Primeiras impressões sobre a etnologia indígena na Austrália [1]

 

 

Stephen G.Baines
Professor do Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília e pesquisador nível 1B do CNPq.
Brasília, 1993

Cheguei a Sydney em março de 1992 para realizar um levantamento de pesquisa sobre a antropologia na Austrália. Nos dias posteriores à minha chegada, as manchetes dos jornais revelavam que o canal da televisão ABC (Australian Broadcasting Corporation) divulgara, num documentário policial, um vídeo feito por amador, em que dois policiais australianos parodiaram as mortes de dois homens aborígines: Lloyd Boney, encontrado enforcado numa cadeia da polícia na cidade de Brewarrina, no norte do estado de Nova Gales do Sul em 1987, e David Gundy, assassinado a tiros pela polícia de Sidney no início de 1989. No vídeo, os dois policiais aparecem com rostos pintados de negro, segurando uma corda no pescoço. Foi filmado dois anos antes numa festa filantrópica para arrecadar verbas com a finalidade de financiar obras de caridade locais em Eromanga, no oeste do estado de Queensland e próxima à cidade de Bourke, Nova Gales do Sul, onde os dois policiais estavam lotados.

A divulgação do vídeo foi seguida por uma onda de manifestações de racismo, ocasionando, poucos dias depois, o incêndio da casa de um líder aborígine em Brisbane. O presidente da Associação da Polícia de Nova Gales do Sul tentou desculpar os dois policiais, ao declarar à imprensa que eles não pretendiam ofender a comunidade aborígine e que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto para aliviar o stress do seu trabalho (The Sydney Morning Herald, 14/03/92, p.7). Paul Coe, aborígine do Serviço Jurídico de Aborígines no bairro de Redfern, Sydney, declarou à imprensa que "Culpar um ou dois policiais que eram tão estúpidos ou ignorantes que exibiram seu racismo, é fazer deles bodes-expiatórios para os males e a doença que permeiam todas as instituições neste país. É um regime colonial tão nocivo e racista como o da África do Sul" (Ibid.).

Além do destaque destas notícias pela mídia, eu já tinha presenciado segregação racial em bares no interior do estado da Austrália Ocidental e outras manifestações de racismo numa visita anterior de três meses ao continente em 1978-79. A "Comissão Real sobre Mortes de Aborígines em Custódia da Polícia e do Sistema Penitenciário", estabelecida em 1987, que investigou as mortes de 99 aborígines e ilhéus do Estreito de Torres [2] ocorridas entre 1980 e 31 de maio de 1989, revela que a polícia australiana prende 29 aborígines para cada não-aborígine preso, e detém 15 aborígines nas penitenciárias para cada presidiário não-aborígine. No estado da Austrália Ocidental, 86,9% das pessoas julgadas e encarceradas, durante o ano de 1989, eram aborígines. E isso num país com cerca de 250.000 aborígines numa população total de aproximadamente 17 milhões. A Comissão Real descreveu esta desproporção como "uma vergonha nacional que deixa a Austrália desacreditada aos olhos da comunidade internacional". Contudo, ninguém foi julgado pelas mortes dos aborígines em custódia da polícia.

 

O Projeto de Pesquisa

Durante os dois anos antes desta ida à Austrália iniciei meu atual projeto de pesquisa, inspirado na leitura de trabalhos do Prof. Roberto Cardoso de Oliveira (1988). A minha pesquisa visa examinar a etnologia indígena na Austrália a partir da etnologia indígena no Brasil, como parte do projeto de pesquisa "Estilos de Antropologia", coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira, de cuja equipe faço parte, em que a dimensão comparativa da investigação passou a ser efetivada através do estudo do que se decidiu chamar de "antropologias periféricas" (Cardoso de Oliveira, 1988:143-159). A saber, aquelas antropologias situadas na periferia de centros metropolitanos da disciplina (nos centros científicos e acadêmicos onde a antropologia foi gerada - a Inglaterra, a França e os Estados Unidos da América). Como frisa Cardoso de Oliveira, "A justificação maior de um enfoque estilístico sobre as antropologias periféricas está no fato de que a disciplina nos países não metropolitanos não perde seu caráter de universalidade". Em vez de estudar a etnologia indígena como uma tarefa secundária relativamente às pesquisas antropológicas, no projeto pretende-se buscar construir o seu objeto, a etnologia indígena, no interior de uma problemática gerada na interface da própria disciplina com a epistemologia.

O presente estudo pode ser justificado nos termos que tanto a Austrália como o Brasil são "novas nações" (Cardoso de Oliveira, 1988:143-159), ex-colônias que são de países europeus, apesar de suas histórias serem obviamente muito diferentes. Todavia, em ambos os países, a investigação sobre o Outro é conduzida na forma de estudos a respeito de populações indígenas (ainda que nos dois países não o seja exclusivamente) sobre cujos territórios as nações se expandiram. A Austrália, diferente do Brasil, era colônia de um "país de centro" da antropologia - a Inglaterra - e possuía territórios além-mar (Papua Nova Guiné, até 1973), além de desempenhar um papel neo-colonial no sudeste da Ásia. Porém, malgrado tais diferenças, registra-se um grande dinamismo e desenvolvimento nas etnologias indígenas nos dois países, sobretudo a partir do final da década de '60.

No Brasil, vários trabalhos recentes refletem sobre a etnologia indígena: trabalhos bibliográficos de Julio Cezar Melatti (1982; 1984), e de Anthony Seeger e Eduardo Viveiros de Castro (1980); diversos trabalhos sobre a política indigenista de Alcida Ramos e uma reflexão sobre o estilo brasileiro de fazer etnologia (Ramos, 1990), um levantamento sobre etnologia indígena (Laraia, 1987) e parentesco (Laraia, 1986), trabalhos sobre política indigenista de Roberto Cardoso de Oliveira, João Pacheco de Oliveira, Roque de Barros Laraia e muitos outros antropólogos surgiram dentro da tradição estabelecida na etnologia indígena brasileira que focalizou o contato interétnico, iniciado por Darcy Ribeiro e encontrando seu principal mentor teórico em Roberto Cardoso de Oliveira nas suas publicações sobre "fricção interétnica" a partir do início da década de 1960. Como ressalta Mariza Peirano (1991:183-84), "o conceito de `fricção interétnica' foi ele próprio o resultado teórico da dificuldade e/ou impossibilidade de se viver essa distinção (entre `etnologia indígena' e `antropologia da sociedade nacional') por parte dos antropólogos brasileiros, constituindo-se, talvez, no conceito mais genuinamente `nativo' que a antropologia já produziu no Brasil". Constata Peirano, ao comparar a antropologia que se faz no Brasil com a que se faz na Índia:

"no Brasil uma teoria com compromissos políticos desenvolveu o conceito de `fricção interétnica', enquanto na Índia um contexto religioso faz da análise interpretativa do hinduismo um possível símbolo de nacionalidade. O conceito de fricção interétnica... tinha como objetivo avaliar o potencial de integração dos grupos indígenas na sociedade nacional lado ao lado com a preocupação teórica, o compromisso político do antropólogo era inegável" (1992:247-248).

Pode-se afirmar que este conceito ficou como "evento fundador" (Ricoeur, 1978) no desenvolvimento do estilo de etnologia indígena que se faz no Brasil, influenciando profundamente quase todos os trabalhos posteriores. Foi o meu interesse em realizar pesquisa sobre a situação de populações indígenas, depois de ter lido algumas publicações sobre o contato interétnico de Roberto Cardoso de Oliveira e Júlio Cezar Melatti, que me conduziu a escolher o Brasil para realizar o doutorado em 1980.

Cheguei à Austrália, em 1992, com uma leitura apenas preliminar sobre a etnologia indígena naquele país, dirigida para obter algumas idéias gerais sobre a sua história e as tendências atuais. Neste trabalho, pretendo comentar minhas primeiras impressões, tomando como ponto de partida as considerações de Mariza Peirano (1992:237), para abrir uma discussão sobre a possível aplicação delas ao caso da Austrália:

"1) que o pensamento do antropólogo é parte da própria configuração sociocultural na qual ele emerge; 2) que os contextos socioculturais ideologicamente predominantes no mundo moderno são os estadosnações; 3) que as representações sociais da nação não são uniformes; 4) que, dado que o desenvolvimento da antropologia coincidiu e se vinculou à formação das nações-estado européias, a ideologia de construção nacional (nation-building) é um parâmetro e sintoma importante para a caracterização das ciências sociais onde quer que elas surjam".

Diferente da minha proposta no caso da Austrália, o trabalho de Peirano não se restringe exclusivamente à etnologia indígena, considerando que ela entrevistou alguns antropólogos que não são dessa área. Como aponta Melatti (comunicação pessoal), uma comparação com o Brasil nos parâmetros do trabalho de Peirano, teria que examinar também a literatura australiana e a vida intelectual mais ampla, inclusive a antropologia física naquele país, e também os estudos de negros no Brasil que focalizam o conceito de "raça", o que está além das pretensões deste trabalho. Outra questão importante para levar em consideração é o fato que a Austrália não teve uma população de origem africana transplantada à força, a colonização se iniciando pelo estabelecimento de colônias penais britânicas. Contudo, vale lembrar, como afirma Kapferer, em artigo sobre ideologia nacionalista e antropologia comparativa, que "a subjetividade do antropólogo, como a de qualquer outra pessoa, está fundamentada nos mundos históricos e ideológicos em que ele(a) está posicionado(a)" (1989:166).

 

O levantamento de pesquisa

Neste trabalho pretendo resumir algumas das primeiras impressões que obtive através de entrevistas com antropólogos, sobretudo os que trabalham na área de etnologia indígena, durante minhas estadias em três dos maiores centros de etnologia indígena na Austrália - Sydney, Canberra e Perth [3], deixando para trabalhos posteriores o desenvolvimento de alguns dos temas comentados brevemente aqui. Neste levantamento de pesquisa, entrevistei, também, alguns aborígines que se apresentam como porta-vozes da política indígena. Recorro também a matérias de jornais da época do levantamento de pesquisa e a alguns trabalhos indicados pelos entrevistados, muitos dos quais pediram que eu não citasse o que foi dito nas entrevistas sem primeiro consultá-los. Além de realizar entrevistas, fui convidado para apresentar seminários na Universidade de Sydney, na AIATSIS, Canberra, na Universidade de Western Australia, e na Anthropological Society of Western Australia e a participar dos seus seminários como ouvinte.

Muitos etnólogos na Austrália participam em processos de reivindicação territorial no Território do Norte e da delimitação de sítios de significação para os aborígines em diversas partes do continente, em situações que quase todos descreveram como politicamente muito sensíveis, assunto que comentarei mais adiante. Alguns disseram que suas carreiras poderiam ser prejudicadas pela divulgação dos seus depoimentos em contextos que julgaram inapropriados e onde o conteúdo poderia estar sujeito à manipulação por interesses contrários aos das populações indígenas com as quais realizam pesquisas. Esse clima altamente politizado em que se realiza etnologia indígena na Austrália esclarece uma preocupação do antropólogo exercer um controle sobre a apresentação das suas declarações.

Alguns dos entrevistados comentaram, também, que essa era a primeira vez que tinham sido entrevistados a respeito da antropologia que se faz na Austrália, ressaltando que suas observações eram preliminares e merecedoras de uma reflexão mais profunda.

Certos etnólogos expressaram desconfiança quanto às intenções de um desconhecido, de outro país, chegar como se fosse "de pára-quedas" e ter o que julgaram a pretensão de comentar sobre uma disciplina à qual eles dedicaram muitos anos das suas vidas. Em alguns casos houve uma relutância em divulgar, em uma hora e pouco de entrevista, detalhes da sua vida profissional e dos seus pensamentos sobre a antropologia que resultaram de longos anos de pesquisas. Comentários do tipo: "Os meus relatórios de pesquisa são politicamente sensíveis demais para lhe mostrar", com acréscimos que revelavam o seu receio de que a citação dos seus comentários por mim, fora do contexto político local, pudesse ter conseqüências adversas. Obviamente, como nas minhas pesquisas anteriores com uma população indígena, teria que passar um período de pesquisa de campo de longa duração com alguns etnólogos "nativos", para começar a ganhar a sua confiança. Tenho que respeitar, por um lado, os limites impostos por minha própria falta de conhecimento da etnologia indígena na Austrália e por minha falta de familiaridade com o ethos da comunidade acadêmica naquele país e, por outro lado, os limites impostos pelos entrevistados ao exigir um controle sobre a divulgação dos seus comentários verbais. Entretanto, apesar de um evidente constrangimento em alguns casos, quase todos os etnólogos encontrados aceitaram ser entrevistados.

Minha situação, ao realizar este levantamento de pesquisa, foi permeada por ambigüidades, pois, apesar de eu ter nascido nas Ilhas Britânicas, sou brasileiro por nacionalidade e por formação acadêmica a nível de doutorado. Cursei o mestrado (M Phil.) em antropologia social na Universidade de Cambridge (1979-80), Inglaterra, vindo para a UnB em 1980, primeiro como aluno especial. Entrei no programa de doutorado (l981-87), orientado pelo Prof. Julio Cezar Melatti, onde também cursei disciplinas ministradas pelo Prof. Roberto Cardoso de Oliveira, fundador do doutorado na UnB, sendo a antropologia brasileira, mais especificamente a etnologia indígena, a área em que consolidei minha formação. Uso minha experiência na etnologia brasileira durante os últimos doze anos como caso paradigmático para abordar a etnologia indígena na Austrália.

Enquanto no Brasil, país em que resido desde 1980, sou mais comumente classificado pelos antropólogos como "anglo-saxão", e por outros, inclusive alguns indigenistas, como "estrangeiro" ou "gringo", ao me destacar por minha aparência pouco nativa e sotaque, na Austrália havia mais ambigüidade quanto à identidade que me foi atribuída. Fui visto, em primeiro lugar, como brasileiro, pois escrevera da Universidade de Brasília para estabelecer os primeiros contatos e fui à Austrália com financiamento do CNPq. Contudo, vários antropólogos australianos me caracterizaram como não sendo um "verdadeiro" brasileiro. Fui apresentado às vezes como brasileiro, outras vezes como inglês que mora no Brasil, e ainda como "pommy", termo em gíria australiana usado para se referir aos imigrantes britânicos que residem na Austrália. Essas observações, à primeira vista triviais, revelam um essencialismo quanto à atribuição da identidade que permeia o senso comum e molda os estilos da disciplina.

 

Austrália: O lugar da etnologia indígena na antropologia

Escolhi a etnologia indígena como foco de pesquisa, em primeiro lugar por ser a minha principal área de interesse, e decidi concentrar-me especificamente na etnologia que estuda as populações aborígines do continente australiano, ignorando as outras principais áreas geográficas que são objeto de estudo da antropologia que se faz na Austrália, como as pesquisas sobre populações indígenas da Papua-Nova Guiné, Oceânia, e outras áreas de estudo como o sudeste e sul da Ásia. A antropologia na Austrália é dividida, pelos antropólogos que trabalham naquele país, em áreas geográficas a nível mundial, como nas tradições antropológicas britânicas e norte-americanas, e diferente da antropologia que se faz no Brasil que, até a última década, restringiu-se, com raras exceções, ao Brasil.

Somente nos anos recentes a antropologia no Brasil passou a incluir pesquisas sobre estilos de antropologia. Outros trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira (1988) - a proposta de estudar antropologias periféricas; Mariza Peirano (1981, 1987, 1988, 1989, 1992) - Brasil e Índia; Mariza Corrêa (1991) - Brasil; Leonardo Fígoli (1989) - Argentina; e Guillermo Rubens (1990) - Canadá francófono; abordam estilos de antropologia em países periféricos, representando tentativas, algumas comparativas, de pensar antropologicamente a disciplina. A escolha da etnologia indígena na Austrália como objeto de enfoque foi feita para limitar a abrangência da pesquisa numa vasta literatura antropológica, embora nas etapas futuras eu pretenda me familiarizar mais com os outros campos de estudo da disciplina para examinar sua relação com etnologia indígena.

Outro motivo da minha escolha é o lugar central dado à etnologia indígena pelos antropólogos "nativos". Ronald Berndt & Robert Tonkinson (1988), ao avaliar os desenvolvimentos da etnologia indígena na Austrália entre 1961 e 1986, frisam: "Pode-se dizer que a antropologia social na Austrália ainda é vista, tanto dentro da Austrália como no exterior, em termos de pesquisa e publicações sobre aborígenes, embora as pesquisas também abranjam a sociedade australiana global e as regiões circunvizinhas" (1988:6).

Berndt & Tonkinson afirmam que, até 1986, não havia uma grande aceitação de novos modelos teóricos da Europa e dos Estados Unidos entre etnólogos na Austrália. Dividem seu livro em cinco tópicos: gênero, parentesco, economia, política e religião, os quais, com exceção de "gênero", seguem a divisão tradicional da monografia na antropologia britânica, revelando a forte influência desta sobre sua maneira de ver a antropologia na Austrália. A grande maioria dos trabalhos etnológicos sobre populações nativas era do tipo monográfico que trata do sistema sociocultural do grupo objeto de estudo. Berndt & Tonkinson observam que a "antropologia de resgate" que prevaleceu até 1961, quase desapareceu, já que predominam os processos de mudança e transformação cultural (1988:4).

John Barnes (in Berndt & Tonkinson, 1988:269-270) relaciona o enfoque de "antropologia de resgate" daquela época (uma tentativa de recordar o patrimônio aborígine antes do seu desaparecimento), em parte, a uma estratégia para conseguir verbas do governo da Commonwealth Australiana. Ao acentuar o contraste entre a cultura tradicional do passado e as situações de rápida mudança social e cultural do presente, foi possível dar a impressão de que os propostos programas de pesquisa não infringiriam os interesses da burocracia de "Aboriginal welfare". Jeremy Beckett critica a afirmação feita por John Barnes de que antropologia na Austrália estava desligada dos problemas políticos das populações nativas e sugere que Barnes e outros antropólogos da sua linha desencorajaram um envolvimento político dos seus alunos de pós-graduação. Beckett afirma que, desde a década de 60, escreveu sobre o consumo de bebida alcoólica entre aborígenes como uma forma de resistência, além de focalizar os movimentos políticos entre os ilhéus do Estreito de Torres.

Vários etnólogos ressaltaram a estreita relação entre a etnologia indígena que se faz na Austrália e as questões políticas interna e externa e como esta etnologia tem sido moldada pela legislação e política indigenista. Alguns trabalhos etnológicos focalizam a questão de aboriginalidade na sociedade australiana (por exemplo, Beckett 1988a, 1988b; Rowse 1988; Morris 1988) e sua relação com a construção de um nacionalismo australiano que vem surgindo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.

 

Austrália: o contexto ideológico e político

Conforme a maioria dos antropólogos entrevistados, os australianos, até a década de 1950, viam-se como europeus, sobretudo britânicos [4], e conceituavam a Austrália como um estado-nação europeu de colonização, de fala inglesa, muito distante da Europa.

Segundo Trood (1990:89), quando a Commonwealth da Austrália foi fundada em 1901, seus líderes políticos não consideravam seriamente a possibilidade de seguir uma política de relações exteriores independente. Citando o primeiro ministro da nova nação, Edmund Barton: "política de relações exteriores (australiana) é do domínio do Império" (britânico) e, segundo Trood, a maioria dos australianos concordavam com isso. Durante várias décadas, definiam seu lugar em assuntos internacionais com referência ao status do seu país como parte do Império Britânico mais do que como um país autônomo e independente dentro do sistema internacional.

Na primeira metade do século, a antropologia na Austrália tem de ser examinada dentro deste contexto. Partindo dessa configuração política, e tomando em consideração o fato de que, ao ter acesso fácil a antropólogos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos através da língua inglesa, e pelo fato de que muitos antropólogos que trabalham na Austrália vêm desses dois países e/ou ali realizaram seus doutorados ou pós-doutorados, vários antropólogos na Austrália afirmaram que a antropologia que se faz neste país seria melhor caracterizada como "semi-periférica", no sentido usado por Roberto Cardoso de Oliveira (1988:143-159) ao se referir às "antropologias periféricas".

A nível teórico, pretende-se interpretar a etnologia indígena na Austrália em suas respectivas singularidades, sem no entanto desenraizá-la da matriz disciplinar que a gerou.

A nível prático, espera-se aumentar as relações entre institutos ou departamentos de antropologia na Austrália e no Brasil. Seguindo Stocking Jr. (1982:172), a antropologia que se faz na Austrália pode ser considerada uma antropologia que, até aproximadamente 30 anos atrás, surgiu e se estabeleceu dentro do contexto da "construção do império" mais do que uma antropologia que se desenvolveu no contexto da "construção da nação", o que reforça ainda mais sua caracterização como "semi-periférica". Nesse aspecto, a história da antropologia na Austrália até a década de 1950 está estreitamente relacionada aos acontecimentos políticos mundiais e seu impacto nesse continente visto através de um prisma britânico.

A maioria dos antropólogos entrevistados afirmou que nation-building não se apresentava como uma questão relevante na antropologia que se faz na Austrália. Um antropólogo norte-americano ali radicado opinou que a questão da construção da nação não está presente no pensamento dos pesquisadores, que focalizaram mais a questão da tensão entre aborígines e a sociedade nacional. O mesmo antropólogo norte-americano citou, em contraste, a antropologia que se faz na Indonésia como exemplo de um estilo de antropologia estreitamente relacionada às questões de integração nacional e a tentativa de criar uma identidade nacional, em que alguns antropólogos, como, por exemplo, Koentjaraningrat, identificam-se com essas questões, abordando-as através de uma teoria sobre etnicidade e um enfoque da questão do surgimento de uma identidade indonésia. Uma situação, entretanto, muito distinta da do Brasil, considerando que a Indonésia é um estadonação muito mais novo que o Brasil, constituído de uma grande arquipélago de muitas ilhas e dividido por grandes contingentes de grupos étnicos muito diversos em línguas e culturas.

Entretanto, por ser uma ex-colônia em que uma maioria de populações colonizadas foi dominada por uma minoria de colonizadores europeus durante a ocupação holandesa, diferente da Austrália que foi pensada como uma nação européia de colonização, a Indonésia enfrentou, e está enfrentando, o problema de tentar construir um estado-nação como programa político (Geertz, 1978).

Com a perspectiva de guerra na Ásia e no Pacífico, o governo de Menzies, em 1939, tomou providências para estabelecer contatos diplomáticos com os Estados mais importantes da região e desempenhar um papel mais ativo em questões locais, o que marcou um primeiro passo para uma autonomia. A invasão japonesa dos países ao norte do continente australiano foi interpretada como uma grande ameaça para a Austrália e o governo trabalhista de John Curtin apelou por apoio aos Estados Unidos. Durante a 2ª Guerra Mundial, enquanto tropas australianas foram deslocadas para a Europa, o Oriente Médio e o Norte da África, tropas norte-americanas foram baseadas no extremo norte da Austrália, em contato direto com as populações aborígines. Alguns aborígines tiveram a experiência de conhecer, pela primeira vez, outras pessoas classificadas como "blacks". A ameaça de uma invasão do norte despertou interesses nacionais e uma consciência de estar localizada na periferia da Ásia. A partir dessa época a Ásia e o Pacífico tornaram-se áreas de interesse nacional.

Somente a partir da 2ª Guerra Mundial, quando os australianos se sentiram abandonados pela Grã-Bretanha, houve o início de uma modificação e repensamento da tradição cultural e politica britânica e da perspectiva anglocêntrica, até então, arraigadas na Austrália. O Tratado ANZUS, de 1951, entre a Austrália, Nova Zelândia e os Estados Unidos da América foi a primeira tentativa de formalizar as relações com o governo norteamericano.

Com a criação da SEATO (South East Asia Treaty Organization), em 1954, contra a expansão comunista, os principais aspectos da política exterior norte-americana foram acatados pelo governo australiano. A partir do momento em que as forças navais do Reino Unido se retiraram do "leste de Suez", torna-se evidente a estreita consonância entre a política do governo australiano e os critérios políticos adotados pelos Estados Unidos da América para a região. Depois da 2ª Guerra Mundial, a Austrália tornou-se cliente dos Estados Unidos e do Japão.

A antropologia na Austrália está estreitamente relacionada às influências da Grã- Bretanha e da América do Norte - os Estados Unidos e, talvez menos, o Canadá - que constituem a esfera principal de intercâmbio de profissionais na disciplina. Até a década de 1960, os modelos britânicos dominaram a antropologia na Austrália. Cabe mencionar que predominavam os temas tradicionais da antropologia britânica, baseados em estudos de organização social e parentesco, tratando as populações indígenas como unidades socioculturais autônomas. Na etnologia indígena na Austrália, antes da década de 1970, pouco se dizia sobre o contato interétnico e questões como aborígines e a polícia e a violência da situação colonial em que se encontram as populações aborígines. Pouco se dizia, inclusive, sobre as populações aborígines das regiões densamente povoadas do sudeste, litoral do leste e sudoeste do continente australiano, que sofreram o primeiro impacto da colonização e com mais violência, tendo a etnologia focalizado como objeto de estudo os aborígines do norte e centro do continente. Os aborígines "do norte" foram caracterizados, em linguagem popular, como "full-blood" ("puros", "de sangue puro"), categorias baseadas no conceito de "raça", em contraste com os "do sul", "half-castes", "mixed blood" ("mestiços") das áreas mais densamente povoadas por imigrantes, apesar de todos terem sido sujeitos à miscigenação biológica. Os primeiros foram caracterizados como "mais autênticos", "verdadeiros" e "tradicionais", e assim definidos como objeto privilegiado de estudo em contraste com os "menos autênticos" (Cowlishaw, 1986:2) das regiões densamente povoadas, sobretudo os aborígines citadinos.

Uma antropóloga aborígine [5] (Langton, 1981:16), que se definia como ativista, comenta que poucos antropólogos realizaram pesquisas sobre a vida de aborígines em contextos urbanos, e as que se fizeram não rompem com a ideologia que divide os aborígines entre tribais e destribalizados - os aborígines "verdadeiros" e os outros. Langton critica os antropólogos por, segundo ela, terem criado essa ideologia. Em conseqüência da dicotomia "full-blood - half-caste" (sangue puro - mestiço) e do "triângulo citadino-ruraltribal", surge o modelo popular e insustentável de uma população aborígine "em vias de se destribalizar" ou "em vias de se tornar citadina". Através desse modelo, segundo Langton, o discurso assimilacionista foi apropriado pela antropologia.

Apesar da rejeição, por parte de aborígines, do papel do antropólogo como seu intermediário ou defensor, a legislação para reivindicar territórios indígenas exige a participação de antropólogos. Langton, na palestra "Wentworth" de 1992, organizada pelo "Australian Institute of Aboriginal and Torres Strait Islander Studies" (AIATSIS), expôs sobre suas pesquisas a respeito das relações entre aborígines e a polícia no Território do Norte e as soluções encontradas por aborígines através de projetos comunitários de policiamento feitos por eles mesmos. Projetos pensados através da ideologia de autodeterminação indígena que visam diminuir a violência dentro das comunidades, ao mesmo tempo diminuindo a violência policial que aumenta ainda mais a primeira.

As populações aborígines "do norte" do continente foram contrastadas com aquelas "do sul" também na base de uma dicotomia entre uma "Austrália povoada" ("settled Australia") e "Austrália despovoada", apesar de todo o continente ter sido colonizado.

A dicotomia falsa, constata Cowlishaw (1986:2), ainda arraigada à antropologia, manifesta-se na tendência de privilegiar pesquisas no norte do continente. Cowlishaw afirma que não foram desenvolvidos, dentro da antropologia na Austrália, conceitos ou teorias que davam conta nem das relações entre populações indígenas e a sociedade nacional, nem de mudança social, apesar dos antropólogos vivenciarem essas questões durante suas pesquisas de campo. Os antropólogos tradicionalmente negaram aos aborígines a sobrevivência da sua cultura nas "settled areas", afirmando a "destruição" e "perda" da sua cultura. Somente uma minoria destes profissionais focaliza as populações aborígines citadinas e/ou das regiões do continente densamente povoadas por populações nãoaborígines e, por caminhos diferentes, rompem com a busca do "tradicional" de uma etnologia de continuidade cultural (para mencionar somente alguns exemplos, Beckett, 1958, 1964, 1992; Sansom, 1980, 1991; P. Baines 1988, 1991; Cowlishaw, 1986, 1988; Langton, 1991; Morris, 1985, 1991).

Uma antropóloga entrevistada afirmou que os aborígines citadinos com quem realiza pesquisa interpretam a negação antropológica de sua identidade cultural como mais uma expressão do desejo dos não-aborígines de que eles desapareçam como um povo, vendo essa negação, também, como equivalente a violação dos locais que lhes são sagrados.

Cowlishaw (1986:3) sugere que os antropólogos acriticamente tenham equiparado "aborígines tradicionais" ao conceito evolucionista prevalente no início do século, de "raça aborígine", uma equivalência que, usando categorias incorporadas por alguns antropólogos da comunidade acadêmica australiana, desvalorizou o estudo de grupos "não-tradicionais", "não verdadeiros", "mestiços","do sul" do continente. Cowlishaw argumenta que a definição submersa ou insinuada de aborígines como uma "raça" existe como um "pressuposto cultural" incorporado pela antropologia social na Austrália desde a adoção do paradigma estrutural-funcionalista. O enfoque estreito da etnologia indígena na reconstrução de sociedades aborígines "como fossem" eliminou a possibilidade de uma preocupação com o contexto da sociedade nacional e os fatores políticos do contato interétnico que, com raras exceções, não foram focalizados como questões centrais da etnologia indígena. Essa preocupação chegou à antropologia através de outras disciplinas como a Ciência Política (por exemplo, Rowley, 1970, 1971). Cabe destacar que essa preocupação veio de fora da disciplina. Cowlishaw (1986:11) afirma que o ponto de vista que assume que há uma posição antropológica correta sobre questões políticas e éticas tende a sufocar qualquer debate sobre essas questões. Essas categorias permeiam a etnologia indígena na Austrália e, em grande parte, moldaram os rumos da disciplina, ao serem incorporados na definição do que era e o que não era o objeto de estudo da disciplina.

Cowlishaw (1986:1) afirma que as idéias a respeito da antropologia que subjazem a essa divisão foram pouco examinadas. A representação de sociedades aborígines contemporâneas tem sido inadequada porque a antropologia não desenvolveu conceitos que dão conta da mudança social. Os conceitos de cultura e estrutura social fundamentaram-se numa totalidade e ordem social integrada, um conceito antropológico de "cultura tradicional", associado ao conceito antigo de "raça", que não explica o caráter total do contato interétnico. Esse viés teórico impossibilitou o reconhecimento de uma ideologia sistemática e consistente entre grupos subordinados a que se nega o poder de dar expressão às suas idéias. Uma conseqüência tem sido que muitos antropólogos caíram num dualismo que reflete o impasse teórico de uma perspectiva que não dá conta de fatores históricos, políticos e econômicos. Outra conseqüência foi que pesquisas antropológicas junto a populações indígenas "não tradicionais" tiveram baixo status na comunidade acadêmica (Cowlishaw, 1986:8).

Pesquisas realizadas junto a populações aborígines no estado de Nova Gales do Sul foram consideradas como um aprendizado antes de começar a pesquisa "verdadeira", ou no norte do continente entre os "verdadeiros" aborígines ou com populações indígenas além-mar. Cowlishaw afirma que, ao focalizar a questão de racismo como objeto de estudo, o seu trabalho não é reconhecido por alguns etnólogos na Austrália como "antropologia", que o classificam como "sociologia" por focalizar um domínio relacionado à sociedade nacional. A escassez de pesquisas entre aborígines citadinos é uma questão melindrosa para alguns antropólogos de orientação mais tradicional.

 

A etnologia indígena no final do século XIX e no início do século XX - Austrália como arena de exemplos etnográficos para a antropologia emergente dos "países de centro".

Não tenho pretensões, nem conhecimento suficiente, para entrar em detalhes sobre a história da antropologia na Austrália, tarefa que, ademais, já foi feita por Hamilton (1982), Peterson (1990), McCall (1982) e outros, além de existir uma multiplicidade de histórias das subdivisões da antropologia, e de áreas especializadas. Porém, acho imprescindível esboçar as minhas primeiras impressões baseadas em alguns textos indicados pelos antropólogos entrevistados e nas entrevistas que realizei na Austrália, considerando que o desenvolvimento da antropologia somente pode ser compreendido dentro do contexto histórico da formação da Austrália como estado-nação.

Na primeira metade do século passado o interesse em frenologia levou à exportação de crânios de aborígines à Inglaterra (Hamilton, 1982:92). No final do século passado e início deste século, a vida dos aborígines passou a ser considerada, nos debates sobre a evolução social, como uma janela privilegiada para as origens da religião, do matrimônio e da vida social. Os primeiros cientistas que passaram períodos longos com aborígines eram cientistas naturais, interessados, primeiramente, na coleta e estudo de flora e fauna.

Peterson aponta Baldwin Spencer, professor de zoologia da Universidade de Melbourne, como "um pai fundador da antropologia acadêmica na Austrália" (1990:5).

Na Austrália, como no Brasil, a antropologia foi estabelecida primeiro nos museus. O Museu Australiano em Sydney foi iniciado em 1829, seguido pelo Museu de Tasmânia em 1843, o Museu Nacional de Vitória em 1854, o Museu de Queensland em 1855, o Museu de Austrália Meridional em 1856 e o Museu de Austrália Ocidental em 1891 (McCarthy, 1982:23). O final do século passado e início deste século foi um período marcado por várias expedições antropológicas no continente australiano. A Expedição Científica Horne à Austrália Central, da qual participou Baldwin Spencer, em 1894, e a expedição da Universidade de Cambridge ao Estreito de Torres em 1898, da qual participou Haddon, foram seguidas por uma expedição de um ano realizada por Spencer e Gillen em 1901, e a Expedição Antropológica de Oxford e Cambridge à Austrália Ocidental em 1910-11, com a participação de A.R. Brown (posteriormente, Radcliffe-Brown). Hamilton (1982:95) menciona que em 1911, quando Radcliffe-Brown estava assistindo uma cerimônia de iniciação no interior da Austrália Ocidental, junto com Daisy Bates, o acampamento de aborígines foi invadido pela polícia. Radcliffe-Brown abandonou a região e seguiu para a ilha de Bernier, um hospital para aborígines com doenças venéreas terminais.

Essas primeiras pesquisas estimularam o interesse de antropólogos radicados na Europa, sobretudo os britânicos. A etnografia desta época, realizada na Austrália, oferecia dados para a discussão teórica, em obras de Van Gennep (1905), Marett (1909), Frazer (1910), Durkheim (1912), Freud (1913), Malinowski (1913), Radcliffe-Brown (antes de assumir a primeira cadeira em antropologia na Universidade de Sydney em 1926) e outros (cf. Stocking, Jr., 1984). Nesse período, pode-se afirmar que a Austrália servia como uma arena para exemplos etnográficos, do "homem da Idade da Pedra" da teoria evolucionista, visto como "o nosso ancestral contemporâneo", o "mais primitivo" e "mais exótico", para os grandes debates da antropologia nos "países de centro", onde a disciplina estava em processo de consolidação, análoga ao papel freqüentemente atribuído à Amazônia, em tempos mais recentes, como arena de exemplos etnográficos para os debates sobre a relação entre o homem e o meio-ambiente, sobretudo em trabalhos de inspiração neoevolucionista, na ecologia cultural e na sociobiologia norte-americanos.

Os dados sobre o totemismo publicados por B. Spencer e F.J. Gillen (1899) foram usados para questionar as premissas da época e tiveram um impacto tão grande que Malinowski sugeriu, em 1913, que metade da teoria antropológica escrita desde então fora baseada neles (Stocking, Jr., 1983:79). Entretanto, segundo Stocking Jr. (Ibid.), Baldwin Spencer, realizando pesquisas numa colônia distante, não criou uma escola de antropologia e não deixou sucessores acadêmicos, sendo incorporado numa linha de etnólogos australianos que forneciam dados etnográficos para antropólogos nos "países de centro". Baldwin Spencer é visto por Stocking Jr. como agente etnográfico na Austrália com quem Frazer correspondia da sua poltrona na Inglaterra. Assim, conforme Stocking Jr., Baldwin Spencer foi excluído do processo de construção de mitos da antropologia britânica, onde relações de linhagem desempenharam um papel determinante.

De maneira semelhante Lorimer Fison e A. W. Howitt correspondiam, na década de 1870, com Lewis Henry Morgan nos Estados Unidos e, após sua morte, com E.B. Tylor na Inglaterra (Mulvaney, 1990:34-42), fornecendo-lhes dados etnográficos. O caso de Baldwin Spencer como o de Fison e Howitt, pode ser comparado ao de Curt Nimuendajú no Brasil, que correspondia com Robert Lowie nos Estados Unidos, fornecendo-lhe dados sobre populações indígenas do Brasil (Melatti, 1985). Os dados de Nimuendajú impressionaram, depois, a Lévi-Strauss e George Murdock.

Em 1914, Haddon, Rivers e Marett foram da Inglaterra para a primeira Reunião da Associação Britânica para o Progresso das Ciências realizada na Austrália, em Melbourne. Malinowski também estava presente na reunião e, com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, foi ameaçado de internação por ser polonês de nacionalidade austríaca, escolhendo as ilhas Trobriand para passar o período de internação. Foi a partir desta data que foram iniciadas as primeiras tentativas formais para estabelecer antropologia na Austrália como uma disciplina universitária, interrompidas pela eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Em 1919, Haddon tentou reativar a proposta. Antes da 1ª Guerra, o interesse em estabelecer a antropologia na Austrália foi expresso em termos da importância de conhecimentos sobre aborígines para a ciência.

Desde a década de 1880 a Grã-Bretanha e a Alemanha assumiram a soberania da Nova Guiné. Como conseqüência da Guerra, a Liga de Nações deu um mandato para a Austrália governar Nova Guiné em 1920, e em 1921 foi promulgada a Ata da Nova Guiné pelo governo da Commonwealth Australiana, estabelecendo uma administração civil e colocando a parte oriental da Nova Guiné sob controle da Austrália. No mesmo ano, em reunião do ramo australiano da Associação para o Progresso da Ciência, a seção de antropologia apresentou uma proposta de estabelecer a antropologia como uma disciplina acadêmica, fazendo referência ao seu uso político "em governar raças subordinadas" (Elkin, 1970: 250). Nesta reunião, foi criado o Australian National Research Council (ANRC), que tomou iniciativas para estabelecer uma cadeira de antropologia antes do 2º Congresso Pan-Pacífico de Ciências, realizado na Austrália em 1923. Peterson (1990) revela que o Congresso ressaltou a necessidade do ensino de antropologia nas Universidades, mencionando a utilidade da pesquisa antropológica na Nova Guiné, sem mencionar, entretanto, sua utilidade junto a populações aborígines na Austrália.

Depois do Congresso, o ANRC conseguiu o apoio do governo australiano para estabelecer uma cadeira em antropologia na Universidade de Sydney. Contudo, o governo retirou seu apoio e a Fundação Rockefeller ofereceu financiamento, supondo que a biologia humana seria privilegiada. Com apoio da Fundação Rockefeller, que resolveu repassar verbas através do ANRC, e do governo australiano, a Universidade de Sydney estabeleceu uma cadeira em antropologia em 1925, e o britânico Radcliffe-Brown foi escolhido para o cargo, assumindo em 1926. Radcliffe-Brown visualizava a antropologia como uma disciplina científica, considerando seus usos na administração de populações nativas de importância secundária. Seu interesse era de delinear a estrutura interna do típico grupo social aborígine e traçar suas variações por todo o continente, o que conduziu, nas décadas seguintes, a estudos descritivos sobre organização social, parentesco, formas de matrimônio, religião, e aspectos tradicionais. Os resultados de muitas destas pesquisas foram publicados no periódico Oceania, criado por Radcliffe-Brown em 1930. Em 1931, Radcliffe-Brown deixou o Departamento de Sydney, e o neo-zelandês Raymond Firth assumiu como professor titular interino por 18 meses, mudando logo para a London School of Economics com Malinowski. O antropólogo e pastor religioso australiano A.P.Elkin assumiu em 1933, permanecendo no cargo até se aposentar em 1956. O financiamento da Fundação Rockefeller continuou até 1938, embora as últimas pesquisas financiadas por ela tenham sido concluídas em 1940.

Desde o início, a antropologia não foi considerada de utilidade prática para administradores de aborígines na Austrália, enquanto a administração da Nova Guiné a considerava útil. Em 1921 e 1924 dois antropólogos do governo foram nomeados para trabalhar na Nova Guiné, e funcionários administrativos passaram um período de treinamento de um ano no Departamento de Antropologia de Sydney, após sua fundação (Peterson, 1990:12). Firth, numa tentativa de salvá-lo de fechamento por falta de verbas, divulgou que o Departamento de Sydney treinara, durante seus primeiros 6 anos, 14 funcionários para o serviço colonial australiano, uma dúzia de funcionários administrativos para trabalhar no norte do continente e alguns missionários, além de ter aceito mais de 300 alunos (McCall, 1982:13). Peterson aponta como a teoria funcionalista foi considerada adequada para a política de administração indireta na Nova Guiné, onde o governo se preocupava com sociedades que "funcionavam quase independentemente" (1990:12-13), vendo a antropologia como útil lá para fins administrativos. Essa observação aponta a forte correlação entre a teoria funcionalista e um certo tipo de colonialismo.

Peterson (Ibid.) frisa que na Austrália havia populações indígenas que, apesar de terem sofrido transformações demográficas e econômicas, tinham uma orientação social e cultural semelhantes àquela da época pré-colonial. Afirma que o passado pré-colonial estava suficientemente próximo para não ameaçar o paradigma funcionalista, admitindo uma certa reconstrução. Peterson, entretanto, explica que a antropologia não foi considerada de relevância prática para a administração de aborígines na Austrália porque, segundo ele, os povos indígenas não se encontravam em situações e com organização social adequadas para a administração indireta, diferentemente dos povos da Nova Guiné. Outra explicação seria encontrada a partir do fato de que a Austrália foi pensada, na época, como uma nação européia de colonização, com que a prática de administração indireta seria incompatível, reservada para as colônias e países sob mandato. Beckett (1988a:195) - menciona que até o final da década de 1960, os historiadores australianos omitiram os aborígines da história da Austrália, preocupados que estavam com a história da transformação da colônia em um estado-nação anglofone. Como Peterson (1990) afirma, até o início da 2ª Guerra Mundial, a pesquisa com aborígines foi realizada para fornecer indicações sobre a "natureza do homem" e não sob o pretexto de ser útil para a adminis tração.

Hamilton (1982:98) retrata A.P.Elkin, na década de 30, como paternalista, orgulhoso por ser mediador entre os aborígines e as entidades governamentais responsáveis pela formulação da política indigenista, e sem conseguir visualizar alternativas viáveis à intervenção paternalista governamental. Ela observa (1982:100), entretanto, que, nessa época, o envolvimento de antropólogos com agências governamentais foi considerado louvável por ser uma preocupação por parte deles com o bem-estar dos aborígines. Até os fins da década de 1930 a questão de "mudança social" tornou-se tema de debate em toda a região. Com a cessão de financiamento pelo ANRC e Fundação Rockefeller, o Departamento de Antropologia em Sydney estava procurando verbas, e questões relacionadas à "administração de nativos" tornaram-se prioritárias. Antropólogos começaram a ser alvo de críticas por defenderem a manutenção de reservas indígenas no Território do Norte, vistas como empecilhos ao desenvolvimento econômico. Foram acusados de quererem manter aborígines em redomas com o objetivo de conservar os seus objetos de estudo.

 

A etnologia indígena na Austrália após a Segunda Guerra Mundial

Após a 2ª Guerra Mundial, Peterson (1990:14) observa uma transformação fundamental na antropologia. A ameaça de uma invasão japonesa do norte levou o governo a melhorar as comunicações internas na Austrália e a ocupar definitivamente o norte do continente, sobretudo no Território do Norte. Neste período, apesar do fato de que havia cerca de mil aborígines sem contato com europeus, do ponto de vista acadêmico, tanto dentro da Austrália como no exterior, prevalecia a idéia de que os aborígines não apresentavam um objeto de estudo privilegiado para a antropologia, por serem pensados como "os nossos outros" e, assim, menos exóticos que "os outros" além dos mares. Uma das conseqüências disso, segundo Peterson (1990), foi que realizar pesquisas com aborígines era pensado como "fazer antropologia em casa", enquanto, antes desse período, realizar pesquisas junto a populações aborígines no norte da Austrália era considerado como se fosse pesquisar num país estrangeiro. A pesquisa antropológica realizada na Austrália passou a ter menos valor profissionalmente do que aquela realizada fora do país.

Isto contrasta muito com a etnologia indígena no Brasil nessa mesma época, que focalizava as populações indígenas no território brasileiro como objeto privilegiado de estudo. Peterson já afirmara, entretanto, que mesmo antes da ocupação mais intensiva do norte e centro do continente, que aconteceu a partir da 2ª Guerra Mundial, as populações aborígines da Austrália não foram consideradas adequadas para a abordagem funcionalista.

Numa nação européia de colonização pensada como uma extensão antípoda da Grã- Bretanha, não havia a possibilidade de admitir a administração indireta das populações indígenas e, conseqüentemente, a teoria funcionalista não era pensada como adequada para estudá-las. Nessa época as populações indígenas foram excluídas da história e do futuro da nação australiana, perdendo sua qualidade de "exóticas" [6].

Cabe mencionar que vários antropólogos, como Hogbin, Wedgewood e Stanner se alistaram no setor de pesquisas do Exército australiano durante a 2ª Guerra. Stanner realizou trabalhos para o Exército no norte e centro da Austrália (Hamilton, 1982:98).

Nestes anos, as populações nativas da Oceânia e do norte da Austrália sofreram o impacto violento da Guerra [7]. Após a Guerra, os objetos de estudo não-ocidentais, interessantes e autênticos e assim privilegiados da antropologia, só se encontravam fora da Austrália. As pressuposições embutidas na abordagem teórica privilegiavam o exótico, que era definido como aquelas sociedades mais suscetíveis à abordagem funcionalista, os "outros" colonizados, e não os "nossos" colonizados.

Foi nesse período que o treinamento de funcionários administrativos foi transferido do Departamento de Antropologia da Universidade de Sydney para a Australian School of Pacific Administration, terminando a relação direta com a administração colonial. O Departamento de Antropologia da Universidade de Sydney tornou-se exclusivamente acadêmico, embora Elkin tivesse um intenso interesse na formulação da política indigenista dentro do país e desempenhou um papel decisivo nessa área.

A consideração do uso da antropologia para fins políticos levou ao estabelecimento, em 1951, do segundo Departamento de Antropologia na Austrália - a Research School of Pacific Studies na recém-construída Australian National University (ANU), em Canberra, chefiado pelo britânico, S.F. Nadel, seguido por J.A. Barnes, da London School of Economics. O estabelecimento deste Departamento resultou de uma consciência, que surgiu na época da 2ª Guerra Mundial, da necessidade de uma compreensão das ilhas do oceano Pacífico e dos países ao norte do continente australiano. O Departamento treinou muitos alunos de pós-graduação, mas produziu pouca pesquisa sobre as populações aborígines da Austrália. Até 1977, somente 7 entre 56 projetos de pesquisa da Research School of Pacific Studies focalizavam aborígines (Peterson, 1990). Verbas foram alocadas para pesquisas fora da Austrália: de 5 alunos que realizaram suas primeiras pesquisas na Austrália, todos fizeram pesquisas para o doutorado ou no Estreito de Torres ou na Nova Guiné. Durante a década de 1950, somente 4 pesquisas de doutorado com aborígines australianos foram financiadas. Nas décadas seguintes o campo de pesquisa concentrou-se na Nova Guiné e no sudeste da Ásia, sobretudo naqueles países com os quais o governo australiano tinha interesses diplomáticos.

O terceiro centro estabelecido para a antropologia, na Austrália Ocidental, foi resultado de um levantamento das ciências sociais na Austrália realizado pelos antropólogos americanos Clyde e Florence Kluckholn em 1952. R. Berndt, que trabalhara sob a orientação de Elkin, foi nomeado professor titular de antropologia no Departamento de Psicologia em 1956, e um Departamento de Antropologia separado foi criado em 1961.

Conforme a visão de Peterson (1990), foi neste contexto de poucas pesquisas com populações aborígines que se percebeu a necessidade de estabelecer um Instituto de Estudos Aborígines. O início da década de 1960 foi marcado pelo afrouxamento dos laços com a Grã-Bretanha, o que conduziu ao surgimento do nacionalismo cultural e econômico da década de 70. W.C.Wentworth, Ministro de Assuntos Aborígines, percebeu que as populações aborígines e suas culturas constituíam um ícone de uma identidade australiana independente. O "Australian Institute of Aboriginal Studies" (AIAS) [8], estabelecido em Canberra em 1964, foi um instituto de pesquisa convencional durante os primeiros anos da sua existência. Porém, em 1974 um grupo de aborígines questionou os benefícios que a antropologia oferecia para as populações aborígines, e a partir desta data exigiram que o AIAS discutisse sua relação com as populações indígenas, e devolvesse às comunidades o resultado das pesquisas, além de exigir oportunidades para o treinamento de aborígines como pesquisadores.

Enquanto a geração anterior de antropólogos na Austrália relegou a cultura dos aborígines ao âmbito da pré-história, muitos antropólogos na década de 1960 procuravam suspender a cultura dos aborígines no vácuo sem história do estrutural-funcionalismo (Beckett, 1988a:195). Até a década de 60, os antropólogos que trabalhavam na Austrália travavam um diálogo quase exclusivamente com a antropologia britânica.


 
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