Humanismo, liberdade e necessidade: compreensão dos hiatos cognitivos entre ciências da natureza e ética



1. Resumo

Com freqüência opõe-se a constatação crescente, norteada pelas ciências naturais, do determinismo que rege o funcionamento dos organismos vivos a um humanismo de fundamentação kantiana: está em questão a real condição da autonomia humana que repercute naquela de sua responsabilidade individual e social. Com base na filosofia espinosista, Henri Atlan endossa os postulados deterministas das investigações científicas, conciliando com eles, entretanto, a afirmação da plena liberdade e responsabilidade do ser humano. Num primeiro momento, tendo como pano de fundo estratégico distinções nas concepções de "natureza humana", revisaremos as diferentes abordagens da ética e da ciência às teses da autonomia e do determinismo. A seguir, focalizaremos a discussão do dilema por Atlan, em seu ensaio de 2002, La Science est-elle inhumaine? Essai sur la libre nécessité. Concluímos ressignificando "humanismo" nos termos das novas exigências conceituais do século 21.

Palavras-chave: Ciência, Ética, Liberdade, Necessidade, Complexidade

2. Abstract

The growing ascertainment, guided by the natural sciences, of the determinism that rules how living organisms work is often contrasted with a humanism of Kantian foundation. At issue here is the actual condition of human autonomy, reverberating on that of human responsibility both at the social and at the individual levels. Based on Spinozist philosophy, Atlan endorses the deterministic postulates of scientific investigations, though he reconciles them to the statement of the human being’s full freedom and responsibility. Initially, with the strategic background of distinctions in conceptions of human nature, we will review the different approaches of autonomy and determinism on the part of ethics and science. We will then concentrate on the discussion of the dilemma by Atlan, in his essay of 2002, La Science est-elle Inhumaine: essai sur la libre nécessité. Our conclusion redefines the meaning of "humanism" pursuant to the new conceptual demands of the 21st century.

Key words: Science, Ethics, Freedom, Necessity, Complexity

3. Introdução

A existência humana, que se desenrola na duração pode ser a ocasião de uma procura de perfeição cada vez maior, de uma história de salvação e de liberdade, onde as exigências mais altas da ética tendem a encontrar a experiência e o conhecimento das leis da natureza (Henri Atlan, 2002).

O papel da ciência e da filosofia será o de nos fazer aceder com a ajuda da Razão a um conhecimento do bem e do mal que seria verdadeiro porque decorrente da "verdadeira" natureza do homem (...) No contexto da ética, acontece que o que a Razão nos mostra como sendo o mais útil ao homem são os outros homens (Henri Atlan, 1999c).

Este número temático problematiza a noção de humanização, hoje largamente utilizada na área da saúde coletiva. Ela é considerada fundamental nesse campo estratégico de aplicação de conhecimentos voltados para a promoção da qualidade de vida. Tomada como consigna que reúne, de forma implícita, qualidade da atenção, interação compreensiva entre profissionais de saúde-pacientes e revalorização do olhar clínico, no mundo proeminente das tecnociências e das biotecnologias, "humanização" entrou no jargão do planejamento e da gestão do setor saúde. Este artigo aborda o tema pelo lado dos seus fundamentos, trazendo para o debate a contribuição da filosofia e da antropologia.

A concepção de "humanismo" surge na atmosfera de ebulição do Renascimento, paralela ao nascimento da ciência moderna, instaurando a noção da dignidade humana e erigindo a realização do potencial natural do ser humano como meta intelectual. Embora o sucesso do termo muito deva aos progressos científicos associados a este período da História, o "naturalismo" renascentista que permeia a valorização do humano insere-se numa ontologia mágica, onde tudo é possível (Koyré, 1991). A participação do "novo homem" dos séculos 15-16 no desenvolvimento científico é mais sutil: sob os auspícios dos procedimentos "(sobre)naturais" investigados, ter-se-ia começado a estimular a ação no mundo através da passagem da teoria à prática, ou seja, da aplicação dos conhecimentos para produzir operações (em evidente contraste com a tradição grega) (Yates, 1964). A partir de então, irá progressivamente consolidar-se na mentalidade pós-renascentista uma direção de vontade não mais grega ou medieval, impelindo à manipulação e modificação da natureza; nos subterrâneos desta atitude, estaria a convicção crescente de que a única restrição cabível ao empenho humano é aquela estabelecida por sua própria decisão.

Levemente tingido de sua origem retórica, o humanismo contemporâneo, reavivado pelo recurso constante ao "reino dos fins" kantiano, constitui-se numa ampla e secular antropologia filosófica e filosofia social (Bunge, 2002). A leitura epistemológica mais sofisticada do humanismo apóia-se na assertiva protagoriana de que o homem é a "medida das coisas" para propor uma perspectiva pragmática na apreciação do conhecimento, que estaria subordinado em definitivo à natureza humana e às suas necessidades fundamentais (grifo nosso) (Schiller, 1917, apud Lalande, 1988). Mas a versão que prosperou recentemente foi a que privilegia suas dimensões éticas e sociais, fortemente influenciadas pelo existencialismo e pelo marxismo, segundo os quais, o homem cria o seu próprio ser, pois o humano, através da história, gera sua própria natureza (grifos nossos) (Japiassu, 1998). No final do século 20, o termo foi amiúde ridicularizado por movimentos pós-modernos e multiculturais, adeptos das teses da incomponível fragmentação da personalidade e da motivação, flutuantes ao sabor de condicionamentos históricos irregulares (Blackburn, 1997).

Embora sempre se pretendendo alicerçado, como estivemos sublinhando, na especificidade da "natureza humana", o "projeto humanista" filiou-se tradicionalmente ao campo das humanidades, sendo o predomínio crescente de uma decodificação do mundo norteada pelo viés científico considerado com suspeita. Em searas acadêmicas, a principal crítica é a de que a ciência justifica filosoficamente sua posição realista e utilitária face ao problema do conhecimento pelo que Searle (2000) chama de "posições-padrão". Estas seriam as opiniões que temos antes da reflexão, de modo que qualquer desvio delas exige um esforço consciente e um argumento convincente. Os cientistas usualmente estruturam suas práticas tendo por "pano de fundo" de seu pensamento e linguagem tais posições-padrão que só são modificadas por um algum ponto de vista novo e revolucionário (Searle, 2000), ou seja, sob o influxo da mudança de paradigma kuhniana. Mas, dada a confortável separação funcional – que detalharemos adiante – das Ciências e das Humanidades, a não ser em redutos acadêmicos restritos, as conclusões científicas e as extrapolações humanistas não se punham em xeque, embora as últimas já estivessem desgastadas pelos desconstrutivismos pós-modernos.

Apenas quando desabrocha, na vicejante brotação neodarwinista, a antiga curiosidade sobre a "natureza humana" que modelara suas raízes na História Natural, a biologia evolutiva rompe a trégua instável entre as disciplinas "humanas" e "científicas". Um dos pomos da discórdia é justamente a autonomia da vontade humana – um dos motes diletos do humanismo. Diante dos extraordinários avanços desta área da Ciência, na passagem dos séculos 20-21, o desafio recoloca-se num patamar inédito de complexidades. Agora, por um lado, a biologia evolutiva (centrada na biologia molecular) invoca uma ampla competência para codificar ou mesmo negar a natureza humana (Pinker, 2004), postulando determinismos genéticos e agregando ao contexto de características adaptativas da espécie comportamentos antes considerados "desumanos" como aqueles ditados por "egoísmos" radicais. Por outro lado, no âmbito de nossas experiências existenciais cotidianas, urge redefinir pressupostos teóricos que, sem contrariar os dados científicos, nos reassegurem da condição humana de ir além, rumo à Felicidade, do que seria uma descrição simplista, por insuficiente, de sua natureza.


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