Marx: a redução da política

Enviado por Simon Schwartzman


Manuscrito, 1968

Política, para Marx, é uma daquelas coisas que devemos fazer para ficarmos livres de fazê-las. O Estado, nesta perspectiva, é somente um braço da classe dominante, e a única ação política realmente legítima é aquela que conduz à eliminação da política e do Estado. Duas críticas interligadas são normalmente dirigidas a esta concepção. A primeira é que Marx "reduz" o conceito de Estado a um simples reflexo do econômico. A segunda é que a ação política tem uma especificidade que não somente é diferente de outros tipos de atividade, mas é de fato o que é mais caracteristicamente humano em toda a atividade do homem. A intenção deste texto é avaliar estas críticas à luz de uma interpretação específica de Marx - o Marx jovem e filósofo. Esta discussão terá, se bem conduzida, implicações em relação ao status epistemológico da análise de Marx do Estado e da política, e terminará com uma breve referência às relações entre a filosofia de Marx e o existencialismo.

1. Marx reducionista: um problema epistemológico

Podemos começar com o conceito de "redução". Que significa dizer que Marx "reduz" o Estado a um "reflexo" de fatores econômicos?

Do ponto de vista de uma abordagem empírica, uma proposição reducionista somente pode significar que, se "A" é um "mero reflexo" de "B", então toda a variabilidade de "A" pode ser predita pela variabilidade de "B". Esta definição é claramente uma tour de force, dado que a expressão "reducionismo" não é de uso corrente no âmbito das ciências sociais empíricas. De qualquer forma a idéia é que, quando dizemos que "A" pode ser totalmente compreendido se compreendemos "B" e as relações entre "A" e "B", e que não há nada que varie em "A" de forma independente do que ocorre em "B", estamos, de fato, "reduzindo" "A" a "B".

Dizer que Marx reduz o político ao econômico é dizer que ele não atribui nenhuma autonomia ao político, e afirma que o Estado pode ser total e completamente compreendido se soubermos o suficiente a respeito da economia. Não é isto que ocorre, no entanto, não porque Marx sustente o oposto, mas porque esta maneira de pensar em termos de correlações é estranha à maneira pela qual Marx pensava a sociedade. Na realidade, este não é o único caso em que a questão do reducionismo surge em relação a Marx e ao marxismo. Outros exemplos são a noção de que as ações e pensamentos humanos são um "reflexo" da realidade material, que o valor da mercadoria "reflete" a quantidade de trabalho socialmente necessária para sua produção, e a de que a religião, a moral e os valores são epifenômenos, ou superestruturas de fenômenos mais profundos. Deve ser dito, antes de deixarmos a perspectiva empírica, que não há nada de errado em buscarmos fenômenos que estejam "por trás" de outros, que sejam seus "antecedentes", ou "variáveis independentes". Este é, na realidade, o objetivo principal de qualquer trabalho de pesquisa, encontrar este tipo de relação. O pecado do reducionismo consiste em postular este tipo de relação por definição, fechando as portas, assim, para a possibilidade de outras fontes de variança e explicação. Podemos agora passar a um breve exame dos dois exemplos mais conhecidos de reducionismo em Marx, em um esforço de esclarecer a natureza do seu projeto analítico.

A teoria da consciência humana como reflexo da realidade é talvez melhor expressada, dentro do marxismo, pelo Lênin de Materialismo e Empirocriticismo. A teses é simples, se não simplista. Existe um mundo que "lá fora", independente de nossa idéia a seu respeito. É um mundo material, e o único que existe, e é afirmação deste fato que nos faz materialistas. É deste mundo que o homem extrai suas idéias e conceitos, e a noção de "verdade" surge no curso da interação entre o homem e o mundo material. Assim, todas as teses a respeito do homem "construindo" a realidade, a busca de critérios subjetivos de verdade, e assim por diante, são manifestações mal disfarçadas da crença religiosa na autonomia do espírito, ou na predominância do espírito sobre a matéria - ou seja, puro idealismo.

É curioso como Lênin, a partir de um desenvolvimento particular do pensamento marxista, chega a um realismo que é, como qualquer iniciante em filosofia sabe, baseado em uma ontologia metafísica. Neste tipo de marxismo, o ataque filosófico ao idealismo se transforma em um pálido reflexo (a expressão é bem apropriada aqui) do debate clássico entre idealismo e realismo, cheio de sobretons ideológicos, e vazio de background filosófico. Hegel, neste contexto, surge como o grande adversário do marxismo, e isto explica a grande dificuldade que esta corrente marxista encontra em entender a grande proximidade e a grande dívida intelectual de Marx em relação a Hegel. A questão mais interessante, neste contexto, é a respeito do que ocorreu de Marx a Lênin para afastá-los tanto um do outro. Houve, neste meio tempo, uma transformação gradual do sentido de termos como "explicação", "ciência" e "dialética" do contexto da filosofia alemã para o do cientificismo, possivelmente francês, do século XIX. Engels é normalmente considerado o principal responsável por esta passagem, ainda que Lênin, entre outros, tenha tido sua parcela de responsabilidade.

A principal conseqüência da teoria leninista do reflexo foi que ela tornou ilegítima toda tentativa de estudar a mente humana como um domínio específico da realidade. É certo que esta abordagem abriu espaço para Pavlov, mas cabe perguntar se isto compensou a incapacidade de ler Freud. O que restou de Marx nesta concepção foi a idéia que a vida intelectual não pode ser entendida nela mesma, fora da realidade do homem como ser social e trabalhador. O que é profundamente alheio a Marx, no entanto, é, primeiro, o suposto metafísico de um mundo "externo" ao homem, e, segundo, o modelo explicativo causal implícito nesta maneira de ver as coisas. Realidade, para Marx, era sempre e necessariamente realidade humana, mesmo se muitas vezes desumanizada por alienações históricas. Ser humano significa emergir no contato entre homem e natureza, esta "natureza" sendo, por definição, a fronteira mais externa da natureza humana; e esta interação caracteriza tanto a humanidade do real quanto a realidade do homem. O outro conceito anti-marxista é mais difícil de ver, talvez os problemas que envolve são objeto de preocupação mais contemporânea. Podemos dizer, de qualquer forma, que "explicar", para Marx, significava mostrar a realidade humana que necessariamente existe como fundamento de qualquer realidade que se apresenta, à primeira vista, como autônoma. Trata-se, pois, de um empreendimento essencialmente filosófico, que só secundariamente (como discutido mais abaixo) conduz a explicações empíricas de tipo causal. A incapacidade de distinguir estes dois aspectos ou conceitos de "explicação" é uma das causas da dificuldade das tentativas de desenvolver uma "ciência marxista" onde a análise filosófica é colocada no lugar da abordagem empírica, enquanto que a filosofia é substituída pela crítica ideológica.

Tomemos o problema da explicação em outro contexto, o da teoria do valor. Para Marx, o valor da mercadoria é função do trabalho socialmente necessário para sua produção. Mais corretamente, o valor da mercadoria é o trabalho que ela incorpora. A análise do valor, apresentada no início de O Capital, começa com a observação do estranho fato de que mercadorias são trocadas como se elas tivessem algo comensurável, mesmo quando completamente dissimilares em aspecto e uso. Este elemento comum é o fato de que todas elas são frutos do trabalho humano. Por isto, a quantidade de trabalho incorporado à mercadoria é considerado como a explicação de seu valor de troca no mercado.

 


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