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A depressão no homem moderno na abordagem da psicologia analítica. Uma experiência em saúde pública no município de Santana de Parnaíba (página 2)


A procura maior por tratamentos é de mulheres na faixa etária de 20 a 60 anos. Quanto aos homens (principalmente entre 40 e 60 anos), este número é bem mais reduzido, provavelmente porque os homens se concentram mais em questões objetivas, como seu trabalho ou outras áreas de interesse prático, enquanto as mulheres estão mais voltadas às relações pessoais e ao seu mundo interior.

Podemos considerar a depressão como um "chamado" para a busca do feminino, entendendo-se feminino como uma percepção pré-determinada arquetipicamente como padrão da psique inconsciente. A depressão, portanto, pode ser a busca por um contato maior com o seu mundo interior, levando o indivíduo a ter um maior desenvolvimento de sua psique, considerando que estes homens estão vivendo um período em que pode haver uma "reconstrução" de suas vidas.

Questiono as formas como este processo se dá nas pessoas de níveis culturais e econômicos menos favorecidos, já que suas preocupações se relacionam às especificidades de sua realidade social. Este tema pode ser significativo e acrescentar novas reflexões aos estudos que têm se desenvolvido sobre depressão na atualidade.

O objeto deste trabalho se concentra na teoria analítica do psiquiatra suiço Carl Gustav Jung e, mais especificamente, nas idéias de Edward C. Whitmont acerca da evolução da consciência, analisada desde a consciência mágica, passando pela matriarcal e patriarcal, para, dessa forma, chegar a sugerir a necessidade do "retorno da deusa"[1]. Gostaria de entender como se dá este processo especificamente no homem brasileiro, de classe social baixa e faixa etária entre 40 e 60 anos.

Uma das dificuldades deste trabalho está ligada à alta rotatividade dos pacientes: por ser um grupo aberto, há alguns pacientes que permanecem por mais tempo, enquanto ocorre a constante entrada de novos integrantes.

Observo ainda uma grande diferença entre o grupo de homens e o de mulheres, na forma com que lidam com suas emoções e, também, entre os homens que procuram ajuda e os que não a procuram. Esta questão, no entanto, não será foco principal desta pesquisa, por ampliar demais o tema.

A depressão, segundo Waldemar Magaldi (2006, p.75) é a terceira doença psiquiátrica epidêmica da história contemporânea.

A primeira delas foi a histeria, que teria surgido numa época em que a mulher não tinha voz, nem o direito ao trabalho e ao gozo, vivendo diante do patriarcado opressor. Assim, a histeria seria uma forma de se introduzir o feminino, que vinha sendo negado neste contexto patriarcal. Posteriormente, ocorreu a rebelião contra o patriarcado; na Igreja, a mulher passa a ser a possuidora da alma e o feminino ganha espaço.

A segunda doença, a esquizofrenia, aparece junto com a Teoria da Relatividade. O homem começa a lidar com os paradoxos e o dualismo, de modo que este é um período caracterizado pela cisão, divisão, que, segundo Góes e Murgia (2005, p.50), amenizaram a rigidez da mente humana, que se mostrava totalmente mecanicista. Como reação a esse mecanicismo, observamos uma grande explosão criativa.

Já a depressão, surgiu como um caminho para se encontrar o "resgate" da alma, a busca do sagrado, que estaria encoberta pelo capitalismo da sociedade de consumo.

Segundo Magaldi (2006, p.76), podemos perceber que, no processo evolutivo, tanto as doenças individuais quanto as coletivas podem ser tentativas, equivocadas ou não, de facilitar o crescimento da humanidade. Logo, podemos pensar que várias das epidemias podem ter sido uma maneira de provocar mudanças no comportamento social.

Como já disse anteriormente, o que gostaria de refletir é se a depressão se configura como uma busca pelo feminino, que foi, ao longo dos tempos, rechaçado em virtude da preponderância do patriarcado e suas características masculinas, voltadas para o logos, tais como o raciocínio lógico, o pensamento analítico e científico, o ceticismo etc. Assim, a religiosidade e os rituais foram perdendo importância, o que resultou num vácuo no que se refere ao sentimento, intuição etc, até então só permitidos às mulheres.

Em consequência da existência desta lacuna, o homem vem em busca de seu mundo interior, do contato com o seu lado afetivo, sentimental, que foi sempre colocado de lado por não ser compatível com os valores do patriarcado.

Com as grandes mudanças que vêm ocorrendo na sociedade, especialmente depois do advento da utilização da pílula anticoncepcional – quando as mulheres começaram a lutar por igualdade de direitos, para poder administrar suas vidas e sua sexualidade, trabalhar e serem independentes –, temos nos deparado com uma transformação grande em relação aos papéis dos sexos e de seu relacionamento, algo bastante visível, também, no comportamento dos homens. Estes perdem, assim, um pouco do seu papel de provedores, de chefes de família, e podem até ocupar um lugar que antes era exclusivo das mulheres, como os cuidados com a casa e filhos.

Assim colocado, esse parece ser um período de transição, uma saída do patriarcado, mas que não representa, entretanto, um retorno ao matriarcado, e sim uma evolução da consciência – o que será explorado no capítulo 3.

Neste cenário, a depressão se configura como uma tentativa de cura: é o entrar para dentro de si e até "morrer", para, então, poder haver um renascimento, assim como a Mãe-Terra, que enterra, faz germinar, nutre, para depois renascer.

Como já vimos, as várias epidemias surgem como uma forma de provocar mudanças no comportamento social. Podemos dizer que a depressão pode ser vista como uma tentativa de cura, ou, em outras palavras, que ela vem a serviço do processo de individuação.

Que mudanças são estas?

Que significados a depressão pode ter na atualidade?

Será que este processo se dá igualmente com todos os homens?

Como se dá este processo em um grupo terapêutico, formado por homens brasileiros, moradores de Santana de Parnaíba, entre 40 e 60 anos de idade, pertencentes à classe social menos favorecida?

Estas são algumas das questões que têm se colocado diante mim.

A depressão no homem aparece como um chamado de algo no seu mundo interior que foi perdido. Apesar de ser um processo de sofrimento, é por meio destes sintomas que se pode obter uma evolução do mundo interior e da consciência.

Embora o homem se volte mais para questões objetivas e práticas do dia-a-dia, a partir do momento em que apresenta sintomas que passam a prejudicar esse cotidiano, há uma busca por ajuda.

A minha hipótese é que, apesar dos homens de classe menos favorecida terem menos espaços para o auto-conhecimento, uma vez que sua realidade está mais voltada às questões de sobrevivência, apresentam, através dos sintomas da depressão, a mesma busca pelo feminino, embora possam vir a ter menos consciência deste processo.

O presente trabalho busca entender como a depressão se organiza nesta população e fazer um estudo simbólico dela. Seu pano de fundo é a teoria junguiana, que tem como meta promover a integração total do ser, unindo animus e anima, representantes dos princípios masculinos e femininos, em direção ao processo de individuação, a busca do sentido existencial e do centro de todo ser humano.

Desta forma, ainda partindo da perspectiva junguiana, que tem um entendimento psicossomático de que o sintoma pode ser um chamado para o desenvolvimento, pretende-se compreender como a depressão pode vir a serviço do processo de individuação.

Este trabalho se desenvolverá, numa primeira etapa, a partir de reflexões teóricas resultantes de um levantamento bibliográfico de estudos sobre este tema (ver referências). Numa segunda etapa, será utilizada como ilustração a análise de questões surgidas no grupo de homens por mim atendidos na UBS Dr. Álvaro Ribeiro em Santana de Parnaíba, durante os quatro últimos anos (2005-2009). Para tal, pretendo identificar e discutir algumas queixas, perfis de pacientes e considerações a respeito da evolução de alguns casos, com base em anotações pessoais e de prontuários.

O trabalho vai se estruturar em quatro capítulos. O primeiro deles trata da depressão, sua etiologia, dados epidemiológicos. Também irei discutir o significado do sintoma, dentro da visão junguiana.

No capítulo 2, descrever a estrutura da psique na psicologia junguiana e o processo de individuação. Neste momento, se buscará entender como anima e animus são imagens psíquicas que emanam de estruturas arquetípicas e podem atuar como "psicopompos", tornando-se elos e instrumentos da individuação.

O capítulo 3 trata da transição do matriarcado para o patriarcado, relacionando-a à teoria de Whitmont; análise cultural da leitura da sociedade contemporânea.

Já o capítulo 4 trata da descrição do perfil dos pacientes que compõem o grupo psicoterapêutico, tentando relacionar esta prática com a teoria apresentada anteriormente.

CAPÍTULO 1

Depressão

Um dos problemas emocionais que vem despertando grande preocupação entre os profissionais da área da saúde é a depressão. Pesquisas apontam um aumento significativo de tal diagnóstico em crianças, jovens, adultos, idosos e até bebês.

Hoje, a depressão se tornou um problema cada vez mais comum, principalmente nas grandes cidades, com sua população imensa e a consequente frieza nos relacionamentos interpessoais, além da violência e estresses decorrentes do estilo de vida destes grandes centros urbanos.

Estudos apontam que a depressão será a principal doença a causar perda na qualidade de vida em 2020. Hoje, já é a segunda maior causa. Acredita-se que a depressão é mais comum em mulheres, sendo que a frequência deste problema nelas é duas vezes maior do que nos homens. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, cerca de 15% das mulheres têm pelo menos um episódio depressivo ao longo de suas vidas; alguns estudos avaliam que este número pode chegar até a 25%. Nos homens, os números variam entre 6 e 20%, dependendo do estudo. Além de afetar mais mulheres do que homens, a depressão é mais comum em pessoas acima de 40 anos, solteiras ou separadas. Não há correlação entre situação socio-econômica e prevalência da doença, ou seja, tanto pessoas em boa situação financeira como aquelas com situação mais delicada podem ser atingidas por este mal.[2]

Muitas pessoas se dizem deprimidas quando, na verdade, estão tristes ou enfrentando algum problema em suas vidas. A tristeza faz parte da vida: é óbvio que, em determinadas situações, as pessoas se entristecem – como quando enfrentam alguma perda, por exemplo. Porém, não podemos transformar estes sentimentos em doença, isto não é depressão.

A depressão se caracteriza por um conjunto de sintomas, que vai desde um grande desinteresse pela vida, falta de vontade de viver, medos de enfrentar algo ou, apenas, medo de viver a vida. Pessoas acometidas pelo mal, demonstram um sentimento de inferioridade, uma autocensura excessiva, flutuação de humor e rejeição social, acarretando prejuízos nas suas relações interpessoais. Da mesma forma, a pessoa se sente incapaz de lidar com as coisas básicas do seu dia a dia.

Alguns dos sintomas são[3]

  • Perda do prazer de fazer as coisas que antes gostava;

  • Cansaço ou falta de energia;

  • Perda ou ganho de peso;

  • Alterações do sono;

  • Vontade de ficar só, afastar-se de tudo e todos;

  • Queixas físicas (dores generalizadas, por exemplo);

  • Abuso de medicamentos, álcool ou drogas (costumam ser meios para se afastar e se alhear do que se passa à sua volta);

  • Sensação excessiva de inutilidade ou culpa (quase diariamente);

  • Vontade de chorar por qualquer motivo;

  • Tristeza;

  • Incapacidade para se concentrar e pensar, indecisão;

  • Irritabilidade acentuada, mal humor;

  • Desleixo com o vestir ou com a sua apresentação;

  • Pensamentos suicidas, em casos mais graves.

A depressão é muito antiga, apesar de ter sido mais abordada após o surgimento da psiquiatria, por volta do final do século XIX, definida como transtorno de humor ou transtorno afetivo. Assim, a característica fundamental da depressão é a alteração de humor ou do afeto, podendo também estar a ansiedade a ela associada. Alguns textos seculares trazem descrições de quadros depressivos na Antiguidade; o Antigo Testamento descreve características de um quadro depressivo, que teria ocorrido com o Rei Saul e também com o suicídio de Ajax, na Ilíada de Homero. Hipócrates já usava, em sua época, termos como "melancolia" e "mania" para descrever distúrbios mentais. Há muitos outros relatos de quadros depressivos ao longo de toda a História e que, antigamente, recebiam distintos nomes; na verdade, o que hoje se chama de depressão já existia há milhares de anos.

A etiologia da depressão ainda causa muita discussão na área médica, os profissionais se dividem entre as perspectivas biológicas, sociológicas e psicológicas: fatores genéticos, herdados, familiares; fatores biológicos, como disfunções em neurotransmissores ou desequilíbrios hormonais (como a serotonina), o que justifica a introdução de medicações nos tratamentos; fatores psicossociais como acontecimentos vitais trágicos e estressores ambientais são componentes importantes. A maioria dos psiquiatras e psicólogos, no entanto, vem compartilhando uma visão integrada, levando em conta fatores referentes à hereditariedade, condições ambientais e história de vida do paciente. Há, também, alguns casos como uma "depressão endógena", que surge do nada, sem um motivo aparente.

O tratamento psiquiátrico é importante nos casos mais graves, porém, o tratamento medicamentoso só elimina os sintomas, havendo uma perda grande da possibilidade de reflexão sobre aspectos importantes do mundo interno, o sentido simbólico da doença.

Paulo Ruby (1998, cap. III) trata da questão da psicossomática na psicologia analítica, demonstrando uma relação entre corpo-mente, no entanto, diferente das investigações em termos de causa e efeito. Ruby fala sobre o sintoma (symptoma, do grego, significa simultaneidade) como uma coincidência entre duas magnitudes diferentes. Mais além, discute um outro conceito, o de sincronicidade, que pressupõe um terceiro elemento, o símbolo (aquilo que une duas partes formando uma totalidade), considerado, na psicologia junguiana, superior ao plano do soma ou da psique, responsável pela formação do sintoma.

O símbolo pode expressar, então, a relação corpo-psique, através de percepções de alterações fisiológicas. Como trata Denise Ramos,

um complexo tem sempre uma expressão simbólica corpórea, através do qual podemos ter a chave para a compreensão da doença. Neste caso, o símbolo aponta uma disfunção, um desvio que precisa ser corrigido, quando a relação ego-self fica alterada. (RAMOS,. In: RUBY, 1998, p. 60).

As doenças, no processo evolutivo, podem facilitar o crescimento da humanidade. Podemos, desta forma, tentar entender o significado dos sintomas da depressão (pressão para dentro), o entrar para dentro de si, o morrer, para depois renascer. É o olhar para dentro, para reencontrar a alma. Seria uma tentativa de resgatar o feminino, pois, na sociedade patriacal, tanto os homens quanto as mulheres são destituídas de sua própria identidade; os homens perdem a conexão com sua anima, são seres humanos pela metade, perdem o contato com sua alma, deixando de ser receptivos, sensíveis e criativos.

No mito "O Descenso de Inanna",

a deusa desce por sua própria vontade ao reino dos mortos, onde ela é morta e renasce. Assim, Inanna emergiu como uma deusa lunar, dona dos mistérios da vida e do renascimento, representados pela lua. Aqui, ela completa seu ciclo, tornando-se não só a deusa da terra e do céu, mas também do mundo subterrâneo.(www.geocities.com/Athens/Olympus/7866/inanna.html)

A "descida de Inanna" ajuda a compreender a tarefa da iniciação do feminino, em que o homem e a mulher são chamados a realizar dentro da sociedade patriarcal e machista. Ou seja, traz de volta um feminino rejeitado da cultura há milhares de anos, fazendo com que "a humanidade recupere a própria alma, que faz falta para que o mundo seja mais humano, mais criativo e sensível a si próprio." (PERERA, 1998, p.11).

Assim, a depressão simboliza esta busca, a necessidade de olhar para dentro de si mesmo, na tentativa de resgatar um entusiasmo que foi perdido (entheos=em Deus) para encontrar a própria religiosidade (o re-ligar-se). Para haver a vida, é preciso haver a morte e, sem ela, não há renascimento. Vista assim, a doença aponta para uma possibilidade de transformação, desde que possamos tentar entender o seu significado e não apenas tentar eliminar a dor e o sofrimento.

Nesse sentido, a depressão pode representar um chamado que vem a serviço do processo de individuação, conceito pensado por Jung, que vai ser discutido no próximo capítulo.

CAPÍTULO 2

Estrutura da psique na psicologia junguiana

Jung dividiu a psique em consciente e inconsciente. O centro da consciência é o ego, que é o organizador e o mediador dos conteúdos do mundo externo e interno (consciente e inconsciente). O ego surge do Self (si mesmo), que é o centro do inconsciente.

Os conteúdos do inconsciente são vivenciados como complexos, conjuntos de idéias carregadas emocionalmente, que surgem a partir de relações de afeto (provenientes das experiências que nos "afetam"). São autônomos, isto é, aparecem como não pertencentes ao próprio eu, por isso, são projetados e se acumulam ao redor de certos arquétipos.

Os arquétipos correspondem a tudo o que é possível de ser feito, a todas as manifestações psíquicas da vida, típicas da natureza humana, tanto no nível biológico quanto no psicológico. São estruturas da psique que aparecem em imagens ou motivos arquetípicos. "Os arquétipos se manifestam tanto no nível pessoal, através dos complexos, como coletivamente, como características de toda uma cultura" (MAGALDI, 2008, p. 9). Eles provêm de possibilidades hereditárias do funcionamento da psique, "formam a base dos padrões de comportamento instintivos e não aprendidos, que são comuns a toda a espécie humana e que se apresentam à consciência humana de certas maneiras típicas" (SANFORD, 1987, p.13).

Aparecem e se repetem em mitos, imagens e religiões, podendo tomar muitas formas, desde os tempos mais antigos, tornando-se conscientes ou permanecendo nas profundezas do inconsciente coletivo e de toda a humanidade.

Existem diferentes arquétipos, que tomam importância ao longo da vida e das experiências particulares de cada um. Os arquétipos da persona, sombra, anima e animus são de extrema importância para a estruturação da psique, se revelando elementos que determinam aspectos da subjetividade e a forma com que cada um age.

O ego tem uma "casca protetora", que é a proteção externa, chamada persona, que significa, no grego, "máscara". Se refere às várias máscaras ou papéis que desempenhamos em nossas vidas, necessários para a adaptação da vida em sociedade e é formada de acordo com o que é aceito e esperado de cada indivíduo. Algumas vezes há uma identificação muito grande com a persona, tornando difícil a percepção do que é o "eu", ou seja, a essência do ser, separada da persona, podendo chegar a um nível patológico. Ao contrário, quando se faz esta discriminação, o indivíduo pode chegar a encarar o oposto da persona, que é a sombra, lugar obscuro, inconsciente, onde se guardou tudo aquilo que não foi aceito, que foi reprimido, o lado negativo da personalidade – negativo, no sentido daquilo que é negado e não do que é ruim.

Consciente e inconsciente apresentam conteúdos de natureza oposta, que são complementares, que se compensam em um sistema autoregulador. Ou, como define melhor Fritjof Capra, um dos fenômenos essenciais da auto-organização, a autoconservação, inclui processos de autorrenovação, cura, homeostase e adaptação. Capra diz:

A dinâmica básica da evolução, de acordo com a nova visão sistêmica, principia com um sistema em homeostase – um estado de equilíbrio dinâmico caracterizado por flutuações múltiplas e interdependentes. Quando o sistema é perturbado, tem a tendência para manter sua estabilidade por meio de mecanismos de realimentação negativa, os quais tendem a reduzir o desvio do estado equilibrado. (CAPRA, 1982, p. 280).

Podemos fazer uma analogia deste pensamento com a maneira com que Jung vê a evolução do mundo interior: o Self é um arquétipo que tem uma função teleológica[4]no desenvolvimento psicológico, objetivando uma diferenciação do ego, a partir da conscientização de sua dinâmica, através do confronto e integração de seus opostos.

Jung vê a psique como um sistema regulador: o inconsciente desenvolve a contra-reação reguladora. Ele afirma que a regulação inconsciente é necessária à nossa saúde mental e física. (JUNG, 1986, p. 47)

Assim, os sintomas serviriam para "curar" o indivíduo ou para se atingir um estado de equilíbrio psíquico. A psique faz um esforço para curar-se a si própria através do símbolo. A esta evolução, Jung chamou "processo de individuação", onde há uma busca arquetípica do si mesmo, o encontro da singularidade do ser.

O objetivo do processo de individuação é o desenvolvimento da personalidade, percorrendo um caminho de diferenciação, ampliando a consciência. Para tanto, é preciso que o ego se destaque da persona e, em seguida, se confronte com a sombra. O indivíduo se volta para a realização de todo o seu portencial, no que se refere ao pessoal, mas também como parte de sua própria cultura.

Para a meta da individuação, o indivíduo precisa distinguir o que é para si e o que é para os outros. Porém, esta diferenciação se torna mais difícil quando tem que lidar com aspectos invisíveis: anima e animus.

Jung reconheceu que no inconsciente sempre existe o pólo do sexo oposto. Pode-se pensar que todo ser humano é andrógino (do grego, andros=homem e gynos=mulher) ou hermafrodita (vem do deus grego Hermafrodito, filho de Hermes com Afrodite), que possui características tanto masculinas quanto femininas.

Em vários mitos, desde Adão e Eva, quando "[Deus] criou-os macho e fêmea" (SANFORD, 1987, p. 10), o ser humano era bissexual. Ainda em outras mitologias, como a persa, talmúdica, no curandeirismo e outros, aparece esta idéia do ser humano original ser macho e fêmea.

Entre as várias imagens, a milenar filosofia chinesa fala do Yang e Yin como princípios cósmicos, sendo que toda a existência expressa a interação de ambos: Yang como sendo o masculino e Yin, o feminino.

Assim, Jung é o primeiro cientista a descrever estes dois arquétipos presentes no ser humano, com uma evidência empírica: aparecem em sonhos, contos de fadas, mitos e em vários fenômenos do comportamento humano. Anima é a parte feminina existente na personalidade do homem e animus a parte masculina existente na da mulher. Os termos anima e animus vêm do latim e Jung usou animus como equivalente de "espírito" e anima como "alma", porém esta distinção é discutível. O mais importante é que animus e anima definem, respectivamente, o masculino e o feminino arquetipicamente, evitando, assim, a confusão entre gênero e sexo.

Ambos estão presentes em todos os relacionamentos humanos e na busca da realização de si mesmo. Porém, são projetados, ou seja, podemos observá-los fora de nós, como se fizessem parte de outra pessoa e não tivessem nada a ver conosco. Além disso, é um processo inconsciente e, por este motivo, não os reconhecemos.

A anima é determinada por Eros, princípio da ligação, da relação; o animus, pelo princípio do logos, da lógica e da razão.

No livro "O homem e seus símbolos", temos a descrição de Anima como

a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente. (JUNG, 1977, p.177).

Pode-se questionar se as diferenças entre os papéis que os homens e as mulheres desempenham são produtos de expectativas sociais ou culturais. Segundo Jung, obviamente há esta influência, porém existem padrões arquetípicos subjacentes.

Emma Jung fala que a mulher está mais aberta em relação ao inconsciente do que o homem que, com sua consciência racional, tende a negar tudo o que não é explicável, por isso se fecha para o inconsciente. Ela qualifica a receptividade como o maior segredo do feminino, a anima possui esta receptividade e não tem o preconceito com relação ao que é irracional, ilógico: "(...) por esta razão é qualificada de mensageira entre o inconsciente e a consciência." (JUNG,E., 1967, pg 68).

A mãe é a primeira portadora da anima, é a primeira figura em que são projetados conteúdos inconscientes referentes a este arquétipo. É importante que o anima se separe da mãe, mas será projetado em outra mulher ao longo das relações afetivas.

Para Jung, o encontro com a anima/animus é a obra-prima da individuação. À medida em que entramos em contato com os materiais fundamentais da nossa estrutura humana, os reconhecemos e isso propicia uma transformação, assim como a lapidação de um cristal.

CAPÍTULO 3

Transição do matriarcado para o patriarcado: relação com a teoria de Whitmont; análise cultural da leitura da sociedade contemporânea

Segundo Alsina, "o mito deve ser estudado evolutivamente dentro do universo cultural a que pertence" (ALSINA. In: BRANDAO, 1989, p. 76).

O símbolo não tem um significado único, particular e, por isso atravessa tantas culturas. A cada vez que abordamos um símbolo, ou mito, podemos ter um olhar diferente para ele.

No ano de 2000 a.C., o mundo grego atravessava uma transição da cultura matriarcal para a patriarcal, com o consequente declínio dos valores femininos.

Dois momentos importantes na mitologia grega mostram esta passagem.

Em um deles, Apolo, em seu primeiro feito heróico mata a serpente Píton, que era a guardiã do templo de Delfos, o centro do matriarcado (o umbigo do mundo). Aí ocorre a transferência do oráculo da deusa terra (Gê/Géia) para Apolo, que se torna o deus da lógica e da razão, representa a verdade e a beleza, a objetividade. Ligado à abstração, à auto-reflexão, influencia a ciência, a matemática, a filosofia. A evolução pela qual Apolo passou, reflete um período de transformações: os gregos mudavam as formas de governar as cidades-estado; ansiavam pela expansão das fronteiras internas e externas; a estabilidade da família grega ruía.

Outro fato importante nesta passagem da fase matriarcal para a patriarcal se deu com o julgamento de Orestes, que, juntamente com sua irmã Electra, a conselho de Apolo, mata a sua mãe Climnestra, para vingar a morte de seu pai Agamenon por ela. Climnestra age assim pelo ódio que tinha pelo marido que, para desposá-la, matou seu primeiro marido, Tântalo, e o filho, para, depois, sacrificar a filha Ifigênia em troca de conquistas e vitórias. Para as Eríneas[5]a morte de Agamenon é menos importante: Climnestra vingava a morte de Ifigênia. Para o patriarcado, no entanto, foi um crime abominável, diante da posição política, social e religiosa do homem. Orestes, se dirige então ao Oráculo de Delfos, para ser purificado pelo deus Apolo, que instituiu um julgamento para o matricida, mostrando a vitória pela força do macho sobre a fêmea. Ele mesmo, junto com Atená[6]seria o advogado de Orestes. Havia doze votos dos magistrados no tribunal ateniense e houve empate. Atená teria a palavra final e ela colocou na urna o "voto de Minerva", absolvendo Orestes, apoiando a nova ordem patriarcal. O julgamento de Orestes se transforma numa luta de sexos.[7]

Assim, a sociedade patriarcal vai dando primazia ao homem em detrimento da mulher; valoriza a percepção, o pensamento, a competição, a lógica, a razão, a objetividade. Daí, o desenvolvimento do pensamento científico e cartesiano: rejeição total à intuição, sentimento, sensibilidade, criatividade e receptividade.

Segundo Whitmont (1991, cap.2), o ego patriarcal tem horror às mudanças, pois ela ameaça nosso estado de consciência.

A cultura patriarcal reprimiu o que era visto como maligno do feminino: desejos, impulsos, instintos, emoções. As mulheres eram vistas como encarnações das bruxas, que seduziam os homens. Portanto, elas precisavam ocupar posições subordinadas, escondidas sob véus, sendo obedientes, passivas, maternais e domesticadas.

A mulher boa é a virgem, assexuada, sofredora. Sexo e orgasmo são repreensíveis e estão próximos à experiência de morte: logo, a negação e o medo da sexualidade é semelhante à negação e o medo da morte. Segundo Whitmont (1991, p.204), a conexão instintiva com a natureza se perdeu. O homem negou a dimensão criativa, divina e se voltou ao materialismo e ao consumismo.

Whitmont relaciona estas transformações com a evolução da consciência e a divide em três fases: mágica, mitológica e mental.

A fase mágica é o período ginecolátrico: o mundo é mágico, governado pela Grande Deusa. São adoradas as forças da natureza, o animismo, a religião panteísta da natureza. A era mágica pode ser comparada ao estágio do desenvolvimento infantil dos 3-4 anos. A consciência mágica expressa a dinâmica das energias instintivas e afetivas; indiferenciação entre sentimento-pensamento, sensação-intuição, passado-presente-futuro, corpo-mente, eu-outro. Na natureza mágica, está presente a importância do ritual; o tribalismo mágico, no entanto, continua agindo em nossa psique inconsciente.

A fase mitológica se caracteriza por uma polarização entre o racional e o irracional, há uma diferenciação entre sentimento e pensamento, assim como entre sensação e intuição que, antes, na fase mágica, eram indiferenciados. Produtos da Renascença, que faz com que haja uma diferenciação entre a lógica racional dos sentimentos pela atitude científica. O pensamento é refinado, o sentimento fica relegado a um nível mais arcaico, a percepção sensorial passa a ser mais valorizada do que a intuitiva ou extrasensorial.

O foco desta fase está ligado à consciência egóica – o mito de Adão e Eva é importante para entendermos como surge o conhecimento: é através da transgressão que se obtem o conhecimento, quando surge a consciência separada do inconsciente, em que o homem sai do paraíso para lidar com o bem e o mal, evitando o mal e seguindo o bem. O ideal da fase mitológica é o treinamento da vontade por meio da resistência heróica: "heróis matam dragões, serpentes e monstros, representantes do inconsciente pantanoso e reprimido do Feminino" (WHITMONT, 1991, p.84). Este período coincide com a era de ferro, que era dominado pela mente, o ego, o espírito, o que leva à perda dos deuses e da alma. Vai sendo, então, anunciado o fim do período mitológico, quando o raciocínio vai ficando mais preponderante sobre o pensamento mitológico, empático e intuitivo, e vem então a fase racional do egocentrismo.

A fase mental se caracteriza, principalmente, pelo controle do ego (pelo superego) da agressão e do desejo, dos impulsos naturais, das emoções e desejos espontâneos, através da lei e da ética. Aflora a predominância daquilo que é percebido pelos cinco sentidos em detrimento do mundo da alma: aquilo que não é observável no espaço físico não existe. Na época mental, a noção da realidade se limita ao que é visível e não às percepções da psique. A alma é relegada às categorias da superstição e do sentimentalismo.

A força do ego está relacionada à capacidade de fazer valer a própria vontade contra a da natureza: aumento de conforto, fuga da dor, capacidade de controlar os próprios impulsos, necessidades e desejos.

O ego é percebido como guerreiro, herói masculino, rejeitando as características femininas e colocando todos os impulsos no inconsciente.

Em nosso mundo contemporâneo, repleto de transformações, principalmente no que se refere às mudanças dos papéis sexuais, o feminismo ajudou os homens a se tornarem mais livres para serem eles mesmos, a examinarem melhor suas próprias feridas. Seria como se o movimento de luta das mulheres tivesse contribuído para a "liberdade sentimental" dos homens.

Hollis, em seu livro "Sob a sombra de Saturno" (1997, p.13), mostra como os homens padecem sob um peso opressivo de uma série de expectativas e de papéis masculinos, especialmente a competição e o poder.

Segundo o mito, Saturno era o deus romano da agricultura. Crono, sua encarnação grega, nascido de Urano e Gaia, recebe da mãe uma foice para atacar o pai, pois este odiava os filhos por temer que eles tirassem o seu poder. Cronos corta o falo do pai e o substitui, sendo igualmente tirano. Da mesma forma que o pai, comia os filhos para que eles não ocupassem o seu lugar. O único que escapou foi Zeus, que acabou liderando uma revolta contra o pai. Zeus, então, torna-se prisioneiro do poder. O mito de Saturno trata do poder, do ciúme e da insegurança: "A maioria dos homens ao longo da história cresceram sob a sombra deste legado saturnino. Sofreram com a corrupção do poder, movidos pelo medo, ferindo a si e aos semelhantes" (HOLLIS, 1997, p. 14).

Entre os lemas de Saturno, estão o trabalho, a guerra e a preocupação.

Hollis mostra como os homens sofrem pressões por expectativas que lhes são depositadas, tais como a responsabilidade e a obrigação de sustentar a família: ser homem significa trabalhar. Ou ir à guerra, matar ou morrer. É não sentir dor. É ter coragem.

O homem, desde sua infância, recebeu estas mensagens e, para o homem atual, digerir tudo isso se tornou muito mais difícil, pois não há ninguém para lhe ensinar como enfrentar estas "provações", já que ninguém foi iniciado, uma vez que os ritos de passagem desapareceram há bastante tempo.

os ritos surgem a partir do encontro arquetípico com o profundo. (...) A idéia da passagem é essencial, pois todas as passagens implicam o fim de algo, algum tipo de morte, e o início de algo, algum tipo de nascimento. (...) A iniciação implica ingressarmos em algo novo, algo misterioso. (...) Sem esse rito, fica despojado. Passará o tempo deprimido, ou usará drogas para aplacar a dor. (...) permanecerá indeciso como homem ou se envolverá em grande compensação machista. Acreditará que sua masculinidade se comprova quando vai para a cama com as mulheres, dirige um carro possante ou ganha muito dinheiro. (HOLLIS, 1997, p. 23. Grifos do autor).

Estas expectativas em torno do homem, no entanto, são distantes das necessidades da alma. Essa discrepância revela o despertar da consciência de que algo está faltando; o homem começa a entrar em contato com esta falta, esta dor, a reconhecer seu temor de não corresponder ao que dele se espera, o medo do fracasso, da impotência – daí a competição, a produtividade e o poder, como medidas de sua masculinidade.

Hollis comenta como os homens norte-americanos morrem em média oito anos mais cedo do que as mulheres, e têm probabilidade quatro vezes maior de abusos de substâncias e também de cometerem suicídio.

O autor ressalta, ainda, como o poder do elemento feminino é importante na organização psíquica dos homens, ou seja, o complexo de mãe, carregado de grande carga afetiva pode ser vivido como uma experiência de carinho, proteção ou pode ser dolorosa, fazendo-os sentir desenraizados e perdidos, dependendo do tipo de relacionamento estabelecido entre mãe e filho. O homem, então, deve lutar contra este complexo materno, é uma luta interior, para não projetá-lo nas mulheres, procurando dominá-las ou, ao contrário, se submentendo a elas. Em ambos os casos, surge o medo da aniquilação, ou seja, da dissolução e extinção do inconsciente, o homem pode sentir uma impotência, projetando-a nas mulheres ou sofrer a sensação de abandono, resultando em uma grande insegurança.

Temos aí a ferida do homem, caracterizada pelo temor do feminino. Esta ferida pode levar à depressão, gerada pelos sentimentos de raiva e dor, voltando-os para dentro, ou interiorizando-os no corpo, provocando doenças físicas (enxaquecas, doenças cardíacas, gástricas ou câncer). Pode também vir como uma irritabilidade ou, ainda, externar-se de forma destrutiva, para si ou para outros (como o estrupo, que é uma violência contra as mulheres ou contra o complexo materno do homem).

Hollis mostra como o homens tentam controlar as mulheres como uma forma de se defenderem do medo que sentem pelo seu feminino interior. E, mais ainda, como esse medo acabou criando o patriarcado.

Ao mesmo tempo, essa ferida é ambivalente, ela pode oprimir mas também pode estimular o crescimento. Podemos observar esse fato nos ritos iniciáticos, onde o menino passa por rituais de separação e de dor, com o intuito de conseguir se separar da mãe, do conforto, da proteção – para "transcender o complexo materno" (HOLLIS,1997, p. 86), preparando-se assim para enfrentar um mundo perigoso e difícil.

O mito do Rei pescador é muito interessante para podermos compreender melhor como se sentem os homens do mundo contemporâneo. Conta o mito que Amfortas sofreu um grave ferimento nos testículos, sede de sua masculinidade, e só poderia ser curado se encontrasse o Graal, o símbolo medieval do receptáculo da alma.

Whitmont em seu livro " O retorno da Deusa"( 1991, p. 177) fala do Graal como tendo uma riqueza imagética muito grande; é recipiente, manancial da vida, capaz de renová-la e recuperar a juventude; fonte de alimento, alegria e prazer.

O Graal representa um vaso, o útero, aquilo que contém, a taça feito seio, cheia de segredos e mistérios.

"O mito do Graal implica no reverso da tendência patriarcal que representou a perda absoluta da integração mágica com o paraíso" (WHITMONT, 1991, p. 177).

Whitmont (1991, p. 144) questiona as causas da passagem da fase matriar-cal para a patriarcal, negando a visão puramente sociológica. Ele atribui a desvalorização do feminino às mulheres e aos homens. "As mulheres têm sido tão culpadas de sua própria natureza feminina quanto os homens, de haverem reprimido a dimensão feminina em suas psiques" (WHITMONT,1991, p. 146).

A desvalorização do feminino parece ter sido necessária para o desenvolvimento da própria consciência do ego.

O feminino é Eros, relacionamento, vínculo. No mundo patriarcal, o feminino só é aceitável no que concerne às qualidades maternais de provedoras e protetoras da vida. O instinto feminino precisou ser reprimido, submetido apenas aos propósitos patriarcais de procriação. Vem daí a idéia de virgindade, da mulher precisando se manter casta, para não ameaçar o ego patriarcal.

Hollis (1997, p. 131) afirma que as mudanças sociais ocorrem através do despertar da consciência das pessoas. Assim, quando as pessoas rejeitam certos valores culturais que ferem sua alma, podem transformar o social.

Segundo Whitmont (1991, p.117), o racionalismo moderno privou os homens de um contato com o divino, o dogmatismo substituiu a produção consciente de mitos, Deus passa a ser uma abstração remota e distante.

O início do século XX é marcado pelo positivismo, racionalismo, reducionismo e cisão entre sujeito e objeto; os valores do superego predominam, aumentando a individualidade e a alienação com relação à natureza. O trabalho ocupa o lugar da espiritualidade; a prosperidade econômica é a prova das bençãos de Deus. A ciência é a nova religião.

O sofrimento é associado à vergonha, à culpa, significando fracasso. Deve ser negado e jamais aceito como parte normal da vida. Para evitar a dor, precisamos satisfazer todos nossos desejos. Como isso não é possível, os sentimentos devem ficar de fora. O homem moderno não procura entender a mensagem da doença, busca sempre uma cura rápida, como por exemplo, trocá-la por drogas, sexo ou violência.

No mundo contemporâneo, com o advento do patriarcado, a antiga Deusa[8]deixa de governar a terra, o que leva ao surgimento do materialismo científico, da destrutividade da tecnologia e da negação da religiosidade. Segundo Whitmont, no entanto, a Deusa está retornando, o que significa que a era do patriarcado está teminando e os papéis masculinos e feminininos se modificando (WHITMONT,1991, Introdução).

Junto a estas transformações, vai ocorrendo uma evolução da consciência. Essa evolução ocorreu ao longo das fases mágica, mitológica e mental. E a próxima etapa vai se dar com a integração destas três fases e o retorno da deusa, ou seja, a busca pelo contato com os sentimentos e as emoções até hoje reprimidos.

Whitmont (1991, p. 211) sugere a modificação da imagem do herói (no patriarcado) para a do buscador, como uma nova representação da masculinidade que emergiu do inconsciente coletivo ocidental, pela primeira vez entre os séculos XI e XIII, quando houve a primeira tentativa da revalorização do feminino. A principal representação dos mitos que pode direcionar a reaparição da Deusa é o do Graal.

A busca do Graal é a ligação com a psique, a alma e o inconsciente. Implica no reverso da tendência patriarcal, que deve ocorrer com o retorno ao mundo da Deusa, na tentativa de descobrir os segredos da existência e a recuperação da dignidade humana.

Esta busca está relacionada a um diálogo interior, a uma atenção ao seu feminino interno e à sua ferida, aos sentimentos, necessidades e valores pessoais: "O buscador do Graal dispõe-se a enfrentar deliberadamente o conflito e a dor. (...) A busca que o novo homem efetua é da ferida que não pode ser evitada, por mais que tentemos" (WHITMONT,1991, p. 215). Assim, o sentir está relacionado à capacidade de experimentar a dor, pois, sem ela, não há prazer. O buscador consegue enfrentar o erro, a sensação de fracasso, da inadequação, da vergonha e da culpa.

Whitmont coloca, ainda, que "Em nossa época, a situação atingiu um momento profundamente insatisfatório e confuso para homens e mulheres. Uma dimensão profunda convoca novamente à expressão ativa da feminilidade em ambos os sexos" (WHITMONT,1991, p. 205).

Assim, a tarefa da era patriarcal era o esclarecimento do pensamento; a da nova era é admitir e reconhecer a mágoa e esclarecer os sentimentos. A evolução da consciência está voltada a uma nova perspectiva, ligada a uma nova feminilidade, aberta às dores, às feridas, sendo valorizados o sensorial e o espiritual. Além disso, se volta também a um novo relacionamento com o divino subjetivo, direcionado para o interior e não mais para fora, como a religiosidade patriarcal ocidental. O homem tem contato com uma força criativa que é transformadora, "alegria e dor, beleza e feiúra, espiritualidade e sensualidade devem ser aceitas e reconhecidas como manifestações de uma forma transcendente, portanto sagrada e sacramentada" (WHITMONT,1991, p. 222).

Whitmont (1991, p. 217) defende que a Grande Deusa tem como meta transformar a atitude perante a vida e a existência, tanto em homens como em mulheres. A infelicidade e a frustração podem ser meios de confrontarmos a nós mesmos. São instrumentos capazes de modificar a consciência, levando ao processo de individuação que é ligado ao propósito evolucionista de nosso ser, próprio de nossa natureza. Como objetivo maior do arquétipo Yin, está a necessidade de diferenciação de valores afetivos em lugar da receptividade submissa. E é bem provável que o desenvolvimento da intuição seja um dos desafios da próxima fase da consciência, pois o pensamento analítico e lógico não consegue vencer a distância entre o ego e o self.

A nova consciência está psicologicamente orientada para a descoberta e revelação de cada um, e não mais para grandes revelações transmitidas a uma personalidade de destaque ou a um herói cultural, como Moisés, Jesus ou Maomé, que então divulgariam a verdade às massas. (WHITMONT, 1991, p. 271).

Com o autoconhecimento, pode-se admitir as próprias fantasias sem temer que sejam imorais e destrutivas. Torna-se possível conhecer os próprios sentimentos e, como bem diz Whitmont, substituir as perguntas "Por que eu?" pelas perguntas do Graal: "Qual o sentido de tudo isso?" e "A que isso pode me levar?" (WHITMONT, 1991, p. 280).

CAPÍTULO 4

Grupo de homens

O grupo de psicoterapia de homens que atendo, na UBS Dr. Álvaro Ribeiro é um grupo aberto, composto por uma média de seis integrantes, moradores do município de Santana de Parnaíba, interior de São Paulo, na faixa etária entre 40 e 60 anos.

Há uma certa rotatividade, alguns ficam por um curto período e abandonam a terapia, enquanto outros permanecem por um longo tempo. O mais antigo deles já participa há quatro anos.

Abaixo coloco, apenas como ilustração, a descrição de algumas questões surgidas nesse grupo de homens por mim atendidos na UBS durante estes últimos quatro anos.

E.V.[9]

Descrição: 56 anos, casado, tem 5 filhos, sendo uma adotiva. É professor de História do Ensino Fundamental. Está em terapia há 3 anos.

Queixas: depressão, obesidade, compulsão alimentar. É portador de diabetes, hipertensão, apnéia, problemas na coluna, artrose, sente muitas dores.

Durante toda sua vida, fez vários tipos de dietas para emagrecer, obtendo sucesso principalmente com o uso de inibidores de apetite, mas quando interrompe o seu uso volta a ganhar peso. No entanto, nesta última vez, o excesso de anfetaminas levou-o a um quadro de ansiedade e depressão, chegando a ter idéias suicidas.

Desde a infância, tem baixa auto-estima, tanto pelo peso excessivo, já que era alvo de gozações dos colegas na escola, quanto pela família, principalmente pelo pai que era muito exigente e, diante de seu baixo desempenho em geral, na escola ou na vida, era muito cobrado e menosprezado por ele.

Já teve situação financeira boa, dono de empresas que, com o decorrer do tempo, acabaram por falir. Hoje, entende que parte do seu fracasso profissional se deva à apnéia, já que nunca teve um sono repousante e, por isso, se sentia sempre sem energia, cansado e sem forças para lutar.

Desde que se mudou para Santana de Parnaíba, começou a lecionar em escola pública, em um bairro muito pobre (Bairro 120), caracterizado por altos índices de violência. Sentia muita dificuldade diante de alunos adolescentes que não tinham interesse pelas aulas, quebravam e destruíam os materiais da escola, desrespeitavam os professores e os colegas.

E.V. se casou com V. e sempre teve uma relação complicada com ela. Ela chegou a traí-lo com outro homem; eles se separaram, depois voltaram a viver juntos e, hoje, ela cobra muito por ele não conseguir manter o mesmo nível financeiro que tinham antes. Ela o considera doente e pensa que só vai poder ter uma relação tranquila quando ele se curar. Com o decorrer do tempo, ele trouxe também queixas de impotência sexual.

Seus filhos estão casados e bem sucedidos, com exceção da filha mais nova, de 16 anos, que ainda é dependente deles.

Em razão de seus problemas de saúde, E.V. tenta a antecipação de sua aposentadoria que, pelas vias normais, aconteceria apenas em dois anos. É muito revoltado com as injustiças sociais, com a sua impossibilidade de obter um aparelho que lhe permita respirar e dormir melhor, algo que tenta conseguir junto ao SUS, por não dispor de recursos para obtê-lo, já que é um aparelho muito caro. Fica muito indignado por ter contribuído a vida toda com o INSS e, agora que precisa, não consegue ter de volta o que lhe é de direito.

Acaba, na verdade, projetando todas as dificuldades que enfrenta no exterior, toda a culpa de sua infelicidade está no sistema e nos políticos desonestos. Acompanha, pela TV, todas as discussões dos vereadores, deputados e senadores e fica revoltado com o dinheiro que acabam usurpando da população, enquanto a mesma sofre tantas injustiças.

Não consegue controlar a alimentação que, segundo ele, é o seu único prazer.

E.C.

Descrição: 53 anos de idade, casado, tem uma filha de 30 anos, um rapaz de 26 anos e uma moça de 23 anos. É funcionário público do estado de São Paulo, trabalha na secretaria de uma escola estadual. Está em terapia há 4 anos.

Queixas: teve um episódio de síndrome do pânico há 4 anos atrás. Ficou por aproximadamente 6 meses em casa, preferencialmente em seu quarto, sem disposição e energia, só querendo ficar deitado. Começou sentindo dores no peito, taquicardia, sudorese, muito medo de morrer. Foi por diversas vezes ao Pronto Socorro, onde o encaminhavam para especialistas e indicavam a realização de vários exames, que apresentavam sempre resultados normais. Foi encaminhado para a psiquiatria e iniciou o uso de medicamentos, juntamente com psicoterapia individual. Obteve melhora, conseguindo retornar às suas atividades, continuou a psicoterapia, passando para grupo.

Nascido em Santana de Parnaíba, filho único, criado em sítio, trabalhava com os pais na roça, sempre foi bastante tímido. Aos 18 anos, começou a trabalhar em banco, não gostava do trabalho da roça. Passou a ter uma vida mais social, frequentando bares, bebendo e saindo com mulheres. Sua mulher atual foi uma namorada que acabou engravidando de sua primeira filha. Não se sentiu muito vinculado a esta filha (até hoje, tem uma relação muito distante dela); somente quando a mulher engravidou do segundo filho é que eles resolveram se casar e morar juntos.

E.C. tem uma posição muito marginalizada na família: está sempre excluído de todas as decisões. Sua mulher é muito "batalhadora" – segundo ele define –, estudou, prestou concursos e, hoje, ocupa o cargo de diretora de uma escola estadual. Seu salário é bem maior do que o dele, ela cobre todas as despesas da casa e da família, restando a ele o pagamento do aluguel, que totaliza o seu salário. Isso faz com que ele se sinta muito diminuído e, na verdade, ele acaba se excluindo. Qualquer decisão com relação à casa, viagens, ou festas, ele sempre "ouve falar que vão fazer isso ou aquilo". Ao mesmo tempo, é muito cobrado pela esposa por algumas falhas que ele comete no dia-a-dia, como, por exemplo, deixar alguma luz acesa ou ficar cuidando do cachorro e não fazer algo mais útil. Ele "explode", briga e xinga e, então, o casal fica, às vezes, meses sem conversar, até que, aos poucos, volta ao contato normal. Ele fica muito feliz nestas ocasiões, se contentando quando ele e a esposa trocam idéias sobre o trabalho ou sobre a família.

O.A.

Descrição: 54 anos, casado pela segunda vez. Do primeiro casamento, teve dois filhos, que já são adultos, casados e moram em São Paulo. Do segundo casamento, tem uma filha de 8 anos e um filho de 5 anos. Está em terapia há cerca de três anos.

Queixas: veio encaminhado pela fonoaudióloga. Sofreu um acidente de motocicleta, teve um AVC, acabou se aposentando por invalidez. No entanto, por tudo que passou, está em ótimo estado. Tem uma ligeira dificuldade ao andar, gerada por um desequilíbrio na perna esquerda e pequena dificuldade de comunicação oral.

O.A. relata que, logo após o acidente, tinha estas dificuldades muito mais intensas. Na verdade, quem não sabe e não o conheceu nem percebe que ele teve algum problema. Descendente de italianos, é do tipo falador. Dá para imaginar que ele era muito falante. Atualmente, às vezes, pensa o que quer falar mas não sai, demora para conseguir expressar o que pensa. Apesar de ser quase imperceptível, ele se sente muito mal e incapacitado em relação a sua dificuldade para falar, e, por isso, acaba se isolando e se sentindo um pouco deprimido. A sua dificuldade aumenta por conta de uma ansiedade que surge quando quer falar algo.

Trabalhava, nos últimos anos, como motorista de uma família chinesa em São Paulo e utilizava como meio de transporte uma motocicleta. No dia do acidente, ele voltava do trabalho pela Marginal Pinheiros, quando foi "fechado" por um carro, caiu e bateu a cabeça quebrando até o capacete. Demorou muito tempo até chegar socorro, ele acabou tendo uma lesão no lado direito do cérebro. Desde essa época, se aposentou por invalidez.

Sua esposa que já trabalhava em uma empresa, passou a aumentar o seu ritmo de trabalho para poder sustentar a casa e a família. Ele passou a cuidar da casa e dos filhos, fazendo almoço, acompanhando suas lições e os levando e buscando da escola. Com o tempo, passou a trabalhar na construção da ampliação de sua casa, fazendo o trabalho de pedreiro. Isso ilustra como ele estava com boas condições físicas, apesar de tudo.

Falávamos, no grupo, da possibilidade dele voltar a trabalhar, pois se sentia muito mal em estar só em casa, sem contato exterior como sempre teve durante toda sua vida profissionalmente ativa. Mas, nesses momentos, ele alegava que não podia, pois, do contrário, perderia a sua aposentadoria.

Ficava nervoso quando queria falar com a mulher ou com os filhos e não saíam as palavras, muitas vezes acabava desistindo de se colocar.

Sentia-se muito desvalorizado e incapaz, colocava este sentimento na sua "impossibilidade" de falar, mas era algo mais amplo.

C.G.

Descrição: 57 anos, casado, tem três filhos, sendo o primeiro de uma primeira união (este reside com a mãe no Ceará) e dois meninos, de 9 e 11 anos, com a atual esposa. Está em terapia há 2 meses.

Queixas: muito nervoso, foi encaminhado por outra psicóloga da UBS, que atende o seu filho de 11 anos, com dificuldades escolares por desatenção acentuada, o que acaba impedindo um bom aprendizado.

Nascido no interior do Ceará, filho de pais rígidos, trabalhou desde cedo com o pai na roça. Atualmente, reside em um sítio, onde cria animais para o abate. É também muito rígido com os filhos, exigindo que eles lhe ajudem em seu trabalho, que é bastante pesado. Quando os filhos não obedecem, são agredidos fisicamente, assim como a esposa. Fica muito irritado com a mulher, quando ela discorda dele e o enfrenta.

Veio para a terapia com a queixa de que a esposa é muito nervosa e eles brigam muito, por isso, sua participação no grupo. Já recebeu visita do Conselho Tutelar, por maus tratos e por obrigar os filhos a trabalharem.

J.H.

Descrição: 60 anos, viúvo, 3 filhos, aposentado. Está em terapia há dois meses.

Queixas: depressão. Deficiente visual recente, portador de diabetes, o que acabou provocando a sua perda visual há 1 ano.

Antes disso, há 4 anos, perdeu a esposa, vítima de câncer, morreu rapidamente. Era boa companheira, cuidava de tudo, tinham um relacionamento muito bom, sente muita falta dela e chora muito por sua ausência.

Sente-se muito mal por precisar ser "carregado" pelas pessoas, depende das filhas para tudo, não consegue fazer mais nada.

Descrevo, abaixo, uma dinâmica que realizei no grupo com a intenção de saber como eles percebem o "ser homem". Pedi que eles completassem a frase: "SER HOMEM É..."

E.C.:

  • cumprir com as obrigações do dia-a-dia (depois ele explica, que se refere a prover e também ajudar nas tarefas domésticas)

  • não ser machista

  • conviver bem com a família e com o próximo

  • respeitar as pessoas e os colegas de trabalho

  • procurar resolver os problemas sempre da melhor forma possível

  • evitar confusões

E.V.:

  • não ser ganancioso

  • não ser machista

  • não querer as coisas só para si

  • não pensar que só os homens que têm problemas

  • temos que estar cientes que os homens também erram

  • nós homens temos que ser compreensivos (explica que às vezes os homens pensam que nunca erram)

J.H.:

  • não judiar da família

  • tratar bem deles

  • não judiar da mulher

  • manter e sustentar a família (para a mulher não ter que trabalhar)

  • não ser homossexual (se refere à homossexualidade como "é sem-vergonhismo")

Podemos observar que os temas mais frequentes do grupo giram em torno de dificuldades financeiras, trabalho, aposentadoria, conflitos entre o casal e dificuldades para desempenhar o papel de pai.

Parece que a impossibilidade de manterem o seu papel de provedores os abala muito, trazendo a sensação de impotência (até física), a perda do poder, da força própria do homem. Este parece ser um sentimento comum a todos, independente da etnia, idade ou posição social.

A faixa etária dos pacientes, entre 40 e 60 anos, é própria da metanóia. Jung descreve que o desenvolvimento humano se inicia a partir do nascimento, atinge seu ápice na juventude e, a partir da meia-idade, começa a decair para alcançar, na velhice, seu objetivo último que é a morte. A metanóia é este período da meia-idade quando ocorrem mudanças em que questionamos o sentido da vida; quando o sujeito tende a se voltar para o seu interior e sua existência para a realização de seu Self.

Uma das características mais marcantes na maioria dos integrantes do grupo de homens que venho atendendo é que esses homens que procuram terapia são mais sensíveis e dispostos a encarar suas dificuldades. Essa observação vai de encontro à colocação de James Hollis quando fala: "Na verdade, são os homens com maior força emocional e honestidade fundamental que procuram a terapia. Os outros estão excessivamente amedrontados." (HOLLIS,1997, p. 162). Ou, ainda, quando o mesmo autor se refere à opressão do homem sobre as mulheres: "A triste história de como os homens tratam as mulheres é perfeito testemunho deste fato. O homem oprime aquilo que ele teme. (HOLLIS, 1997, p. 48. Grifos do autor). Assim, o medo é responsável pela opressão às mulheres e, também, aos ataques aos homossexuais, quando vemos o machismo excessivo (como no caso de C.G.).

Quando ocorre este "despir-se" de uma vestimenta ou de uma máscara, vem a doença. A dor representa algo que foi perdido (sensação de impotência), o enfraquecimento da vitalidade, levando a uma sensação de fracasso e, consequentemente, à raiva. A depressão é definida, também, como a vivência da raiva voltada para dentro. Esta é a oportunidade do encontro com o si mesmo, com o seu mundo interior. A batalha diária do homem traz a perda de sua alma, o que é um ferimento terrível.

Hollis (1997,.p.103) fala da ferida saturnina, aquela em que o homem deve ser julgado pela sua produtividade, provocando perda de sua estima. Ele mostra que a taxa de mortalidade masculina aumenta vertiginosamente depois da aposentadoria.

A depressão traz com seus sintomas uma mensagem que precisa ser compreendida: a possibilidade de acessar o inconsciente, de cura, com o autoconhecimento. É a necessidade de entrar em contato com o mundo dos sentimentos, renegado pelo mundo patriarcal. É uma busca pela relação com a própria feminilidade, ou com a anima.

Segundo Sanford:

Quando encaramos a anima e o animus, começamos uma nova evolução psicológica. Para o homem isso pode significar um respeito renovado pelo mundo do coração, relacionamentos e alma, reconhecer que suas explosões de mau humor, suas fantasias e sua insatisfação têm em sua fonte essa obscura figura feminina. A anima estimula o eros masculino, despertando a capacidade de amar e de estabelecer um relacionamento pessoal. (SANFORD, 1987, p. 42)

A depressão leva o homem a iniciar um diálogo interno: ele precisa entrar para dentro, se "afundar" para depois poder sair. Precisa morrer para renascer. Isso é próprio do feminino, da Mãe-Terra: o dar a vida mas também tirar, num ciclo de semear, germinar, nascer, nutrir, morrer, para, de novo, renascer.

Simbolicamente, a depressão leva a uma possibilidade de renascimento.

Desse modo, o homem se vê diante da dor e da solidão e, para que ele "salve a si próprio, é preciso que retome a jornada da alma" (HOLLIS,1997, p.176).

Neste sentido, o homem encontra sua anima e a utiliza como ponte para a busca de seu próprio centro, o self ou o si-mesmo.

CONCLUSAO

Quando tentamos entender a relação do homem com sua interioridade, representada pelo seu feminino, o anima, podemos perceber como este feminino acaba sendo uma ponte da energia psíquica para a autorealização e para o encontro com o self.

A anima "é qualificada como mensageira entre o inconsciente e a consciência" (JUNG, 1967, p. 68), "Ela representa a ligação com a fonte da vida que está no inconsciente" (JUNG,1967, p.79).

É provável que o homem ocidental, brasileiro, que vive em nossa sociedade moderna, capitalista, já não encontre mais sentido em sustentar uma máscara do poderoso, daquele que produz e sustenta, do corajoso e destemido, já que foi sendo desconstruído este papel ao longo das transformações vividas nos últimos anos. E estas mudanças ocorrem da mesma maneira nas diferentes classes sociais. À medida em que o homem vai em busca de um autoconhecimento, tomando consciência dos aspectos dinâmicos de sua psique e vai identificando o que projeta no mundo externo, começa um grande trabalho de diferenciação da personalidade. Segundo Sanford (1987, p. 81), "as projeções se integram quando se tornam conscientes".

Capra (1982, p. 279) foca em uma outra tendência do ser humano, além da autoconservação. É o processo de autotransformação e autotranscencência, que se expressa nos fenômenos de aprendizagem, desenvolvimento e evolução. Esta idéia vai de encontro à função transcendente de Jung. Capra fala ainda, de uma dinâmica subjacente da evolução, cuja característica central é a criatividade.

Para trilhar este caminho, torna-se fundamental entender o significado dos sintomas, a causa da depressão e resgatar a saúde por intermédio da doença, ou melhor: mediante a conscientização de nossas feridas, é que pode ocorrer a cura.

A depressão representa uma desfeminilização cultural. Não é a mulher que está sendo negada, mas a alma.

Em sua abordagem sistêmica, Capra mostra que "podemos deliberadamente alterar nosso comportamento mudando nossas atitudes e nossos valores, a fim de readquirirmos a espiritualidade e a consciência ecológica que perdemos." (CAPRA, 1982, p. 293).

De fato, podemos perceber esta trajetória do encontro com o feminino como uma busca pelo sagrado, esta visão é salientada pelos dizeres de Whitmont: "(...) a orientação inerente ao Feminino conduz a uma nova forma de relacionamento com o divino, a ver sua própria vida como padrão de destino individual dado pela dimensão transpessoal" (WHITMONT, 1991, p. 222).

Assim, o que é incrível perceber, é que todo este processo leva a um desenvolvimento da personalidade, ao mesmo tempo em que há uma evolução da consciência. Ainda com Whitmont: "a nova consciência holística percebe a existência humana como um aspecto de um organismo cósmico unitário". (WHITMONT, 1991, p. 243).

Emma Jung trata a anima como um ser da natureza, o que vem de encontro aos recentes movimentos ecológicos e naturalistas. Neste sentido, podemos associar esta busca pelo feminino Yin, a Natureza, a Mãe-Terra, com o desenvolvimento dos movimentos ecológicos e a procura por uma consciência ambiental, cada dia mais em voga.

A evolução da consciência em direção à busca do feminino transita por intrincados caminhos que percorrem o interior do homem e suas relações com a natureza e a espiritualidade. O reconhecimento da alma é o ingrediente essencial para dar sentido à vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GÓES, M.T.G. & MURGIA; F. Salve a depressão! Criando uma nova maneira de olhar a vida.São Paulo, Edicta, 2005.

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PERERA, S. B. Caminho para a iniciação feminina. São Paulo; Paulus 1998.

RUBY, P. As faces do humano: Estudos de Tipologia Junguiana e Psicossomática. São Paulo, Oficina de Textos, 1998.

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SCHAPIRA, L. L O Complexo de Cassandra. São Paulo; Cultrix, 1988.

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http://www.geocities.com/Athens/Olympus/7866/inanna.html (Acesso em 20/02/2009)

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a quatro pessoas muito importantes:

Ao Marcelo, meu companheiro e incansável incentivador.

À Gabriela e Julia, por sua sensibilidade e imenso apoio.

Ao Theo, que mesmo sem saber, foi tão importante para este processo, pois ao vivenciar a descoberta do que é ser homem, me permite compreender a sua anima, contribuindo para o meu autoconhecimento.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Marcelo, Gabriela e Julia, pelas releituras e sugestões feitas ao meu lado.

Agradeço aos meus pacientes com quem trilhei este caminho, diferente em cada encontro, mas de enorme riqueza e fonte de tanto aprendizado.

Agradeço aos professores da Facis, que ajudaram a ampliar meus horizontes...

 

Autor:

Viviane Horesh Brettas

vivihoresh[arroba]uol.com.br

Monografia apresentada à FACIS/IBEHE como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Psicologia Junguiana

FACIS/IBEHE

São Paulo

2009


[1] A idéia do "retorno da deusa" de Whitmont se refere ao encontro com o feminino, como será explorado mais detidamente no capítulo 3.

[2] Dados obtidos da página http://www.abpbrasil.org.br. Acesso em: 12/03/2009.

[3] Dados obtidos da página http://www.abpbrasil.org.br, acesso em 12/03/2009.

[4] Função teleológica se refere a algo que está á frente, relação de um fato com sua causa final.

[5] As Eríneas eram deusas gregas que refletiam os aspectos sombrios da alma e representavam os elementos primais do inconsciente.

[6] Atená nasceu da cabeça de Zeus, age como "ânimus" e prefere a companhia dos homens.

[7] Em BRANDAO, J. S. Helena O Eterno Feminino. Rio de Janeiro, Ed.Vozes, 1989.

[8] Whitmont utiliza o termo "Deusa" por considerá-lo uma representação simbólica de grande força e poder.

[9] Por questões de ética profissional e confidencialidade dos sujeitos envolvidos, optou-se por utilizar apenas as iniciais dos nomes dos pacientes participantes.



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