Pobreza e Desigualdade: Reformas estruturais ou política de renda?

Enviado por Simon Schwartzman


Comentário preparado para o painel 5, Distribuição de Renda e Políticas de Renda do Seminário Desenvolvimento em Debate, 2º Ciclo, Painéis sobre Desenvolvimento Brasileiro. BNDES, 20 de setembro de 2002

Os dois trabalhos apresentados a este painel[1] mostram que, apesar das diferenças, existem vários consensos importantes, no Brasil, a respeito da desigualdade social. Entre estes, eu ressaltaria:

1. O diagnóstico de que a pobreza está associada à precariedade e baixa qualidade dos empregos disponíveis para a população mais pobre e menos educada.

2. A convicção de que a desigualdade não desaparecerá por si mesma com o crescimento econômico, e requer políticas públicas específicas para a sua redução.

3. O entendimento de que os gastos sociais no Brasil são regressivos e pouco eficientes, e deveria ser possível fazer mais, em termos de redução da desigualdade, com os recursos existentes.

4. A convicção de que a redução da desigualdade não deve ser vista como um peso, ou um custo que coloca limites ao desenvolvimento da economia, mas, ao contrário, como um instrumento importante para que a economia atinja um novo patamar.

Este consenso deve ser saudado como algo importante, uma vez que supera a antiga noção de que bastaria o crescimento da economia para que os problemas da pobreza e da desigualdade se resolvessem; focaliza a atenção na qualidade e equidade dos serviços públicos hoje disponíveis; e abre espaço para a noção de que programas de redistribuição e transferência direta de rendas podem desempenhar um papel importante, a curto prazo, de mitigar os problemas da pobreza e desigualdade extremas, enquanto não possam ser substituídos pela criação de um mercado de trabalho de melhor qualidade, suprido por uma mão de obra também mais qualificada.

Existem, por outro lado, importantes diferenças de perspectiva e abordagem, que também precisam ser assinaladas. A maior parte das propostas no texto de Carlos Aguiar de Medeiros são no sentido de aumentar os gastos públicos – pela elevação do salário mínimo, extensão da previdência, aumento do emprego público, maiores investimentos em serviços públicos, política industrial de apoio à produção de bens de consumo popular, fortalecimento do mercado interno, retomada e expansão do programa habitacional, etc. Sem ser economista, percebo aí um forte otimismo keynesiano, ou seja, a convicção de que estas políticas, ao aumentar a renda das pessoas, criariam novas demandas de bens e serviços, e desta forma estariam estabelecendo um círculo virtuoso de crescimento econômico, com os benefícios adicionais da equidade e autonomia em relação às oscilações e incertezas do mundo globalizado.

Meu comentário principal, em relação a esta linha de propostas, é que elas não parecem tomar em devida conta as restrições e contingências de curto e médio prazo em que vivemos, das quais eu listaria três. Primeiro, as restrições macro-econômicas, relacionadas à dívida pública e ao déficit externo. Estas restrições limitam, como sabemos, os recursos disponíveis a curto prazo para a atuação dos governos em todas as áreas, e impedem, por exemplo, o aumento do salário mínimo, ou dos investimentos em infraestrutura. A esta limitação quantitativa se acrescenta uma segunda, de natureza mais institucional, que é rigidez legal e a natureza regressiva dos gastos públicos, que concentram benefícios nas camadas médias e altas em detrimento das mais carentes, como ocorre, por exemplo, com as aposentadorias do serviço público e o ensino superior gratuito nas universidades estaduais e federais. Esta rigidez institucional está associada, por sua vez, a uma forte tradição clientelista e "rentista" de alto a baixo da sociedade brasileira, que vai desde a corrupção tradicional e arraigada das antigas agências de desenvolvimento regional até a proliferação de fundos financeiros de toda ordem, capturados por clientelas específicas.

Existe consenso sobre a presença destas restrições e contingências, ainda que possa haver ampla discordância sobre a extensão, a rigidez e seriedade de cada uma delas. Por exemplo, todos estão de acordo que seria muito importante reduzir a vulnerabilidade do país aos fluxos e refluxos do capital financeiro internacional e reduzir os imensos custos financeiros da dívida pública, aumentando os recursos disponíveis para gastos sociais e investimento, e estimulando a economia. Mas não existe acordo, nem clareza, sobre a maneira de resolver esta questão sem colocar o país em uma situação de grave crise de curto prazo. Os problemas de rigidez e iniqüidade dos gastos públicos tendem a ser tratados de dois pontos de vista distintos. Por um lado estão os que acham que, por exemplo, a iniqüidade do ensino superior gratuito deveria ser resolvida pela eliminação do ensino particular, ou que os direitos de aposentadoria plena dos funcionários públicos deveriam ser estendidos a toda a população; no outro estão os que crêem que funcionários públicos e estudantes universitários deveriam se responsabilizar pelo financiamento de suas aposentadorias e cursos, liberando mais recursos para segmentos mais necessitados da população.

Em parte, estas posições divergentes estão relacionadas à maior ou menor confiança que têm seus propositores quanto à capacidade de transformar a economia e gerar maior riqueza pelo simples exercício da vontade política dos governantes. Mas elas estão relacionadas também a uma tomada de posição de natureza ética e filosófica quanto à terceira questão mencionada acima, a de nossa cultura clientelística e rentista.

A questão que se coloca é a respeito da justeza moral, assim como das conseqüências práticas, de políticas públicas de distribuição de benefícios sem a contrapartida efetiva de trabalho e produção. Poucos sustentariam, em pleno século XXI, as teses malthusianas a respeito da pobreza, que seria da responsabilidade única e exclusiva das vítimas, que se corromperiam ainda mais se financiadas pelos governos e empresários. O apoio público aos necessitados e inválidos é claramente necessário, assim como são necessárias políticas orientadas para aumentar a igualdade no acesso às oportunidades de educação, trabalho e rendimento. As dúvidas são quanto à extensão destas transferências, e sua focalização. Em nome do apoio governamental à atividade econômica, o Brasil tem uma longa tradição de parasitismo, descrita pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso em termos dos "anéis burocráticos" que ligam governantes a empresários através de créditos, subsídios e contratos privilegiados, em troca de apoio político. Na área social, além das aposentadorias privilegiadas, está o financiamento público das organizações sindicais de patrões e empregados; na área política, está o financiamento das prefeituras e governos estaduais, seja por transferências legais, como o Fundo de Participação dos Municípios, seja pelos repetidos perdões ou absorções das dívidas pelo governo federal.

O texto de André Urani coloca a questão de maneira que me parece mais adequada. Ele não se baseia na suposição de que os recursos podem se expandir de forma imediata, e centra sua preocupação em identificar as reformas institucionais que precisam ser feitas para melhorar o acesso da população mais pobre às atividades econômicas produtivas, e que possam, também, reduzir a regressividade dos gastos sociais do país. O trabalho tem como ponto de partida a crítica ao "crescimentismo", que, segundo o texto, "pressupõe a manutenção dos privilégios e a geração e reprodução de desigualdades e ineficiências. Este modelo de desenvolvimento exacerba o papel do capital físico na economia, incentivando novos investimentos através de políticas fiscais, creditícias, tarifárias e/ou de preços discricionárias, direcionadas a setores considerados 'estratégicos' - geralmente capital-intensivos e geradores de poucos empregos." Na análise dos gastos sociais do Executivo, o trabalho chama a atenção para a má focalização dos gastos previdenciários e em educação, que precisariam ser redirecionados; e para a pouca clareza e avaliação de resultados no uso dos recursos discricionários do Estado, dedicados a programas assistenciais e de saúde.

 


Página seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.