Breves Apontamentos acerca da Questão da Anencefalia e do Aborto atinentes à mulher pobre (Dogmas, Paradoxos e Direitos)



  1. Apresentação
  2. Dogmas, paradoxos e direitos: a questão da anencefalia
  3. Notas

APRESENTAÇÃO

Ao elaborar este estudo tive por objetivo primordial destacar as dores e os sofrimentos da mulher pobre: vítima histórica do poder dos dogmas religiosos e da prepotência dos dogmas jurídicos. O médico que detém de conhecimentos médicos, tecnológicos e científicos, capacitado, portanto, para curar, minorar a dor e até de salvar vidas humanas, não pode ser punido na antecipação do parto de feto anencefálico.

O feto ainda não existe, pois não está no mundo. O seu único "mundo", ou lugar, é o ventre materno. Os dogmáticos religiosos e os do direito posto consideram o feto mais importante que a saúde física, mental e social da mulher. O feto tem apenas a expectativa de tornar-se pessoa e assim adquirir personalidade jurídica se nascer com vida viável; isto é, a de iniciar a existência que se consubstancia no estar no-e-com o mundo.

Por outro lado, o feto anencefálico é possuidor de deformação congênita irreversível, ou seja, inviável para a vida e para a existência. A antecipação do parto ainda não legalizado constitui do momento oportuno para o magistrado criar a norma do caso concreto para fazer prevalecer o Direito, porque não há regra jurídica que obrigue a mulher pobre – permanente vítima de nossas leis obsoletas - abrigar no ventre (a monstruosidade de) um ser anencéfalo.

Magistrados sensíveis à realidade da vida têm autorizados a interrupção da gravidez, quando confirmado por conclusivos laudos médicos, de enfermidade incurável ou deformidade anatômica e estrutural de feto sem nenhuma possibilidade de vida viável após o parto. Enquanto seres racionais, não podemos nunca duvidar da razão, mesmo quando se constata o inusitado e a irracionalidade de decisões morais e judiciais que dizem respeito à saúde da mulher pobre. Como já enfatizou Fabio Konder Comparato: "estamos todos nas mãos dos nossos juízes". Portanto, para o bem ou para o mal.

Por fim, o presente trabalho representa tão-somente o meu ponto de vista à questão do aborto lato sensu em que as mulheres pobres são vítimas indefesas do sistema legal com suas interpretações equivocadas e dos seculares dogmas religiosos. Contudo, os dogmas jurídicos podem ser mutáveis quando transformados em problemas, pois o Direito é dinâmico!

DOGMAS, PARADOXOS E DIREITOS: A QUESTÃO DA ANENCEFALIA

A interpretação literal do nosso arcaico Código Penal no concernente ao aborto mostra-se insuficiente para compreender a realidade e a violência perpetrada pelo Estado contra a única vítima desta tirania exegética: a mulher pobre. Mãe da Humanidade, a mulher pobre é punida covardemente pela inquisição dogmática dos operadores do Direito, condenando-a abrigar no ventre (a monstruosidade de) um ser anencéfalo. Ela tem de ocupar um lugar ao sol, dispor de peso e voz na sociedade civil. Gerando a morte ao invés da vida, não há consolo porque a História da Humanidade tem sido até o momento a História do Capitalismo.

É sabido que neste sistema os princípios são humanos, porém a realidade é chancelada nas diversas formas de violências e nas diferentes modalidades de fraudes. A ordem capitalista tem mostrado que não é uma fase transitória do processo histórico, mas a forma absoluta e definitiva da produção social. O nosso sistema capitalista é tosco e brutal, pois não oferece à maioria dos cidadãos um padrão de vida decente, um mínimo de segurança e de igualdade perante a lei. O Direito posto e imposto à coletividade tem a sua origem na produção econômica.

A maior vítima é, sem dúvida, a mulher pobre, pois é mantida na ignorância e é dominada pelo poder coercitivo de normas jurídicas caducas e injustas que não buscam a pacificação social, mediante hermenêutica favorável à dor e ao intenso sofrimento dela. Os seus apelos não são ouvidos nem fazem eco na consciência dos privilegiados e dos poderosos.

A escolha, em se tratando de aborto em sentido amplo, será sempre da competência exclusiva da mulher, pois é dona do seu corpo e da inalienável liberdade de agir, não obstante sofrer da interferência abusiva dos dogmas jurídicos e religiosos, os quais constituem em verdadeiro abuso de direito tal invasão em sua intimidade e estrita privacidade quando procurará repelir estas invasões bárbaras. Por outro lado, o sistema jurídico e os seus operadores ainda não conseguiram superar os dogmas e as contradições, cujas decisões judiciais são ainda muito prejudiciais à saúde (e à felicidade) da mulher pobre.

Assim se manifestou, sem rodeios, o Jornalista e Articulista da Revista VEJA, André Petry: ".... o STF deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão" (1)

Uma das vozes mais poderosas que impera no social é a dos formadores de opiniões, verdadeiros dominadores das mentes e corações do público, em que a mulher pobre aceita passivamente, talvez por estar em avançado estado de alienação, toda uma situação que lhe é tremendamente prejudicial. Na realidade, o Direito é uma superestrutura erigida sobre a base de relações econômicas e de poder que tem o Estado como instrumento de dominação. Inexiste neutralidade do Direito posto e imposto nas leis, pois as relações de produção são regulamentadas sempre no interesse da classe dominante cujos detentores do poder utilizam da ideologia jurídica como instrumento de persuasão. Atualmente, dada às correlações de forças, a mulher pobre continuará sendo ainda a maior perdedora, no sentido de exigir que a ideologia jurídica dominante seja interpretada de maneira favorável à sua situação. É preciso que os operadores do direito comprometidos com a felicidade e a dignidade da mulher pobre encontrem formas de enfrentar a prepotência dos dogmas jurídicos.

Na ideologia do sistema capitalista notamos princípios humanísticos explicitadas na Lei Maior: Constituição Federal. Porém, a realidade brasileira é constituída de mulheres e de crianças pobres, cujo incipiente sistema capitalista é paradoxalmente infame e perverso, tal como se nota na limitada democracia. Até quando o Brasil continuará sendo o mais desigual entre os desiguais? (O mais injusto entre os injustos?).

Ponto de partida interessante para começar a vencer barreiras somente ocorrerá quando o poder dos operadores do direito estiver comprometido na solução jurídica e judicial dos problemas brasileiros e quiserem praticar a máxima do progressista jusfilósofo Roberto Lyra Filho: Para um Direito sem Dogmas. E sem esquecer das análises e ensinamentos do nosso maior cientista social do século XX: Florestan Fernandes. Mestre dos mestres, foi considerado pelo historiador Eric J. Hobsbawm um dos cinco maiores cientistas sociais e intérpretes de nossa época (2). Em suma, o Direito é então absorvido na própria Lei. Vitória do positivismo jurídico que tem na dogmática a sua razão de ser.

Asseverou Roberto Lyra Filho, com a competência de profundo conhecedor desta realidade, que "o dogma, afinal, atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-lo ou a ele propor qualquer alternativa" (3). Por outras palavras, é o dogma a verdade absoluta, aceita às cegas e sem crítica, beneficiando a classe dominante. As normas jurídicas estatais são exemplos acabados do dogmatismo ao defenderem o caduco, pois combatem o novo, o progressista.

Na Religião Cristã sobressai o catolicismo com os seus dogmas como extensão da palavra de Deus, que é tão-somente uma idéia (Adendo: Ressaltou Camus que "Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos fazer contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Tanto para Kirilov como para Nietzsche, matarmos Deus (crime metafísico) é tornarmo-nos nós próprios Deus; enfim é tornar-se Deus – ou seja, é realizar nesta Terra a vida eterna de que fala o Evangelho..." ... Por outro lado, "O homem não fez mais que inventar Deus para não se matar. Assim se resume a história universal até este momento" - O Mito de Sísifo, p. 122/123). A teologia é feita sistematicamente sempre a partir das massas oprimidas e nunca a partir das elites do poder.

As Religiões universais são insidiosas para com as massas; buscam seres obedientes que serão domesticados como fiéis e uma vez acostumados a essa experiência repetida vezes serão incapazes de renunciar a abstração de um Deus todo poderoso. Assim sendo, na certeza de que o feto é anencéfalo, o teólogo e o positivista jurídico, ambos presos na camisa-de-força dos dogmas, procuram as fontes da vida numa autópsia! Todos os anencéfalos, se ainda vegetativamente vivos no ventre materno, morrem logo após o parto.

Não se vislumbra nos dogmas nenhuma perspectiva libertadora nem indícios de transformarem-se pelo menos culturalmente, porque todo o Direito é arbitrariamente reduzido à norma jurídica formalizada e em decisão fossilizada (injusta e retrógrada). Ou seja, para o positivista o Direito é um saber dos dogmas, repetidos à exaustão. A não-autorização judicial da antecipação do parto é porque "alguns juízes são absolutamente incorruptíveis. Ninguém consegue induzi-los a fazer Justiça" (Bertolt Brecht). É em nome da segurança jurídica que se quer que o juiz proceda maquinalmente como juiz obediente à literalidade da lei, alheio aos valores do humanismo e à circunstância da vida e da existência das mulheres pobres.

Todavia, a responsabilidade histórica será a do juiz monocrático que vai obrar a difícil missão de fazer progredir o Direito, adaptando a ordem jurídica posta à evolução das circunstâncias protetoras da indefesa mulher pobre. Se a circunstância é autorizar a interrupção da gravidez em razão da mulher carregar no ventre um natimorto, o magistrado que assim decidir estará não só fazendo a justiça do caso concreto mas projetando na eqüidade a solução de que o juiz deve estar subordinado ao Direito e à realidade da vida social. Em ponderação pertinente, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello assim se manifestou sobre o tema: "O Judiciário não pode se fechar em torno de si mesmo, omitindo-se, furtando-se de participar dos destinos da sociedade... A sociedade quer, sim, juízes, e não semideuses encastelados em torres de marfim... O juiz tem de ser um cidadão atento ao cotidiano da comunidade em que vive, em vez de robô repetidor de leis. Só assim será sensível para proferir decisões sábias" (4)

("Tudo oscila com o tempo" – Pascal; " O meu campo é o tempo" – Goethe; "O inferno não existe. Todos os demônios estão aqui" – Shakespeare)

Não basta apenas reconhecer o paradoxo, é preciso superá-lo. A mulher pobre, aprisionada no mundo concentracionário dos homens e excluída do bem-estar social, é submetida a mais esta violência: Carregar dentro de si um natimorto por vários meses até o parto. Há magistrados que são déspotas; há magistrados que são indiferentes; há magistrados que são análgicos. Ou seja, desaprenderam a pensar a dor e o sofrimento ínsitos na condição humana.


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