se fiel a determinados princípios. Aqui, ao contrário, os fins não justificam os meios. A terceira modalidade construída por Weber é a ação afetiva, ou seja, aquele tipo de conduta que se caracteriza por ser uma atitude emocional do agente, é orientada por sentimentos e não por interesses ou sistemas de valores. A última ação típica é aquela que Weber denominou ação tradicional e cujo sentido motivador da conduta do agente vem dos costumes, dos hábitos e das crenças e não de interesses, valores ou impulsos sentimentais.

A relação que se pode fazer entre estas modalidades típicas de ação e os processos de racionalização e desencantamento é oriunda da própria relação que Weber estabelece entre liberdade, racionalidade e imprevisibilidade. É que na sociedade moderna tudo tende a se tornar racional e " na medida em que as operações são racionais, toda a ação das parte é baseada em cálculo" (WEBER, 1992, p. 5). Isso significa, no cotidiano da conduta dos indivíduos modernos, que a ação tende cada vez mais a ser orientada por objetivos, por interesses e fins, havendo pouco espaço para outras atividades motivadas pelo afeto, por valores éticos ou pela própria tradição.

Neste ponto, Weber parece estabelecer uma outra referência para se pensar naquilo que se denominou onda de corporalidade. Para ilustrar a relação entre esse processo de instrumentalização e essa onda de corporalidade, parece válido o recurso a um exemplo citado por um outro alemão, Theodor Adorno, em um ensaio sobre o "Tempo Livre". Adorno quer mostrar, nesse texto, o processo de dominação que a sociedade mercantil exerce sobre o indivíduo e a referência fundamental é a noção de tempo condicionado, ou seja, o tempo em que os indivíduos se dedicam à realização de experiências que não são definidas por eles próprios; tempo condicionado é o tempo da heteronomia.

Nesse texto, Adorno cita dois exemplos que podem ser resgatados como forma de ilustrar o raciocínio aqui desenvolvido sobre a relação entre instrumentalização e corporalidade. O primeiro exemplo refere-se ao sacrifício de expor o corpo ao sol em função de se obter um bronzeado atraente.

Para Adorno, a "[...] idéia de que uma garota, graças à sua pele bronzeada, tenha um atrativo erótico especial, é provavelmente apenas uma racionalização.

O bronzeado tornou-se um fim em si, mais importante que o flerte para o qual devesse servir em princípio." (ADORNO, 1995, p. 74-75) Num mundo instrumentalizado, onde somente são válidas as ações que sirvam para atingir algum fim prático e útil, todas as ações dos indivíduos tendem a submeter-se a esta lógica: o próprio corpo torna-se mero instrumento.

O outro exemplo obtido no mesmo texto de Adorno é referente à indústria do tempo livre, que, aqui, relaciona-se, também, à indústria da corporalidade e reflete a preponderância da instrumentalização:

Quando um funcionário retorna das férias sem ter obtido a cor obrigatória, pode estar certo de que os colegas perguntarão mordazes: "Mas não estavas de férias?". O fetichismo que medra no tempo livre está sujeito a controles sociais suplementares. Que a indústria dos cosméticos, com sua propaganda avassaladora e inevitável, contribua para isso é tão natural e evidente quanto o é que as pessoas condescendentes o reprimam. (ADORNO, 1995, p. 75)

 

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, Teodor W. Tempo livre. In: ADORNO, T. W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
  • KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
  • WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 1986.
  • _____. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Biblioteca Pioneira das Ciências Sociais, 1992.
  • _____. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993.
  • _____. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Econômica, 1997.
  • Nota * Professor da UEMG/INESP, Divinópolis. Doutorando em Educação pela PUC-SP.

 

José Geraldo Pedrosa*
jgpedrosa[arroba]uol.com.br


 
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