A Igreja e o Estado Novo: O Estatuto da Família

Enviado por Simon Schwartzman


Em fevereiro de 1940, Getúlio vargas assina o decreto-lei n 2024, tendo como tema a "coordenação das atividades relativas à proteção à maternidade, à infância e a adolescência"; seu principal objetivo é a criação de mais um órgão da burocracia federal, o Departamento Nacional da criança, subordinado ao Ministério da Educação e Saúde.

Em sua aparência modesta, o decreto é o resultado, no entanto, de um projeto muito mais ambicioso que, a pretexto de dar proteção à família brasileira, teria profundas conseqüências em relação à política de previdência social, ao papel da mulher na sociedade, à educação e até, eventualmente, em relação à política populacional do país. É este projeto, e a discussão por ele gerada, que nos interessa examinar. Ele nos permite uma visão bastante rica das mentalidades que circulavam nos altos escalões do governo brasileiro de então, assim como algo do processo decisório pelo qual projetos deste tipo eram tratados.

O ponto de partida é o texto de um decreto-lei de um "Estatuto de Família" que seria assinado por vargas em sete de setembro de 1939, oriundo do Ministério Capanema, mas que não chega a ser promulgado. Antes, ele sofreria as críticas de Francisco Campos e Oswaldo Aranha, haveria uma réplica de Capanema, outros pareceres seriam elaborados, e finalmente seria constituída uma "Comissão Nacional de Proteção da Família", da qual uma série de projetos específicos se originariam.

O Estatuto proposto por Capanema é um documento doutrinário que busca combinar duas idéias para ele indissociáveis: a necessidade de aumentar a população do país e a de consolidar e proteger a família em sua estrutura tradicional. A prosperidade, o prestigio e o poder de um país dependem de sua população e de suas forças morais: a família é a fonte geradora de ambos. No dizer do preâmbulo do projeto, "a família é a maior base da política demográfica e ao mesmo tempo a fonte das mais elevadas inspirações de estímulos morais".

A moral e a conveniência estão, por conseguinte, totalmente conjugadas. A família é definida como uma "comunidade constituída pelo casamento indissolúvel com o fim essencial de gerar, criar e educar a descendência", e por isto considerada como "o primeiro fundamento da Nação". Seria um equívoco pensar, no entanto, que ela de fato "fundasse" o Estado, ou tivesse, de alguma forma, precedência sobre ele. Ao contrário, à família é vista como uma planta tenra, bastante vulnerável e sob a ameaça constante de corrupção e degradação. É por isto que ela é colocada sob a tutela e "a proteção especial do Estado, que velará pela sua formação, pelo seu desenvolvimento, pela sua segurança e pela sua honra". Daí uma série de corolários inevitáveis que são explicitados no projeto. A primeira medida é facilitar ao máximo o casamento. Existe uma providência jurídica para isto - o reconhecimento civil do casamento religioso e uma série de providências de tipo econômico: o casamento é incentivado por empréstimos matrimoniais, impostos são propostos para solteiros e casados ou viúvos sem filho, e um abono é sugerido para recompensar financeiramente as famílias de prole numerosa. Outras medidas constantes do Estatuto incluem o amparo à maternidade através da subvenção a instituições de assistência na área privada, o amparo à infância e à adolescência, a proteção legal aos filhos ilegítimos, e a concessão de prêmios de núpcias, de natalidade, de boa criação e outros. Não falta, no projeto, a criação do Dia Nacional da Família.

Além destas medidas voltadas especificamente para o núcleo familiar, existem várias outras com repercussões muito mais profundas. Uma delas se refere ao mercado de trabalho. O Estatuto previa que os pais de família tivessem preferência "em investidura e acesso a todos os cargos e funções públicas", na competição com os solteiros ou casados sem filhos, exceto em cargos de responsabilidade. Mais ainda, o artigo 14 previa que "o Estado adotar medidas que possibilitem a progressiva restrição da admissão de mulheres nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos empregos próprios da natureza feminina, e dentro dos estritos limites da conveniência familiar".

Esta restrição ao trabalho feminino estava ligada à tese da mais absoluta divisão de papéis e de responsabilidades dentro do casamento. Isto se refletia, também, na área da educação, onde estava previsto que "O Estado educará ou fará educar a infância e a juventude para a família. Devem ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da administração da casa" (art.. 13). Esta divisão de papéis precisava, evidentemente, ser garantida e protegida. Para isto, seria necessário fortalecer a comunidade familiar, "quer pela elevação da autoridade do chefe de família, quer pela maior solidificação dos laços conjugais, quer pela mais extensa e imperiosa obrigação de assistência espiritual e material dentro do núcleo familiar".

Não bastariam, entretanto, estas medidas, porque a ameaça à família parecia vir de todas as partes. Por isto, impõe-se a necessidade da censura generalizada: o artigo 15 previa que "O estado impedirá que, pela cátedra, pelo livro, pela imprensa periódica, pelo cinema, pelo teatro e pelo rádio, ou ainda por qual quer meio de divulgação, se faça, direta ou indiretamente, toda e qualquer propaganda contra o instituto da família ou destinada a estabelecer restrições à sua capacidade de proliferação". Mas não basta proibir, é necessário incentivar: assim, o Estatuto estabelecia para o Estado a responsabilidade de favorecer, "de modo especial, o desenvolvimento das letras e das artes dignamente inspiradas no problema e na existência familiar, e utilizará os diferentes processos de propaganda para criar, em todos os meios, o clima moral propício à formação, à duração, à fecundidade e ao prestígio das famílias".

 


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