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Considerações acerca do sistema penal brasileiro (página 2)

Rômulo de Andrade Moreira

 

Em nosso País, por exemplo, muitas leis penais estão a todo momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública (previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua constitucionalidade.

E o resultado? Nenhum: ou será que após a edição da lei de crimes hediondos, ou do surgimento da prisão temporária, a criminalidade diminuiu e a segurança pública melhorou? E o porte de arma? Será que haverá melhoria no que concerne à segurança pública? Será que os criminosos guardarão suas armas por temor de serem presos em flagrante por crime de porte de arma? E as pessoas das classes média e alta, terão elas receio de portar uma arma de fogo ou serão facilmente beneficiadas com o registro e a autorização para portá-las? Querer, portanto, que a Polícia resolva a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada não adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis, ou métodos de policiamento mais rígidos, como, por exemplo, a famigerada "tolerância zero".

Vale a pena citar o grande advogado EVANDRO LINS E SILVA, que diz:

"Muitos acham que a severidade do sistema intimida e acovarda os criminosos, mas eu não tenho conhecimento de nenhum que tenha feito uma consulta ao Código Penal antes de infringi-lo." (in Ciência Jurídica – Fatos – nº. 20, maio de 1996).

O mesmo jurista, em outra oportunidade afirmou: "precisamos despenalizar alguns crimes e criar punições alternativas, que serão mais eficientes no combate à impunidade e na recuperação do infrator (...). Já está provado que a cadeia é a universidade às avessas, porque fabrica criminosos, ao invés de recuperá-los."

Acredito, portanto, que a miséria econômica e cultural em que vivemos é, sem dúvida, a responsável por este alto índice de violência existente hoje em nossa sociedade; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores que já convivem, desde cedo e lado a lado, com um sistema de vida diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, na degenerescência moral, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive pela própria), no ódio e na revolta.

Não concebo a idéia de que alguém, voluntária e conscientemente, deseje para si ou para os seus uma vida de crimes, afora, evidentemente, os casos patológicos.

Assim, a meu ver não é possível discutir segurança pública e atividade policial sem que enfrentemos com coragem e preparo as questões acima colocadas, mesmo porque este problema, definitivamente não é uma mera questão policial.

De toda forma, é induvidoso que em um Estado Democrático de Direito há determinadas funções que devem ser exercidas primordialmente pelo Poder Público. Seria inimaginável que a segurança pública estivesse entregue à iniciativa privada; se é certo que ao particular deverá caber o controle de determinadas tarefas na sociedade, não é menos acertado que outras tantas atividades devem ficar sob a tutela oficial; portanto, o controle e a prevenção dos delitos devem ficar a cargo do Estado.

A tarefa de manutenção da segurança pública diz respeito ao Poder Público que a cumpre com o que arrecada da própria sociedade. Cabe ao Estado absorver os conflitos individuais, inevitáveis no convívio em sociedade, dirimindo-os e garantindo aos cidadãos a segurança imprescindível para o equilíbrio social.

Pergunta-se, então? O modelo policial hoje existente é o ideal ou necessitamos de uma reformulação? As atribuições de nossa Polícia estão definidas no texto constitucional, pelo qual à Polícia Civil incumbe a função de polícia judiciária e investigação criminal e à Polícia Militar cabe, de forma ostensiva, a preservação da ordem pública; esta é, basicamente, a forma como são distribuídas as funções policiais em nosso País, no que diz respeito aos Estados.

Porém, desde a promulgação da Constituição várias propostas têm sido articuladas no sentido da mudança dessa estrutura, visando, basicamente, a acabar com esta divisão hoje existente nas polícias estaduais.

Como exemplos cito a Proposta de Emenda à Constituição n.º 613/1998, proposta pela Deputada Federal por São Paulo, Zulaiê Cobra, do PSDB.

Por esta proposta, todos os servidores do sistema de segurança pública, federal e estaduais, seriam servidores civis, regidos por estatuto próprio; nos Estados haveria uma só Polícia Estadual, responsável desde a apuração de infrações penais até a preservação e restauração da ordem pública, estruturada em, no mínimo, dois Departamentos: o de Polícia Judiciária e de Investigação e o de Polícia Ostensiva.

Ainda por esta Proposta os Estados, mediante convênio, poderiam formar Conselhos Regionais de Segurança Pública, que teriam como meta definir formas de integração entre as respectivas Polícias Estaduais.

O Governador de São Paulo também enviou proposta de emenda à Constituição que, dentre outras coisas, propõe a absorção da parte mais significativa da PM pela Polícia Civil; por sua vez, a Polícia Civil passaria a ter também a função preventiva uniformizada.

Esta proposta, no entanto, mantém a PM, diminuindo, porém, os seus efetivos e as suas tarefas, assegurando para a PM a polícia de choque, a polícia rodoviária e de trânsito, a polícia florestal e de mananciais, assessorias militares, segurança escolar e dos presídios e atividades de bombeiros.

Há uma terceira Proposta, a de n.º 514/97, de iniciativa do Poder Executivo, através do Ministério da Justiça; observa-se que na respectiva Exposição de Motivos, o então Ministro Iris Rezende afirma textualmente que o atual modelo traçado pela CF/88 se mostra inadequado para garantir a nossa segurança pública.

Partindo dessa constatação, a referida Proposta permite que os Estados criem seus órgãos de segurança na forma que considerarem adequada, assegurando-se ampla autonomia aos Estados, inclusive a repartição da competência com os Municípios, através da ampliação das atribuições das guardas municipais, já previstas na CF/88.

Por esta Proposta, as corporações militares ficariam a cargo do Estado-Membro, que analisaria da conveniência ou não de sua manutenção; no entanto, acaso preservadas as corporações militares, elas estariam destinadas, primordialmente, à manutenção da ordem pública e da segurança interna, além de outras funções estabelecidas em lei estadual.

Percebe-se que o próprio Ministério da Justiça entende ser necessária uma mudança no atual cenário policial brasileiro, também acenando com a unificação das polícias estaduais, militar e civil.

Na própria Polícia Militar, há quadros favoráveis à unificação.

Sem querer esgotar o assunto, estou com aqueles que entendem salutar a criação de uma única polícia no âmbito estadual, com um caráter eminentemente civil, principalmente porque, as funções executadas pela polícia têm, primordialmente, caráter civil; caráter militar, por exemplo, tem o combate à guerra, ao terrorismo, à ação de grupos armados contra o Estado Democrático, etc., onde o policial deve se fazer temido pelo inimigo exatamente por ser implacável, o que não deve ocorrer no trato com os civis.

Ademais, o regulamento militar, aprendido e obedecido pelo policial, termina sendo aplicado também na relação com os civis, na atividade de policiamento das ruas, acabando por considerar o civil um seu subordinado, quando a relação deve ser exatamente o oposto.

Funções militares devem ser exercidas, em regra, pelas Forças Armadas; funções civis devem ser exercidas por integrantes de corporações civis, pouco importando esteja parte da Polícia uniformizada ou não, mesmo porque, como diz Bismael Mora es, "policial uniformizado não significa policial militarizado". Evidentemente que para a tarefa de policiamento ostensivo, é necessário que o policial seja visto e imediatamente identificado por todos, através de um uniforme, mas sem a necessidade de uma formação militar, que não se coaduna com um Estado Democrático de Direito.

Para Bismael Moraes, por exemplo, "sendo a sociedade brasileira composta de cidadãos civis, e não sendo os Estados da federação classificados como quartéis ou zonas militares, só outros interesses – que não são coletivos ou públicos – poderiam impor essa estrutura absurda, cara e prejudicial à segurança pública: militar, para atuar como polícia e tratar com civis! Isso é progresso, ou são resquícios de alguns sistemas pouco recomendáveis?"

Aliás, esta divisão ocorreu, há muitos anos, em França, onde havia dois grandes ramos: a Polícia Preventiva (em regra, ostensiva e uniformizada, prevenindo os fatos) e a Polícia Judiciária (que agia, de regra, após o fato acontecido); esta divisão, no entanto, hoje está superada na grande parte do mundo, especialmente nas Democracias.

No Brasil, com o golpe militar de 64, surgiu a idéia de se criar uma força militar auxiliar às Forças Armadas, com a finalidade de se combater os opositores do regime militar. Assim, em São Paulo, fundiram-se a Guarda Civil e a Força Pública, dando origem à Polícia Militar, fato que ocorreu nos outros Estados da Federação.

Naquela época, as Polícias Militares estavam subordinadas diretamente ao Exército e obedientes aos preceitos da ideologia da segurança nacional, tão ao gosto do regime ditatorial. Tanto isso é verdade que boa parte dos comandos das Polícias Militares passou a ser exercido por oficiais superiores do Exército; a PM passou a atuar como força auxiliar no combate às organizações políticas de esquerda, como passeatas, greves, comícios, protestos, etc. Ocorre que finda esta tarefa, passou a PM, então, a combater o crime convencional, sem haver, no entanto, uma mudança profunda na sua estrutura e nas práticas de atuação.

De qualquer forma, não se pode admitir duas polícias no mesmo Estado da Federação, regidas ambas por regras próprias e inteiramente diferenciadas, havendo uma duplicidade de orçamento, de patrimônio, meios de transporte, de pessoal burocrático, cada uma sob um Comando e subordinadas, na prática, a autoridades diversas.

A unificação da Polícia não significa, em absoluto, a perda da hierarquia e da disciplina existentes na PM, até porque todo o funcionalismo público está sujeito a tais regras; ser um servidor civil nunca foi sinônimo de indisciplina ou de falta de hierarquia; todos estão submetidos a regras estatutárias que devem ser cumpridas sob pena de punição disciplinar e até de exoneração do serviço público.

Como disse anteriormente, na própria Polícia Militar, principalmente entre alguns oficiais, há opinião nesse sentido, como por exemplo os Tenentes Coronéis da PM/BA, Edson Martim Barbosa e Expedito Manoel Barbosa de Souza (este assistente militar da SSP), que afirmaram em recente trabalho:

"Algumas atitudes operacionais das Polícias Civil e Militar prejudicam a realização de um trabalho sinérgico, como por exemplo: o corporativismo; o personalismo; a inexistência de áreas comuns; hierarquia e disciplina diferenciadas, dentre outras.

(...) "A continuidade, por força legal, da duplicidade de polícia – Civil e Militar – no Brasil, promove situações esdrúxulas ao deixar de lado o que necessita a comunidade da polícia, passando a ter contornos de disputa por espaço entre tais organizações, no que denominamos competição na atividade operacional, particularmente na Bahia." (cfr. "Polícia Estadual e o ‘Complexo do Zorro’: a competição na atividade operacional").

Um outro aspecto que não podemos esquecer é que a militarização da Polícia é prejudicial, inclusive, para seus próprios integrantes, pois como se sabe, o militar, enquanto tal, não possui alguns direitos garantidos aos cidadãos, pois está sujeito a uma estrutura que permite, por exemplo, a prisão disciplinar executada verbalmente, tendo seus direitos restringidos pela própria CF/88: art. 5º., LXI (ver art. 11, § 2º., do Regimento Disciplinar da PM – Decreto Estadual n.º 29.535/83).

A própria Polícia Civil também necessita melhorar estruturalmente; a capacitação do policial civil deve ser incrementada; o seu salário deve ser digno; a sua formação deve ser científica e especializada.

Por tudo que foi dito, concluo que cuidar da segurança pública em nosso País é uma tarefa árdua e espinhosa; a violência, hoje, é parte integrante de nosso cotidiano, fazendo com que todos nós, de certa forma, diariamente com ela convivamos.

Devemos crer que a solução mais indicada para tais problemas passa inevitavelmente pela necessidade de vislumbrarmos, com inteligência e isenção, que os conflitos sociais geradores da criminalidade não podem ser reduzidos a mera questão policial ou judicial; devem, ao contrário, ser encarados como problemas essencialmente políticos e, sob este aspecto, devem ser procuradas as soluções.

A mudança na estrutura policial também se faz necessária, nos moldes do que acima foi dito.

A criação de um Conselho Estadual de Segurança Pública, se bem concebido e se composto também por integrantes da sociedade civil, será, com certeza, mais um elemento de modernização da polícia, no momento em que poderá traçar diretrizes sólidas de operacionalização, além de corrigir eventuais erros de percurso, naturais de todo processo de mudança.

As Guardas Municipais devem ser efetivamente implantadas, ampliando-se, porém, as suas atribuições constitucionais, a fim de que possam exercer outras funções, como auxiliar o policiamento de trânsito, a defesa civil, etc.

Voltemos os olhos também para o nosso sistema penitenciário.

É indiscutível que a nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotadas, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê- los;

e há ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de serem lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábrica de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que tornam-se reféns do seu próprio passado.

Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelo seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

Este é o nosso sistema penitenciário. Há solução? Alguns advogam há algum tempo a idéia da privatização das prisões; vejamos, então, este aspecto, adiantando, desde logo, a minha contrariedade quanto a este entendimento.

Com efeito, posiciono-me intransigentemente contra a privatização das prisões, como procurarei transmitir em seguida:

É exclusividade do Estado manter a ordem pública mediante o uso da força; salvo casos excepcionais, como a prisão em flagrante, por exemplo, ou o desforço imediato, não é permitido ao particular coagir outrem com o uso da força; de regra, tal munus cabe à Administração Pública.

Em sendo assim, não posso admitir que seja delegado à iniciativa privada a possibilidade de ter sobre o homem o poder de tê-lo sob sua guarda.

Aliás, já em 1955, a Organização das Nações Unidas, a ONU, em um documento que foi chamado de "REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DOS RECLUSOS", no seu item 73.1, orientava:

"As indústrias e granjas penitenciárias deverão, preferivelmente, ser dirigidas pela própria administração, e não por contratantes particulares."

Demonstra-se, com este documento, que a preocupação com a privatização das penitenciárias não é de agora.

Dois anos depois, em 1957, o Professor Oscar Stevenson, em um Anteprojeto de Código Penitenciário que apresentou, na sua Exposição de Motivos, afirmou com salutar propriedade:

"Veda-se, por outro lado, a locação do trabalho dos recolhidos a empresas privadas. A enterprise, ou contract system, a direta sujeição do recolhido a contratantes particulares é sistema que a experiência condenou."

Destarte, penso que os responsáveis pela administração de um sistema penitenciário devem ser primordialmente funcionários públicos, cidadãos pagos pelos cofres públicos e que, por delegação, exercerão uma função exclusiva da administração pública.

Ademais, a execução penal, dirigida por um Juiz de Direito, fiscalizada pelo Ministério Público, não deve ter como órgão diretamente executor uma empresa privada que, antes de qualquer outro intuito, procura o lucro em suas atividades; e, então, exsurge a maior contradição da idéia: como admitir-se que extraiam- se lucros a partir da própria violência; como conceber-se o ganho monetário a partir da criminalidade; é ou não é um contrasenso? Não podemos, portanto, ceder ao lobby das empresas de vigilância, além das de alimentação, lavanderia e tantas outras, estas sim, que irão lucrar e auferir rendas notáveis, mas, inteiramente ilegítimas.

Sobre este assunto, há um importante estudo feito por ERIC LOTKE, onde mostra-se o absurdo que se chegou com a privatização das prisões nos Estados Unidos; ácido crítico da idéia, afirma o estudioso norte-americano o seguinte:

"As companhias de prisões privadas constituem hoje um novo ingrediente na economia dos EUA.

"Oito companhias administram atualmente mais de 100 presídios em 19 estados. É uma indústria que cresceu vertiginosos 34 pontos percentuais nos últimos cinco anos. Existem hoje aproximadamente 70.000 presos em presídios privados. Em 1984 o número era de 2.500.

"Os investidores perceberam isso. Uma pesquisa realizada em março de 1996 pela empresa Equitable Securities em Nashville descreve a indústria de prisões como "extremamente atraente" e aconselha com muita ênfase aos investidores.

"A indústria líder no mercado, a Corrections Corporation of America, a primeira companhia privada a comercializar suas ações, foi aclamada em 1993 (pelos analistas financeiros) como o grande investimento dos anos 90".

E onde estaria a vantagem de se investir em prisões privadas? Segundo explica o mesmo articulista "o grande atrativo da administração privada das prisões e das companhias de serviços é simples: eles podem realizar nas prisões o mesmo trabalho feito pelo governo a um custo mais baixo, normalmente de 5% a 15% abaixo dos custos do setor público." E como isto é possível? Em detrimento dos salários dos empregados e no não investimento em serviços que "poderiam transformar os presos em membros produtivos da sociedade quando libertados", pois "companhias preocupadas com os lucros preferem evitar os custos com tratamento para viciados, aconselhamento em grupo, programas de alfabetização."

Concluindo, afirma o americano:

"As indústrias madeireiras precisam de árvores; as siderúrgicas precisam de ferro; as companhias de prisões usam pessoas como matéria prima. As indústrias enriquecem na medida em que conseguem apanhar mais pessoas." (Revista do IBCCrim, nº. 18, p. 28 e segs.).

Basicamente são estes os motivos pelos quais não admito, não advogo, e abomino mesmo, a idéia da privatização das prisões, vendo-a como algo mais a estigmatizar a personalidade do condenado, transformando-o, como dito acima, em objeto de lucro e não de recuperação (é evidente que não interessaria a uma empresa privada ressocializar ninguém, muito pelo contrário; um homem ressocializado seria menos um em suas celas).

Se as nossas prisões não têm condições mínimas de abrigar seres humanos (e isto é verdade), cabe ao Estado, com o dinheiro que arrecada do contribuinte, mudar o modelo que hoje constatamos e assegurar o pouco de dignidade que resta a alguém que já perdeu a sua liberdade. Cabe ao Poder Público procurar soluções que permitam o cumprimento da pena de maneira humana e, efetivamente, ressocializadora, processo que passa, inclusive, pela preparação profissional do respectivo corpo funcional e pelo aumento do número de estabelecimentos prisionais, desafogando os que hoje existem.

Não esqueçamos que o art. 1º. da Lei de Execução Penal diz que a execução penal tem por objetivo "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado." É evidente que tal dispositivo legal é mais uma agigantada letra morta em nosso sistema jurídico, o que é lamentável.

Por outro lado, também garante a mesma lei (§ 1º., do art. 84), que o "preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes", exatamente visando a impedir que a promiscuidade entre presos perigosos e outros que não sejam assim considerados, possa tornar prejudicial a estes últimos.

Uma outra questão grave é que as colônias agrícolas, industriais ou similares, previstas na mesma lei para receber presos do regime semi-aberto, não existem em grande parte do País, inviabilizando o adequado cumprimento de pena no referido regime; o mesmo fenômeno ocorre com as casas do albergado, destinadas ao preso em regime aberto e com os conselhos da comunidade, cuja previsão legal é de um por cada Comarca (!!!), a fim de prestar assistência aos presos e fiscalizar os estabelecimentos penais.

Vale a pena citar, mais uma vez, LINS E SILVA, pela autoridade de quem, ao longo de mais de 60 anos de profissão, sempre dignificou a advocacia criminal brasileira e a magistratura nacional; diz ele:

"A prisão avilta, degrada e nada mais é do que uma jaula reprodutora de criminosos", informando ele que no último congresso mundial de direito criminal, que reuniu mais de 1.000 criminalistas de todo o mundo, "nem meia dúzia eram favoráveis à prisão" (in Ciência Jurídica – Fatos – nº. 20, maio de 1996).

De toda forma, as condições atuais do cárcere, especialmente na América Latina, fazem com que, a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleçase o que se convencionou chamar de "subcultura carcerária", um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a "lei do mais forte", insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.

Para que não se fale apenas nos problemas, vejamos se há soluções para o equacionamento de toda essa problemática.

Creio que esta superação passa inevitavelmente pela necessidade de vislumbrarmos, com inteligência e isenção, que os conflitos sociais geradores da criminalidade não podem ser reduzidos a mera questão policial ou judicial; devem, ao contrário, ser encarados como problemas essencialmente políticos e, sob este aspecto, devem ser procuradas as soluções.

A questão criminal não deve ser vista apenas sob a ótica da segurança pública ou do Direito Penal, mas, primordialmente, do ponto de vista social, a exigir intervenções governamentais na área da saúde, educação, moradia, emprego, etc. A sociedade também deve, na medida do possível, participar, incentivando programas comunitários que integrem crianças e adolescentes em seu bairro e na sua família.

Uma outra necessidade é que o sistema penitenciário seja ampliado, com a construção de novas instalações (desafogando as unidades hoje existentes) e melhorado (permitindo condições mínimas de conforto e de dignidade para os reclusos), transformando-se em casas ressocializadoras e não de mero castigo, mesmo porque, aquele que só foi castigado pode (e normalmente ocorre) voltar pior do que foi, ao passo que o que foi e encontrou um ambiente propício para o retorno ao convívio social, certamente não voltará a delinqüir.

Há, também, as penas alternativas que, apesar de serem sanções de natureza penal, impedem que o autor de uma infração penal de pequeno ou médio potencial ofensivo sofra privação em sua liberdade, aplicando-se-lhe uma multa ou uma pena restritiva de direitos; tal solução se afigura como a mais adequada sendo, modernamente, utilizada amplamente nos sistemas penais mais evoluídos; através dela, o cometimento de determinadas infrações penais é punida de forma tal que não leve o seu autor a experimentar as agruras de um sistema penal falido e inoperante.

Por último há a Justiça Consensual ou Pactuada, firmada no princípio basilar do consenso e consubstanciada hoje no Brasil na Lei nº. 9.099/95, onde se prevê, dentre outras coisas, a conciliação civil entre o autor do fato e a vítima, a transação penal entre o Ministério Público e o autor do fato e a suspensão condicional do processo; tais medidas, ditas despenalizadoras, evitam, as duas primeiras, a instauração do processo penal e, a terceira, a sua continuidade, fazendo com que a Justiça Criminal tenha sido descongestionada e tenha passado a cuidar de casos mais graves.

Penso, por fim, que a Polícia não deve ser vista como propriedade de ninguém, de nenhum governante, de nenhum Estado; ela deve ser observada como mais uma Instituição, dentro da Democracia, a serviço, exclusivamente, dos interesses da população, como já disse Hélio Bicudo:

"A nova Polícia será democrática, voltada para os reais interesses da população no tocante à segurança. Então, esse povo tão sofrido poderá trabalhar e ter lazer, ir à escola, reunir -se e participar politicamente do processo de seu aperfeiçoamento.

Essa é a Polícia que todos queremos."

Rômulo de Andrade Moreira
romuloamoreira[arroba]uol.com.br
Rômulo De Andrade Moreira
Promotor de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS



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