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Evolução do padrão de aleitamento materno (página 2)

Clécio H. da Silva; Elsa R. J. Giugliani

 

4. Métodos

Duas coortes de crianças nascidas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, uma em 1987 e outra em 1994, foram comparadas em relação aos padrões de aleitamento materno durante os seis primeiros meses de vida. O hospital estudado é classificado na categoria geral, com 38 leitos de alojamento conjunto. A maternidade realiza aproximadamente 3.400 partos por ano, sendo o índice de partos normais em torno de 72%. A clientela da maternidade provém de todos os níveis socioeconômicos, porém com preponderância de pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Os dois estudos foram prospectivos, tendo sido acompanhadas 202 crianças, nascidas em 1987, e 187, em 1994, durante os 6 primeiros meses de vida ou até que houvesse a interrupção da amamentação. Durante o acompanhamento, foram perdidas 8,6% das duplas mães/bebês no primeiro estudo e 10,1% no segundo. Em ambas as coortes os critérios de inclusão foram: recém-nascidos saudáveis, frutos de gestação única, com peso de nascimento igual ou maior que 2.500 g e que haviam iniciado a amamentação. Como no estudo de 1994 foram incluídas somente as crianças cujas mães moravam com os pais dos bebês (para atender outros objetivos do estudo), excluiu-se da análise dos dados as crianças do estudo de 1987 que não tivessem essa condição, bem como os recém-nascidos e/ou mães que apresentassem qualquer problema de saúde que impedisse ou dificultasse a amamentação em ambas as coortes.

Duas crianças escolhidas por sorteio no estudo de 1987 e todas no estudo de 1994, que preenchiam os critérios de inclusão, eram selecionadas em cada dia útil (junho a dezembro de 1987 e junho a agosto de 1994). As mães de ambas as coortes eram entrevistadas durante a sua permanência na maternidade. O acompanhamento do tipo de alimentação das crianças do estudo de 1987 foi feito por meio de questionários simples enviados mensalmente pelo correio, acompanhados de envelope selado e endereçado para a resposta. Quando o questionário não retornava até sete dias após esgotado o prazo, era realizado um contato telefônico, quando possível, ou uma visita domiciliar. Para a coleta dos dados de acompanhamento da coorte de 1994 foram realizadas visitas domiciliares no final do primeiro, segundo, quarto e sexto meses de vida da criança. Para ambos os estudos foram formadas equipes de trabalhos formadas por pediatras e acadêmicos de medicina ou enfermagem, exaustivamente treinados para a execução dos projetos.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),14 foi considerado aleitamento materno o processo pelo qual o lactente recebe leite materno independentemente de consumir outros alimentos, e aleitamento materno exclusivo o processo em que o bebê recebe leite materno de sua mãe ou nutriz ou leite materno extraído, sem receber nenhum outro líquido ou sólido, exceto vitaminas, complementos minerais ou medicamentos. A interrupção precoce do aleitamento materno foi definida como a interrupção da amamentação antes dos quatro meses de vida do lactente.

Os dados foram analisados utilizando-se o programa Epi Info e o pacote estatístico SPSS for Windows. Para comparar os índices do aleitamento materno entre os dois estudos, foram feitas curvas de sobrevida, tendo sido empregado o teste de "log rank" para calcular o nível de significância. Como algumas características das duas coortes foram diferentes, realizou-se uma análise multivariada, usando o método de regressão logística para controlar possíveis interferências desses fatores na interrupção precoce do aleitamento materno. No modelo de regressão adotado foram incluídas aquelas variáveis que apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre as duas coortes: escolaridade materna (<4 anos; > 4 anos), estado civil (casados; não casados) e número de consultas pré-natais (0-4 consultas; > 5 consultas). A cor da mãe (branca; não branca) foi incluída por apresentar p=0,051 e a renda per capita (metade superior; metade inferior) por ser essa variável freqüentemente descrita como associada à prática do aleitamento materno.

As mães da coorte de 1994 assinaram consentimento informado para a participação no estudo e as mães da coorte de 1987 deram consentimento verbal. Apenas o estudo mais recente foi aprovado pela Comissão Científica e pela Comissão de Pesquisa e Ética do hospital estudado pois na época da realização do estudo de 1987 não havia ainda normatização sobre pesquisa nesse hospital.

5. Resultados

A Tabela 1 sumariza os dados referentes às características das duas amostras. Elas diferem quanto à escolaridade materna, estado civil e número de consultas pré-natais. As demais características não mostraram diferenças estatisticamente significativas.

A análise das curvas de sobrevida do aleitamento materno nos seis primeiros meses de vida nas coortes de crianças nascidas no HCPA nos anos de 1987 e 1994 mostra que as duas coortes se assemelham quanto à freqüência de amamentação (Figura 1). Ao final do quarto mês de vida, 63,9% das crianças estavam sendo amamentadas na coorte de 1987 e 61% na de 1994. Ao completarem seis meses de vida, 48,5% das crianças estavam sendo amamentadas na coorte de 1987 e 48,2% na coorte de 1994. O teste de "log rank" mostra um p=0,78, indicando ausência de diferença estatística entre os dois grupos.

As curvas de sobrevida do aleitamento materno exclusivo mostram uma freqüência de amamentação exclusiva bastante baixa nos dois grupos, com uma tendência a ser maior na coorte de 1994 (Figura 1). No final do primeiro mês de vida, somente 17,8% das crianças no estudo de 1987 e 27,8% no estudo posterior estavam recebendo leite materno como alimento exclusivo; ao final do quarto mês, as taxas de amamentação exclusiva são ainda menores ¾ 5,4% no primeiro estudo e 5,8% no segundo. O valor de p foi de 0,0559, muito próximo da significância.

Ao comparar a freqüência do aleitamento materno entre as duas coortes, segundo a escolaridade materna, verifica-se que não houve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos tanto para as mães com menos de 4 anos de escolaridade quanto para as com 4 anos ou mais de estudo (Figuras 2 e 3). O mesmo não ocorreu com o aleitamento materno exclusivo, onde se observa uma freqüência maior na coorte de 1994 entre as mães com 4 anos ou mais de escolaridade, mas não entre as mães menos instruídas (Figuras 2 e 3).

A interrupção precoce do aleitamento materno foi de 36% no estudo de 1987 e de 39% no estudo de 1994, não havendo diferença estatisticamente significativa entre as duas coortes (p=0,55). A análise multivariada mostrou que esse resultado independe das diferenças encontradas entre as duas coortes, ou seja, o risco para a interrupção precoce do aleitamento materno nos dois grupos é semelhante, independentemente da renda per capita, escolaridade materna, cor da mãe, assistência pré-natal e estado civil (Tabela 2).

6. Discussão

Contrariando a expectativa de que houvesse um incremento nos índices de aleitamento materno na coorte de 1994, as prevalências de tal prática foram semelhantes nas duas coortes estudadas. A ausência de aumento das taxas de amamentação na clientela do hospital estudado pode ser explicada, pelo menos em parte, pela falta, nesse período, de políticas mais incisivas em relação ao estímulo ao aleitamento materno no Município de Porto Alegre e, em especial, no hospital. Apesar de o alojamento conjunto nesse hospital existir há 16 anos, na época da realização dos dois estudos o leite não humano era bastante utilizado na maternidade. Durante a realização do estudo de 1987, foi verificado que 46,5% das crianças da coorte receberam pelo menos uma mamadeira com fórmula infantil durante a sua permanência na maternidade, apesar de serem, em sua totalidade, crianças normais, cujas mães haviam iniciado a amamentação e que estavam no alojamento conjunto.6 Sabe-se que o uso de leite não humano na maternidade pode interferir na prevalência e na duração do aleitamento materno.10

Ao se comparar as curvas de sobrevida do aleitamento materno exclusivo nas duas coortes, observa-se que a freqüência do aleitamento materno exclusivo foi maior no estudo de 1994, devido principalmente a um aumento nos dois primeiros meses de vida do bebê. Tal aumento, porém, não foi uniforme, sendo maior entre as mulheres com escolaridade igual ou superior a 4 anos. O aumento da prevalência do aleitamento materno exclusivo entre as mulheres com maior escolaridade, encontrado no presente estudo, está em consonância com os últimos dados coletados no Brasil,11 onde foi registrada prevalência maior de aleitamento materno exclusivo nas mulheres mais instruídas. Nesse citado estudo, a mediana da duração do aleitamento materno exclusivo foi de 0,6 mês nas mulheres com pouca ou nenhuma escolaridade e de 1,2 mês nas mulheres mais instruídas. Essa tendência provavelmente se deve à maior valorização dos benefícios do aleitamento materno nas classes mais favorecidas.

O aumento da freqüência de aleitamento materno exclusivo na coorte de 1994 apenas entre as mulheres de maior escolaridade pode ser explicado pela teoria da OMS,14 segundo a qual a prática do aleitamento materno segue o padrão de desenvolvimento da sociedade, sendo influenciada pelos subgrupos populacionais. Segundo a OMS, dentro de um mesmo país a dinâmica do aleitamento materno comporta três fases básicas: a fase 1, caracterizada por altas taxas de amamentação; a fase 2, ou fase de declínio; e a fase 3, caracterizada por um retorno ao aleitamento materno. Diferentes subgrupos populacionais chegariam às três fases do aleitamento materno em diferentes momentos. O primeiro grupo a mudar seria a elite urbana, os mais educados e ricos. O seguinte seria o grupo urbano pobre, e o último, mais resistente às mudanças, o grupo rural. Segundo essa teoria, as mulheres de renda e escolaridade maiores são as primeiras a valorizar o aleitamento materno, retornando a essa prática. Esse comportamento das mulheres da elite acaba influenciando as mulheres dos níveis socioeconômicos mais baixos. No presente estudo, parece que as mulheres mais instruídas estão em fase de valorização do aleitamento materno exclusivo, sem que essa tendência tivesse atingido, ainda, as mulheres de estratos socioeconômicos inferiores.

O índice de interrupção precoce do aleitamento materno foi muito semelhante nas duas coortes: no estudo de 1987, 36% das crianças foram desmamadas antes de completar 4 meses de vida e, no estudo de 1994, 39%. Essas taxas são bastante altas, não havendo tendência à diminuição ao longo do tempo estudado. Esse fato é preocupante, considerando a importância da amamentação nos primeiros meses de vida.

Embora não seja o objetivo do presente estudo avaliar os fatores de risco para a interrupção precoce do aleitamento materno, é de interesse mencionar que a análise multivariada revelou dois fatores que se caracterizaram como risco para a interrupção precoce do aleitamento materno: a renda per capita mais baixa e a cor branca da mãe.

O baixo nível de renda já é um conhecido fator relacionado com a prevalência e duração do aleitamento materno. Em áreas mais desenvolvidas, as mulheres de maior nível educacional e econômico amamentam mais nos primeiros meses.5 A cor branca da mãe como um fator de risco para a interrupção precoce do aleitamento materno já foi encontrada em outros trabalhos.3,7 No estudo de Giugliani et al3, as crianças filhas de mães brancas, de uma população residente em aglomerados urbanos, apresentaram um risco 78% maior de interromper a amamentação durante o primeiro mês de vida. Esse risco foi ainda maior (180%) em população de baixo nível socioeconômico de Pelotas.7 Segundo Martines et al7 esse achado poderia ser explicado, em parte, pela "cultura da amamentação" entre as mulheres negras que, até 1950, eram freqüentemente contratadas como amas-de-leite no Sul do País. Apesar dessas especulações, esse é um achado que merece futuras investigações.

Concluindo, os resultados do presente estudo ¾ prevalência do aleitamento materno e do aleitamento materno exclusivo em padrões bastante inferiores aos recomendados, altas taxas de interrupção precoce da amamentação, especialmente entre as mulheres menos instruídas, e estagnação das taxas de aleitamento materno no intervalo entre os dois estudos ¾ justificam o investimento na promoção do aleitamento, especialmente nas famílias menos privilegiadas, onde as vantagens do aleitamento materno são ainda mais evidentes. Diversas pesquisas têm mostrado que medidas simples podem causar impacto importante na prevalência e na duração do aleitamento materno. Pode-se citar, como exemplo, um estudo realizado em Guarujá,2 onde foi mostrado que 55% das mulheres que freqüentaram um grupo que abordava problemas relativos ao aleitamento materno estavam amamentando exclusivamente ao final do primeiro mês de vida de seus bebês, enquanto entre as mães que não freqüentaram o grupo, o índice de aleitamento materno exclusivo era de 31%. Aos 4 meses, 43% das mulheres freqüentadoras do grupo amamentavam exclusivamente, ao passo que entre as não-freqüentadoras esse índice foi de 18%. Outro estudo, realizado no próprio hospital estudado, mostrou que a orientação sobre aleitamento materno na maternidade, após o nascimento da criança, aumentou os conhecimentos maternos sobre o tema e, conseqüentemente, a prevalência da amamentação nos primeiros seis meses de vida.12,*

7. Referências

1. American Academy of Pediatrics. Breastfeeding and the use of human milk. Pediatrics 1997;100:1035-9.

2. Barros FC, Semer TC, Tonioli Filho S, Tomasi E, Victora CG. The impact of lactation centres on breastfeeding patterns, morbidity and growth: a birth cohort study. Acta Paediatr 1995;84:1221-6.

3. Giugliani ERJ, Issler RMS, Kreutz G, Meneses CF, Justo EB, Kreutz VM et al. Breastfeeding pattern in a population with different levels of poverty in Southern Brazil. Acta Paediatr 1996;85:1499-500.

4. Giugliani ERJ, Victora CG. Normas alimentares para crianças brasileiras menores de dois anos: bases científicas. Brasília: OPS/OMS; 1997.

5. Horta BL, Olinto MTA, Victora CG, Barros FC, Guimarães PRV. Amamentação e padrões alimentares em crianças de duas coortes de base populacional no sul do Brasil: tendências e diferenciais. Cad Saúde Pública 1996;12Supl 1:43-8.

6. Issler RMS, Giugliani ERJ, Seffrin CF, Justo EB, Carvalho NM, Hartmann RM. Hábitos alimentares no primeiro ano de vida de uma coorte de crianças nascidas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Rev HCPA 1990;10:141-5.

7. Martines JC, Ashworth A, Kirkwood B. Breastfeeding among the urban poor southern Brazil: reasons for termination in the first 6 months of life. Bull World Health Organ 1989;67:151-61.

8. Organización Panamericana de la Salud. Indicadores para evaluar las practicas de lactancia materna. Washington (DC); 1991.

9. Rea MF. The Brazilian national breastfeeding program: a sucess story. Int J Gynecol Obstet 1990;31:79-82.

10. Simopoulos AP, Grave GD. Factors associated with the choice and duration of infant-feeding practice. Pediatrics 1984;74:603-14.         [ Medline ]

11. Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil. Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, 1996. Amamentação e situação nutricional de mães e crianças. Rio de Janeiro: BEMFAM; 1997.

12. Susin LRO, Giugliani ERJ, Kummer SC, Maciel M, Benjamin ACW, Machado DB et al. Uma estratégia simples que aumenta os conhecimentos das mães em aleitamento materno e melhora as taxas de amamentação. J Pediatr (Rio J) 1998;74:368-75.

13. Venancio SI. A evolução da prática do aleitamento materno no Brasil nas décadas de 70 e 80 [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 1996.

14. World Health Organization. The World Health Organization's infant-feeding recommendation. Bull World Health Organ 1995;73:165-74.

*Nota do autor

Após a realização do estudo de 1994 foi formado um grupo multidisciplinar de incentivo ao aleitamento materno no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que promoveu cursos de treinamento na área, além de promover as mudanças de rotinas hospitalares para o cumprimento dos Dez Passos para o Incentivo ao Aleitamento Materno. A atuação do grupo culminou com a concessão da placa de Hospital Amigo da Criança, concedida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Ministério da Saúde. O estudo de 1994 pode servir de marco para trabalhos posteriores de avaliação do impacto das políticas de promoção ao aleitamento materno do citado hospital.

Suzane C Kummera, Elsa RJ Giuglianib, Lulie O Susinc, Jacson L Follettod**, Nádia R Lermene, Vivien YJ Wuf, Lyssandra dos Santosd** e Márcio B Caetanod** - elsag[arroba]terra.com.br

a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Porto Alegre, RS, Brasil. b Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. c Departamento de Patologia da Fundação do Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil. dFaculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. eHospital Materno-Infantil Presidente Vargas. Porto Alegre, RS, Brasil. fHospital de Clínicas de Porto Alegre. Porto Alegre, RS, Brasil

*Baseado em dissertação de mestrado, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, área de concentração de Pediatria, 1998. Subvencionado pelo Fundo de Incentivo de Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Processo nº 91055).

**Acadêmicos



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