A sociologia de Gramsci



É preciso cuidado com as palavras quando se discute um tema como "a Sociologia de Gramsci". Não se trata, como poderá parecer a alguns, de dizer que Gramsci tenha constituído, a partir dos Cadernos do Cárcere, uma teoria sociológica. Cuida-se, tão simplesmente, de procurar ver aquilo que, neles, indica que o pensamento do Autor estava em consonância com uma certa maneira de analisar a realidade social que se chamava, à época e hoje, "Sociologia". Ousaria acrescentar --levando em conta a opinião daqueles que não vêem Gramsci preocupado com a Sociologia, mas apenas com a Ciência Política -- que não poderemos compreender seu pensamento se não atentarmos para o cuidado que tem em estabelecer os fundamentos sociais das situações que analisa e até para a construção de boa parte de seu pensamento. Diria, mesmo, que ele estabelece alguns cânones para a análise que só podem ser tidos por sociológicos, pouco importando a que escola possamos pretender filiá-lo.

Não se conclua, a partir do que foi dito atrás, que Gramsci não tenha cuidado maior com a Ciência Política ou coisa que a isso se assemelhe. O importante é notar que já no Caderno 11, § 25 deixa claro que a Sociologia pode ser vista como ciência da história e da política. É, essa, uma passagem curiosa, porque nela a "sociologia" é transmutada em "filologia", que em dicionário da língua italiana editado em 1924 é dada, também, como "ciência de estudos especiais". No mesmo texto vê-se que o "estudo (da filosofia da práxis) pode dar lugar ao nascimento da ‘filologia’ como método de erudição na verificação dos fatos particulares e ao nascimento da filosofia entendida como metodologia geral da história. (...) Negar que se possa construir uma sociologia, entendida como ciência da sociedade, isto é, como ciência da história e da política, que seja algo diverso da filosofia da práxis, não significa que não se possa construir uma compilação empírica de observações práticas que ampliem a esfera da filologia, tal como esta é entendida tradicionalmente. Se a filologia é a expressão metodológica da importância que tem a verificação e a determinação dos fatos particulares em sua inconfundível ‘individualidade’ é impossível excluir a utilidade prática da identificação de determinadas ‘leis de tendência’ mais gerais, que correspondem, na política, às leis estatísticas ou dos grandes números, que contribuíram para o progresso de algumas ciências naturais" (Gramsci, 1999, I, 146).

Ao lado dessa observação, segundo a qual muito do que se lê nos Cadernos pode e deve ser visto como um correto emprego de conceitos da Sociologia, convém acrescentar outra: os Cadernos devem ser vistos como obra completa, por mais que se deva respeitar a opinião dos que a consideram fragmentada e escrita com todos os cuidados que Gramsci deveria tomar tendo em vista a censura. Digo que se pode e se deve tê-la como completa porque só dessa perspectiva é que compreenderemos porque boa parte dos textos foi revista no decorrer do tempo que passou na prisão, enquanto há uma pequena porção deles que se encontram em redação única. A apresentação gráfica dos Cadernos, respeitando a cronologia de sua escrita, permite a conclusão de que estamos diante de uma obra in fieri -- e a edição de Gerratana leva a essa impressão. Se, porém, tivermos o cuidado de eliminar parágrafos menores, de circunstância, que encontramos em todos os Cadernos e unirmos os que de fato concernem aos títulos com que as anotações são apresentadas, teremos textos que expõem, acabadas, as mesmas proposições. Na verdade. há de considerar que há, nos Cadernos, textos de circunstância, teórica e metodologicamente de importância menor, e que apenas indicam a preocupação de Gramsci em estar atualizado com o que se escrevia e se pensava no exterior dos muros em que estava confinado.

Sem dúvida, as considerações que tece sobre o que seja a hegemonia e sobre como ela se exerce -- da mesma maneira que a respeito do que sejam sociedade civil e sociedade política, para não dizer o Estado e o papel dos intelectuais -- permitem que se examinem os Cadernos como se obra inconclusa fossem. Não sou o primeiro, entretanto, a insistir em que estamos diante de uma obra completa. Ainda que reconhecendo o "caráter fragmentário de seus escritos", Gregorio Bermann, no prólogo a uma edição argentina das Cartas do cárcere, não pode deixar de afirmar que "circula através de todos esses fragmentos um pensamento profundamente unitário, coerente, maduro, organizado. Nem sequer a necessidade de passar pelas redes de uma censura mais que zelosa o impede de expressar tudo o que pensa" (Gramsci, 1950, 10).

É preciso reconhecer, sem dúvida, que Gramsci nos dá sobejas razões para ver seus textos como "fragmentados", tais as variantes que encontramos, às vezes no mesmo Caderno, sobre o mesmo conceito. Mas pergunto: não poderíamos tomar essas variantes -- que têm permitido as mais diferentes e às vezes contraditórias interpretações do que se encontra nos Cadernos -- como se fossem uma obra musical, "variações sobre um tema de ...", fossem "hegemonia", "sociedade civil", "sociedade política" ou "Estado", Marx ou Lênin, pouco importa, mas variações, e como tal parte de uma e mesmo obra que se ouve (ou lê, no caso) como completa? O importante, quando tomamos as "variações sobre um tema de..." é saber qual o tema e de autoria de quem. Creio que poderemos, sem receio de errar ou abusar da licença literária, dizer que o tema em torno do qual tece suas variações, é o da hegemonia, de Lênin.

Dessa perspectiva -- e admitindo que esse é o tema que o interessa, tomado de Lênin como expressamente diz -- teremos que a hegemonia é um fato político, sem dúvida, mas que não pode ser compreendido no que seja, nem na forma em que se exerce, se não considerarmos a sociedade em que se apresenta e a articulação de seus segmentos. Em outras palavras, a hegemonia, como fato político, só pode ser exercida se houver condições sociais que permitam a um grupo social impor sua concepção do mundo aos demais. Essa observação nos leva a outra: ao estabelecer que a luta pela hegemonia se dá entre grupos sociais com concepções do mundo diferentes, Gramsci automaticamente nos remete para o campo da cultura, que não pode ser compreendido e analisado se descurarmos da interação sempre presente entre Sociedade e Cultura. Com isso quero dizer que a luta pela hegemonia se dá entre visões de Cultura e não de Civilização -- Kultur e não Zivilisation. É no campo da Cultura e não da Civilização material que devemos fixar nossa atenção, nunca perdendo de vista a lição de Mannheim sobre como se pode diferençar uma época de outra (portanto, uma ideologia geral do período) pela comparação dos diferentes estilos artísticos que se sucedem: o barroco, o clássico, o romantismo, o impressionismo, o cubismo e o modernismo etc. Cultura, em suma.

Se considerarmos que Gramsci pode ser lido -- e a meu ver é uma leitura profícua -- como sociólogo será mais fácil compreender o que pretende transmitir. Em primeiro lugar, voltemos a Marx, que o inspirou e sobre cujos conceitos trabalhou, mascarando "marxismo" sob o nome de "filosofia da práxis".

O voltar a Marx não é um recurso de retórica: os pensadores de meados dos anos 1840 em diante tinham igual postura intelectual diante dos fatos políticos: só podem ser explicados se atentarmos para suas raízes sociais. Não é preciso dar um passo atrás até os idéologues do período napoleônico, mas não seria demais ressaltar que as revoluções e as convulsões sociais que esses pensadores testemunharam, quando não delas participaram, condicionou essa maneira de ver, que depois se concretiza em Comte e avança com Durkheim. A filosofia da práxis, quando formulada no século XIX, é a visão sociológica dos fatos políticos "à esquerda". Ou as lições que estão nos Grundisse, afora a insistência em referir-se sempre às condições sociais de existência, a idéia da infra-estrutura determinando as superestruturas não são a melhor demonstração da tese que sustento? Nos Grundisse, Marx já deixava claro que o estudo de uma sociedade deveria começar pelo de sua morfologia. E no Manifesto Comunista, encontramos uma perfeita demonstração de como é a morfologia social que leva à transformação do confronto entre o proletário individual contra o patrão individual numa luta de classes. Nacional por definição.

Não é apenas em Gramsci que encontramos, nos autores socialistas do século XX, a preocupação de ligar os fatos políticos à morfologia social. Talvez o melhor exemplo seja o de Trotsky em 1905, em que se registra que "o desenvolvimento econômico extremamente lento por causa das condições desfavoráveis criadas pela natureza do país e pela dispersão da população, criava obstáculos para o processo de cristalização social e colocava toda a nossa história em grande atraso" (Trotsky, 1948, 23).

Fixemo-nos, porém, em Gramsci. No Caderno 6, 102, ele estabelece como se fossem as regras para estudar os camponeses e a vida no campo. É de notar a riqueza de pormenores com que cerca a aproximação do tema: desde as condições materiais de vida, como habitação, alimentação, alcoolismo e práticas higiênicas, passando por taxas de natalidade, mortalidade infantil e nascimentos ilegítimos até a situação das mulheres ("mudança das mulheres para os serviços domésticos"), sem deixar de relacionar as alterações na propriedade e, curioso, mas indicativo de uma mentalidade desejosa de apanhar todas as variações da vida comum, os problemas de religião e os crimes de caráter econômico e aqueles de sangue (Gramsci, 2002, 256).


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