Resgatando os fundadores (janeiro/2004). Revista USP



Nem sempre a paisagem que se vê, quando se lança o olhar para trás, meio século ou um pouco mais depois, assemelha-se a uma fotografia, mesmo que retocada. Os anos turvaram a visão, quando não seu alcance, e aquilo que vislumbramos é apenas o que a memória, traiçoeiramente, nos leva a ver. E é desses fragmentos em que luz e sombra se misturam a tal ponto que muitas vezes aquilo que se vê escuro foi claro – mas como escuro foi gravado na memória e como escuro será sempre lembrado – que a memória histórica se compõe. O que não significa que aquilo que se vê claro, hoje, tenha sido assim; quantas vezes a luz se turvou pela emoção que trazia lágrimas aos olhos que então viam tudo de maneira diferente porque filtrada pelo sentimento. É com essa consciência que olho para trás nestes 70 anos da Universidade de São Paulo; mais do que dela, da Faculdade, hoje de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mas que foi como de Filosofia, Ciências e Letras que conquistou seu lugar ao sol junto às demais que passaram a integrar a universidade, e foi como de Ciências e Letras que se afirmou na paisagem intelectual, primeiro de São Paulo, depois do Brasil, nem sempre compreendida, nem sempre compreendendo os outros, os que não pertenciam à grei dos escolhidos.

Falar da Faculdade sem falar na coterie em que ela se constituiu logo depois de sua criação é fazer da história um edifício sem as paredes que o separam da cidade, mas ao mesmo tempo atestam que a ela pertence. A idéia de coterie, sempre a tomei do Marx do "18 brumário", nele referida de passagem como a indicar uma "fração de classe", daquelas que, para ele, eram a chave para a compreensão do fenômeno Luís Napoleão. Era a fração que se reunia em torno do National e que, pelas características de seus membros, não podia ser dada como uma fração de classe igual às outras em que então se dividia o espectro político da França de 1852. Que era ela? Quem a integrava? A descrição que Marx faz da "fração republicana" no "18 brumário" confirma a importância que ele emprestava à posição social e não à propriedade na definição do que fosse fração de classe. Para ele, a posição do National "sob a monarquia constitucional estava de acordo com seu caráter. Esta não era uma fração da burguesia liberal ligada por grandes interesses comuns e separada das demais por condições de produção a ela peculiares; era um círculo social restrito de membros da burguesia com idéias republicanas: escritores, advogados, oficiais e funcionários públicos. Sua influência decorria da antipatia pessoal do país por Luis Felipe, de memórias da velha república, da fé republicana de um número de entusiastas e, acima de tudo, do nacionalismo francês <...>". (A palavra coterie vem do francês, significando reunião de pessoas íntimas. No inglês, que registra igualmente coterie, é dada por um grupo íntimo, muitas vezes exclusivo de pessoas com um interesse comum. Marx a usa no alemão: Koterie. Fiquemos, por instantes que sejam, com o inglês.)

A coterie é um grupo restrito de pessoas que têm um interesse comum, independentemente de sua condição ou situação de classe, como a definiria a Sociologia. O que nos remete, ao não considerar a situação de classe, ao interesse comum. Esse não pode ser material; sendo assim, é político em sentido amplo e, na extremidade (lembremo-nos de Clausewitz), corresponde a uma visão do mundo. Digo "visão" e não "concepção" porque aquela é mais restrita do que esta, embora a visada possa influenciar a idéia geral que o ator social faz do campo sócio-político em que deverá agir. Ao preferir "visão" a "concepção" reduzo sem duvida o campo em que se situam os interesses comuns das pessoas que se reúnem na coterie; mas é exatamente isto que tenho em vista. O que pretendo deixar assinalado é que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras era uma coterie porque havia uma reunião de pessoas que se aproximavam porque tinham um interesse comum, independente de posições que tinham diante de outros problemas da Cidade. O National define bem o que tenho em mente: o interesse dos que se reuniam em torno dele era o "nacionalismo francês", o que significava que poderiam tomar posições contrárias diante de problemas outros que não tocassem, ainda que tangencialmente, o cerne do que se tinha por "nacionalismo".

Na paisagem que vislumbro da colina a que os anos me trouxeram, vejo que a coterie da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras melhor seria designada se a chamássemos de "coterie Estado de S. Paulo", jornal. Ou, para ser mais preciso, Júlio de Mesquita Filho. Não exagero. Para as jovens gerações – as que vieram depois de 1964, que separou definitivamente as pessoas que faziam da Faculdade o que era e sem ato autoritário algum, pelo simples efeito de presença, liquidou a coterie – soará estranho tudo o que disse. Como para mim soaram estranhas as palavras de um professor de Geografia, já aposentado, que ao recordar os anos de ouro se referia à "Faculdade dos Mesquita" (que combatera por ser "isto"), lembrando que durante anos houvera quem se propusesse fechá-la. Palavras que mostravam como eram reveladoras as palavras de antigo professor da Faculdade, recordando-se de que o interventor Ademar de Barros pretendera fechá-la, porque incomodava a Cidade – mas seguramente, ele não disse, porque ela fora criada por Armando de Sales Oliveira que se opusera ao Partido Republicano Paulista e o desbaratara em seu governo como interventor de Getúlio Vargas, depois governador constitucional.


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