Sustentabilidade de empreendimentos solidários:
¿que papel espera-se da tecnologia?

 

 

O agravamento do desemprego em massa e da exclusão social é indicado, por vários autores (Singer e Souza, 2000; Singer, 2002; Valle, 2002; Heckert, 2003; Gallo e Eid, 2001; Rufino e Amato Neto, 2001), como as principais causas da criação de empreendimentos solidários no Brasil. Apontados, por vezes, como uma alternativa e reação às formas capitalistas, "uma vez que estas nunca foram tão excludentes e nunca deixaram os excluídos em condição de tão grande vulnerabilidade (as populações descartáveis)", sendo parte de uma "globalização alternativa" (Santos, 2002, p. 15) ou como "momentos de utopia experimental, isto é, momentos de afirmação, no presente de que o futuro é possível", estando longe de se constituírem como "uma alternativa global ao projeto capitalista liberal" (Vainer, 2000), as cooperativas de trabalho e produção, empresas autogestionárias formadas pela apropriação da massa falida de empresas por seus antigos funcionários, associações de diversos tipos, como de catadores de lixo e de artesãos, entre outros, têm constituído a fonte de obtenção de renda de milhares de brasileiros.

Originados no século XIX, na Inglaterra, como reação à diminuição da renda dos artesãos provocada pela crescente automação da produção e organização das fábricas, os empreendimentos solidários cooperativos ressurgem no Brasil como reação dos movimentos sociais à crise do desemprego em massa que se inicia na década de 1980 e se agrava com o fenômeno recente da globalização.

Tratada por alguns como uma nova Revolução Industrial, a globalização pode ser considerada menos um simples fluxo de dinheiro e mercadorias, e mais "uma interdependência crescente entre as pessoas no mundo por meio da diminuição dos espaços, encurtamento do tempo e desaparecimento das fronteiras" (UNDP, 1999). Assim, a globalização oferece grandes oportunidades de enriquecimento e cria uma comunidade global baseada no compartilhamento de valores. Mas a lógica do mercado, diz o documento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), dominou o processo, e os benefícios e oportunidades não puderam ser divididos eqüitativamente entre todos. Ironicamente, a globalização trouxe, na verdade, uma crescente consciência pública de que o consumo da população dos países industrializados continua se expandindo enquanto a pobreza das regiões em desenvolvimento no mundo piora. Isso aumenta a demanda pela definição e implementação de regras aceitáveis de comércio, condições de trabalho e preservação ambiental, que sejam válidas em todos os países do mundo (Unep, 2003).

Traz, também, novos patamares para a competição entre as empresas, já que os mercados são compartilhados entre todas, independentemente da localização regional de cada uma, forçando- as à busca de novos arranjos produtivos que as tornem mais eficientes. Isso, muitas vezes, significa a substituição de mão-de-obra por máquinas, reduzindo o número de postos de trabalho e resultando na criação do "desemprego estrutural" (Santos, 2001), que atinge principalmente os países em desenvolvimento, nos quais tradicionalmente se instalam as indústrias intensivas em mão-de-obra.

No Brasil, nas duas últimas décadas, a resposta dada às imensas dificuldades de manter o nível de emprego decorreu primordialmente da sociedade civil, em forma de experiências autogestionárias, em geral denominadas empreendimentos da economia popular, social (Guélin, 1998, ap. Lechat, 2002) ou solidários (Singer e Souza, 2000; Gaiger, 1996, ap. Lechat, 2002). São empreendimentos que partem da associação de pessoas que desejam obter algum meio de vida ou de renda por intermédio do trabalho. São vizinhos, conhecidos, moradores de uma mesma região ou freqüentadores de uma paróquia, que se juntam a partir de algo que acreditam ter em comum ou de alguma atividade que já realizem em comum.

Tais experiências se apresentam como alternativa de geração de trabalho e renda para milhares de pessoas que, devido à reestruturação produtiva impulsionada sobretudo pela globalização e pela "revolução digital" (OCDE, 1996), vêem-se fora do mercado de trabalho. Isso porque, se tais pessoas se apresentam como desqualificadas e incapazes de atender às exigências cada vez maiores de capacitação, habilidades e competências apresentadas como pré-requisitos para a obtenção de um posto de trabalho no mercado formal, muitas vezes têm competências únicas, como a capacidade de elaborar produtos artesanais, ou podem facilmente desenvolver outras competências, relativamente simples, que lhes permitam prover renda e dessa forma sobreviver. Surgem, assim, associações e cooperativas de artesanato, reciclagem de lixo, prestação de serviços de limpeza, jardinagem, confecções, alimentos e outras, compostas por indivíduos, em geral, há muito tempo desempregados, pouco qualificados, analfabetos ou precariamente alfabetizados.

Estudo realizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em 2003, feito com 41 setores da economia brasileira, concluiu que os setores nos quais predominam pequenas empresas – como os serviços prestados à família, tais como saúde, educação e lazer – são mais capazes de elevar o número de postos de trabalho (Folha de S.Paulo, 24 ago. 2003), apresentando-se como área ideal para o desenvolvimento de empreendimentos comunitários. Percebe-se que o incentivo à formação desse tipo de empreendimento no Brasil aumenta a cada dia, apresentando-se hoje não só como política oficial de governo, mas como forma de atuação de outros importantes setores.

Exemplos disso são a agressiva ação empreendedora desenvolvida pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em todo o país e a criação, no âmbito do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), da Secretaria de Economia Solidária (Senaes), que tem como missão "estimular iniciativas para a criação de trabalho e renda, como as cooperativas de serviço, a agroindústria familiar e cooperativas de mão-de-obra, como alternativa de combate ao desemprego, à exclusão social e à fome, permitindo que a sociedade batalhe suas próprias formas de superar a exclusão social", conforme palavras do ministro ao empossar o novo secretário em julho de 2003.

Esses empreendimentos solidários surgem também por força da ação de organizações não-governamentais (ONGs) de diversos tipos, como alternativa para novas configurações de desenvolvimento regional, baseadas na "produção sustentável" de bens e serviços. Contradizendo abertamente as práticas de períodos anteriores, um novo modelo de desenvolvimento econômico, não-predatório, postula o uso racional dos recursos naturais como forma de melhorar a qualidade de vida dos habitantes de áreas rurais, já que, paradoxalmente, a globalização também permite a criação de novos mercados para produtos essencialmente regionais, como os artesanais ou derivados de recursos da Floresta Amazônica, por exemplo (MMA, 2002).

Desde 1972, quando as Nações Unidas estabeleceram formalmente, em conferência realizada em Estocolmo, um programa ambiental, a discussão sobre a preservação do meio ambiente tornou-se, paulatinamente, tema importante das agendas da maioria dos governos, na maioria dos países. Muitas leis e estruturas foram criadas visando à preservação da natureza, que passou a ser considerada parte dos direitos humanos. Além disso, o tema trouxe à tona a questão da relação entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, considerandose os fatores sociais e econômicos como os responsáveis pela deterioração do ambiente (Unep, 2003). Documento produzido em conferência realizada em conjunto pelo Programa de Meio Ambiente e pela Comissão de Desenvolvimento e Comércio das Nações Unidas em 1974, no México, afirmava que "os impactos destrutivos de uma maioria pobre lutando para sobreviver e uma minoria influente consumindo a maioria dos recursos do mundo estão solapando os muitos meios pelos quais as pessoas podem viver e prosperar (Unep e Unctad, 1974).

A partir de então muito tem se debatido acerca do desenvolvimento econômico e da preservação do meio ambiente, em busca de novas estratégias de desenvolvimento que permitissem conciliar ambos. Surge, assim, na década de 1980, o conceito de desenvolvimento sustentável, como um "tipo de desenvolvimento que permite melhorias reais na qualidade de vida e ao mesmo tempo preserva a vitalidade e a diversidade da Terra" (IUCN, Unep e WWF, 1980). Ou, como definido pela Comissão Mundial de Desenvolvimento e Ambiente da ONU, trata-se do "desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de responder a suas próprias necessidades" (WCED, 1987).

Subjacente a esse conceito está a negação da noção de que os recursos são renováveis e inesgotáveis independentemente do tipo de uso que deles se faz, como é comum à dinâmica do sistema capitalista, de apropriação de recursos como fonte e reprodução de riqueza. Posto o problema da escassez e do uso de bens naturais como mercadoria, a reversão dessa situação passa também pela definição de novos conceitos para a produção de bens e serviços considerando-se a sustentabilidade socioambiental.

Isso não apenas exige técnicas de manejo ambiental disponíveis em maior quantidade e melhor qualidade, como requer que as populações se organizem como parceiras do processo de desenvolvimento e como gestoras de empreendimentos produtivos de diversos tipos, o que resulta, na maioria das vezes, na constituição de empreendimentos solidários.

No mesmo campo de ações econômicas alternativas podemos identificar ainda outro tipo de economia, praticado por populações culturalmente diversificadas, com modos de vida adaptados à dinâmica da Floresta Amazônica, ou a outras fontes de recursos naturais, baseada na extração de frutos, óleos, seivas, fibras vegetais, pedras etc., além do cultivo de uma diversidade de espécies regionais de valor comercial. São seringueiros, castanheiros, comunidades indígenas e de pequenos produtores cujos negócios, além de garantir o sustento da família, mantêm a qualidade dos recursos naturais e evitam o desmatamento, inserindo-se no âmbito da produção sustentável.

Tais empreendimentos também apresentam importante dimensão econômica, pois, paradoxalmente, a globalização permite a criação de novos mercados para produtos essencialmente regionais, como os artesanais ou derivados de recursos da Floresta Amazônica, por exemplo. Porém, a ampliação dos negócios gerados nesse tipo de economia "social" esbarra em certas dificuldades, "cuja origem está na falta de organização das comunidades, na gestão dos negócios e em dificuldades técnicas encontradas no processo produtivo" (MMA, 2002, p. 9).

Informal, popular, social ou solidária, percebe-se que esses tipos de economia são categorias ainda mal definidas, nas quais podemos identificar empreendimentos como os dos micronegócios voltados à prestação de serviços de diversos tipos, ou mesmo de produção artesanal ou industrial propriamente dita em que, em geral, percebem-se associações entre trabalhadores para a produção ou prestação de serviços, realizadas com pouquíssimo ou até nenhum capital e com a qualidade de haver solidariedade entre seus membros. Outro ponto em comum entre esses empreendimentos é que, quando se conhece sua realidade, percebe-se uma série de problemas que podem levar ao fracasso da experiência ou à limitação de suas potencialidades: faltam à economia solidária os procedimentos efetivos da autogestão no cotidiano, formas solidárias e eficientes de produzir riqueza.

Isso leva a que a maioria deles sobreviva em situações precárias, enfrentando dificuldades de gestão, comercialização, acesso a recursos financeiros e a conhecimentos tecnológicos (Eid, Dakuzaku e Gallo, 2000; Gutierrez, 1988; Lima e Godinho, 2000; MMA, 2002).

 

Empreendimentos solidários: características e dificuldades

A Secretaria de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (Senaes/MTE) define os empreendimentos solidários como aqueles que não têm patrão nem empregado, em que a administração é feita de forma coletiva pelos próprios trabalhadores e que funcionam no marco da "economia solidária".

Esse novo conceito no campo da economia é definido por Lechat (2002) como um conjunto de atividades econômicas cuja lógica é distinta tanto da lógica do mercado capitalista quanto da do Estado. Ao contrário da economia capitalista, centrada no capital a ser acumulado e que funciona a partir de relações competitivas cujo objetivo é o alcance de interesses individuais, a economia solidária organiza-se a partir de fatores humanos, favorecendo as relações em que o laço social é valorizado por meio da reciprocidade, e adota formas comunitárias de propriedade. Distingue-se também da economia estatal, que supõe uma autoridade central e formas de propriedade institucional.

Percebe-se nessas definições que é esperado que um empreendimento da economia solidária seja totalmente distinto de uma empresa capitalista: a primeira conta com a autonomia das pessoas e com a conseqüente capacidade de superar a divisão social do trabalho, eliminando-se a oposição entre o trabalho intelectual e o manual, enquanto a segunda baseia-se, na maioria das vezes, na hierarquização de poderes, no planejamento fora do alcance dos trabalhadores e na falta de cultura participativa (Nakano, 2000). No empreendimento solidário, a organização da gestão deve ser feita de maneira participativa e descentralizada, a fim de que as informações relevantes sejam disponibilizadas, bem como a contabilidade e sistemas de controle, para que todos possam participar das decisões (Singer, 2000).

Além disso, essas experiências instauram outra lógica de funcionamento, uma vez que, dado o caráter cooperativo, os ganhos em eficiência não podem levar ao desemprego, já que o custo da mão-de-obra funciona efetivamente como custo fixo, e não como custo variável, como ocorre em empresas capitalistas.

Dessa forma, os aumentos de eficiência só podem resultar em aumento de produção e demanda ou em diminuição da jornada de trabalho e, portanto, em melhores condições profissionais para aqueles que produzem (Lima e Godinho, 2000). Isso caracteriza um círculo virtuoso que se contrapõe ao círculo vicioso do desemprego estrutural e faz com que essas experiências se apresentem como uma alternativa real à crise do emprego e aos problemas da exclusão social e do desenvolvimento local.

É verdade que têm surgido políticas e ações de estímulo à criação de empreendimentos solidários: microcrédito, formação em empreendimentos cooperativos, incubadoras de economia popular e solidária, apoio jurídico em direito cooperativo etc.

Essas ações criam condições institucionais e motivacionais para tais empreendimentos, mas apresentam um limite importante: não ajudam os associados a desenvolver instrumentos de gestão cotidiana, as condições objetivas da autogestão – técnicas, administrativas e econômicas.

Essa lacuna compromete a sustentabilidade dessas iniciativas, levando a que a maioria deles sobreviva em situações precárias, enfrentando dificuldades de gestão, comercialização, acesso a recursos financeiros e a conhecimentos tecnológicos.

Com o tempo, perde-se o dinamismo empreendedor que motivou a criação do empreendimento e a capacidade de crescimento, com efeitos na redução dos associados e do valor das retiradas mensais (Rutkowski e Dias, 2002).

Tais problemas de gestão decorrem do próprio processo de constituição desses empreendimentos. Várias cooperativas são formadas durante o processo de liquidação de empresas capitalistas.

Valendo-se de suas indenizações, os empregados recebem os equipamentos e instalações da empresa em processo falimentar e resolvem tocar o negócio adiante, uma vez que eles detêm o know-how necessário para continuar a produção de uma dada linha de produtos. Nesse processo, vários trabalhadores optam por não se associar, em especial o corpo gerencial e o técnico, cujas qualificações lhes asseguram mais facilmente colocação no mercado de trabalho. Quando os empreendimentos autogestionários se constituem em torno de trabalhadores autônomos, que detêm habilidades técnicas específicas (artesãos, costureiras, catadores de lixo, agricultores, técnicos de manutenção, professores etc.), falta-lhes a experiência em organização e administração de um negócio coletivo, uma vez que a formação escolar dos trabalhadores é, em geral, muito situada e restrita às necessidades do capital (Rutkowski e Dias, 2002).

Os empreendimentos solidários estão, em geral, capacitados a manter a produção de sua linha tradicional de produtos ou serviços, assegurada pela experiência dos trabalhadores, mas encontram-se limitados tecnicamente para implementar inovações mais radicais, como o lançamento de novos produtos/serviços, explorar novas oportunidades de mercado e aumentar a escala de produção, reduzir custos e melhorar a qualidade. Atuando no mercado capitalista, tais empreendimentos, assim como as demais empresas, necessitam lidar com estratégias competitivas a fim de aumentar a capacidade de relacionamento e o poder de barganha com clientes, concorrentes e fornecedores para sobreviver.

Por fim, há que se destacar que, paradoxalmente, os empreendimentos solidários são pouco solidários entre si. Apesar de ser uma idéia antiga, ainda não se desenvolveu uma rede de relações entre empresas de autogestão, cooperativas e associações sem fins lucrativos, buscando dinamizar a produção pela união de interesses e de complementaridades técnicas e de conhecimentos de gestão, compras de matérias-primas e insumos, vendas de produtos e aproveitamento de resíduos ou o compartilhamento de redes de comercialização. Onde a vocação de solidariedade oferece as condições mais favoráveis para desenvolver relações econômicas solidárias, não se observa a circulação de riqueza baseada em princípios de parceria e de cooperação, tendência que se impõe no interior da economia de mercado, com as empresas capitalistas organizadas em forma de rede.

 

Engenharia e desenvolvimento social

O que se percebe, então, é a necessidade de desenvolver tecnologias e um conjunto de ferramentas de gestão e de produção que permita romper os limites técnicos dos empreendimentos solidários para, por exemplo, implementar inovações mais radicais – como o lançamento de novos produtos –, explorar novas oportunidades de mercado e aumentar a escala de produção, reduzir custos e melhorar a qualidade, ultrapassando a capacidade de somente criar inovações, que, às vezes, são desenvolvidas e são importantes para garantir uma posição no mercado, mas insuficientes para manter uma vantagem competitiva por longo tempo.

Isso implica ter acesso a conhecimentos e a tecnologias, na maioria das vezes inacessíveis. Se por um lado isso se deve à falta de competências adequadas desses "empreendedores", que precisam ser desenvolvidas, por outro há que se discutir o uso do instrumental disponível na engenharia, identificando-se limites e necessidades de transformação metodológicas e de conteúdos ensinados e pesquisados para o apoio à viabilização desses empreendimentos, já que essa área de conhecimento, até então, vem dialogando prioritariamente com organizações de produção tradicionais, estruturadas em bases completamente diversas.

O objetivo hegemônico da engenharia moderna, no sistema capitalista, é desenvolver pesquisas e projetos, por intermédio de métodos científicos, visando à produção de bens e serviços que garantam a elevação da taxa de lucro dos empreendimentos econômicos, sob o discurso da promoção da paz ou da guerra, da preservação do meio ambiente ou da responsabilidade social empresarial.

Em cada escolha técnica está presente um olhar específico do(a) engenheiro(a) sobre a interação de seu "modelo", seja com o mercado, com o Estado, com a sociedade, com o capital, com o trabalho, ou na relação entre eles. Seria lícito inferir que em cada projeto elaborado por um(a) engenheiro(a), estaria implícita – ou explícita – uma ideologia, expressa num modelo técnico, numa concepção de tecnologia ou numa política de gestão de pessoas e de relações de trabalho, baseadas em relações de poder preestabelecidas e comumente aceitas, o que leva a que se conteste a possibilidade de uma suposta neutralidade técnica de estudos sobre os processos de produção e do trabalho.

São emblemáticos, nesse sentido, os clássicos "Princípios da administração científica" do engenheiro Taylor e os "Princípios da prosperidade" de Ford, nos quais dois dos maiores líderes da engenharia industrial mostram, igualmente, suas proposições de modelos técnicos, universalmente conhecidos, e seus pressupostos políticos e ideológicos para o desenvolvimento econômico e social dos Estados Unidos, assim como suas concepções sobre as relações entre capital e trabalho que consideravam mais adequadas aos modelos que buscavam implantar. Ford chegou a propor que fossem fundidas as organizações de representação empresarial com as dos trabalhadores, pois afinal, dizia ele, todos trabalham e não haveria motivo para tal divisão. Haveria, assim, uma relação biunívoca entre a engenharia e o desenvolvimento nacional.

Porém, é imanente ao sistema de produção, comercialização e consumo capitalista que apenas uma parcela minoritária da população mundial possa usufruir os bens e serviços por ele produzidos. Tente-se imaginar o que significaria, por exemplo, se as centenas de milhões de cidadãos chineses maiores de 18 anos, habilitados legalmente para dirigir, pudessem adquirir e usar um automóvel. Tal exemplo, simples, é suficiente para demonstrar os limites do modelo hegemônico de produção e consumo desse sistema. Ele é estruturalmente promotor de exclusão social e degradador do meio ambiente, posto não ter a reprodução da vida como central em sua perspectiva de acumulação.

Para que uma parcela minoritária de brasileiros possa usufruir o Brasil moderno, necessita-se manter um outro "Brasil pré-moderno". Trata-se de um país dual, apartado socialmente, mas não dualista. Aqui a história lavrou na pedra a máxima da "Belíndia", em que a "Bélgica", a parte rica, necessita da "Índia" para continuar existindo. No Brasil, os problemas sociais talvez sejam o maior entrave a seu pleno desenvolvimento.

Dono de grandes potencialidades naturais, portador de uma economia que está entre as maiores do mundo, é o quarto país em desigualdade social. Sofre com a fome, a miséria, consideráveis taxas de analfabetismo e elevados índices de desemprego, ao mesmo tempo que abarca pólos tecnológicos, grandes multinacionais e boas universidades.

Caminhar na reversão desse quadro perverso significaria optar pela heterodoxia metodológica. A engenharia deveria aprumar sua visão do país a partir do olhar da "senzala" afastando-se da costumeira paisagem vista da "casa-grande". Significaria conceber – e praticar –, como objetivo central da técnica, a ampliação da qualidade da vida dos cidadãos, o desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões. Significaria balizar a articulação das ciências da natureza e as da matemática, das técnicas e das ferramentas, pelo enfoque da virtuosidade da articulação dos arranjos produtivos locais e das cadeias produtivas, com a participação democrática dos atores sociais, visando ao desenvolvimento local e ao regional sustentáveis.

Nessa perspectiva a engenharia deveria operar tanto no Brasil moderno e capitalista – das empresas dinâmicas privadas e estatais – como no Brasil "pré-moderno, não-capitalista", na economia informal, no âmbito da economia social, solidária e popular.

Deve-se caminhar para compreender a inovação tecnológica como um conceito ligado à renovação dos valores da vida, como aprendizagem dos cidadãos e dos atores sociais que vise a um desenvolvimento humano em equilíbrio com a natureza. Para tanto a engenharia deveria continuar operando com metodologias que propiciassem tanto fortalecer o diálogo interdisciplinar como, por métodos participativos, elaborar projetos que envolvessem os atores sociais em sua definição, com vistas à solução de problemas que, apesar de aparentemente técnicos, impedem o desenvolvimento social.

Ou seja, há que se buscar adequar a tecnologia convencional e conceber alternativas, adotando critérios suplementares aos técnico-econômicos usualmente utilizados. Tais critérios deveriam ser aplicados a processos de produção e de circulação de mercadorias, e à conformação de arranjos produtivos locais e de cadeias produtivas, com a participação democrática dos atores sociais, de modo a permitir uma reconciliação do trabalhador com as forças produtivas, agora por ele apropriadas, fazendo-o deixar de ser um elemento descartável e alienado do produto de seu trabalho. Isso, espera-se, levará a um aumento de produtividade e à criação de soluções diversas para os inúmeros problemas sociais que vivemos.

 

Conclusão

Estado, responsabilidade social corporativa e economia social e solidária nestes tempos de "globalização" são conceitos que perpassam, hoje, a construção de um "outro mundo possível" e conseqüentemente as reflexões sobre o futuro da engenharia no Brasil e nos países semiperiféricos e periféricos.

Em um retrospecto da evolução das teorias econômicas, Penteado (2004) conclui que há, entre os economistas, uma obsessão por um crescimento econômico infinito, dificilmente atingível e que carrega, pelo menos, dois problemas graves: nem sempre tal crescimento produz os resultados sociais esperados e, ao mesmo tempo, traz passivos ambientais muitas vezes ignorados, mas nada desprezíveis. Em função disso, o autor defende a interrupção da lógica de "crescimento em fluxo" e um melhor uso e aproveitamento de estoques, lançando-se mão de políticas microeconômicas ou setoriais para impedir que tal ação gere uma massa ainda maior de desempregados.

Nessa mesma linha de raciocínio, Santos (2002) defende a existência de outra globalização, chamada por ele de alternativa, contra-hegemônica, "constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, por meio de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal, mobilizados pela aspiração a um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam possível e ao qual sentem ter direito".

Um dos modos centrais de resistência a essa globalização são "as diversas formas de produção e de distribuição de bens e serviços alternativas às formas capitalistas". Incluem-se aí alternativas inseridas no campo da economia popular, social e solidária, com formas de organização econômica baseadas na "igualdade, na solidariedade e na proteção do meio ambiente".

Entendemos que os empreendimentos solidários devem ser tratados como formas alternativas de geração de trabalho e renda.

Para tanto deve-se buscar desenvolver um sistema nacional de inovação capaz de oferecer a esses empreendimentos a possibilidade de sobreviver, mesmo quando submetidos à concorrência capitalista. É necessário formular modos próprios de pensamento e ação capazes de permitir sua atuação em escala local, regional, nacional e mesmo global.

A primeira questão é exatamente a capacidade de desenvolver, nesses empreendimentos, a competência para lidar com os diversos conhecimentos necessários à manutenção de sua competitividade. Insere-se aí uma série de conhecimentos codificados (técnicas diversas de gestão e administração, uso de ferramentas de informática etc.), mas que precisam ser oferecidos a esses públicos em formas metodológicas novas, que permitam a absorção desses conhecimentos por pessoas desacostumadas a obter conhecimentos formais em espaços formais de aprendizado.

Há que se considerar, também, que as iniciativas de produção alternativa não têm um caráter unicamente econômico, mas em geral são parte de um projeto integral de organização comunitária, sua sobrevivência dependendo também de dinâmicas não-econômicas – culturais, sociais, afetivas, políticas – que dão sustentação a redes de colaboração e apoio mútuo, compostas por outras iniciativas similares e entidades diversas, inclusive empresas capitalistas, que, por vezes, podem incorporar à sua cadeia produtiva esses empreendimentos.

Como formas alternativas de produção, tais empreendimentos trazem formas alternativas de conhecimento, baseadas, muitas vezes, em visões diferenciadas do mundo, que devem ser respeitadas e até reconhecidas como inovações. Lidar com essas organizações exigirá a capacidade de atuar por meio de metodologias participativas (Brose, 2001; Thiollent, 1997). Além disso, a proposta de regulamentação de patentes comunitárias pode gerar produtos que beneficiem comunidades indígenas, quilombolas, sertanejas, ribeirinhas, faveladas etc., permitindose criar uma base de referência a partir da qual problemas semelhantes podem ser solucionados, por meio das tecnologias sociais.

Por fim, destaque-se a importante contribuição que o sistema de ciência pode oferecer à sustentabilidade desses empreendimentos.

Entendemos que a universidade pode contribuir, e muito, se se dispuser a discutir as dificuldades de sobrevivência dos empreendimentos solidários, aprofundando-se sobre suas causas e buscando soluções de gestão e produção que lhes permitam dar respostas efetivas aos problemas os quais esses empreendimentos propõem resolver. A partir de então, quem sabe, torna-se possível lançar os pilares de uma nova engenharia, também solidária, cujo principal papel seria desenvolver, da mesma forma que o fez para os grandes empreendimentos capitalistas tradicionais, métodos, técnicas, instrumentos etc., capazes de promover a eficiência, e por conseguinte a sobrevivência no mercado, sob novos patamares, desses empreendimentos.

Não se trata aqui de, simplesmente, propor trabalhos voluntários ou militantes em apoio a esses empreendimentos, mas de desenvolver uma nova forma de utilizar o extenso ferramental posto à disposição da engenharia após décadas, para resolver, sob um novo enfoque e com novas metodologias, adequadas à realidade dessas organizações, os novos problemas enfrentados por elas. Trata-se de tentar incorporar à academia tecnológica um pouco desse mundo que, apesar de não movimentar milhões de dólares, pode ser responsável pela sobrevivência de milhões de pessoas. Isso, por si só, parece motivo suficiente para ingressar nessa experiência.

 

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Jacqueline Rutkowski* // Sidney Lianza**
lianza[arroba]ufrj.br

* Professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
* * Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


 
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