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Drogas, por que legalizar? A interferência do direito penal na questão das drogas (página 2)


ABSTRACT

It examined in this work drug enforcement and its relationship with the establishment of trafficking and drug dealer, and its increase in penalties based on a lot of the time, in theory as the theory of criminal law of the enemy.

So, this study sought to relate the prohibitive drug policy, with the creation of the dealer and its attendant ills, adopting, therefore, criminal theories, and surveys of controversial issues of the law itself drug devices (Law 11.343 / 06).

In the first chapter, a brief introduction to the subject was made, giving a greater focus on the issue of drug prohibition as creative element of trafficking and the trafficker.

In the second chapter, we tried to address criminal theories, such as the criminal law of the enemy, to show that the problem of drugs is sometimes treated on that basis. We still approach the criminal minimalism, understood in this work in order to criminal contraction and abolitionism, is only as critical to criminal law.

In the third chapter, the focus was in the sense of making a historical development of drug prohibition, the motivations to consider illicit the use of some substances, and the strong influence and US interference in this process, culminating in the reprimand much use as the sale, and ideological motivations of the US to increase stratospherically drug enforcement. also brought the discussion, controversial issues in the courts and doctrines regarding drug possession offense for personal consumption (art.28 of Law 11.343 / 06), and about the drug trafficking offense (art.33 of the law 11.343 / 06).

To close the chapter, it was made a brief analysis of the discussion about drugs in some countries around the world, noting that the data date back to 2013 with slight variations more or less. The relevance of this observation is just to remember that from 2013 until now, the US has changed its prohibitionist policy so that the data collected show shy evolution, so that currently much may already have evolved since then.

In the fourth chapter, the objective was to relate the theories raised in the second chapter (criminal theories), with the issues discussed in the third chapter (the drug problem).

Was based on the idea of ??legalization based on minimal assumptions of an act of criminal law only when such intervention is badly needed in order to settle the idea that the intervention of the criminal law on the issue of drugs, unfortunately, is a harmful intervention therefore created trafficking and drug dealer, with its attendant ills that most harm to society and public health as a whole (not just public health), than the actual drug itself.

Developed the idea that the drug problem in relation to the dealer, is treated many times the light of the theory of feindstrafrecht, fruit this perhaps the old policy of "war on drugs", which began in the 70s and that is slowly-fading, given that drug, contrary to what was thought in the west, was not and never had a direct relationship in the race of the cold war between the US and USSR. Also addressed to further the creation of the dealer with the ban.

In the fifth chapter, could not fail to analyze the current discussion in the brazilian Supreme Court about the decriminalization of drugs, exposing the votes of ministers gave its opinion: Minister Luis Roberto Barroso, Minister Gilmar Mendes and Minister Edson Facchin.

Finally, it was concluded that Brazil needs urgently due to the huge problem that the drug trade produces in our society, a new drug policy, and that legalization is a way out of this problem, due to the fact that precisely is the prohibition, not the drugs themselves, which creates the dealer and all correlative crime exponentially damaging public health, the standard claims to protect.

So, the interference of criminal law in the matter of drugs, would be corrected by a legalization policy, weakening the power and, quite possibly, annihilating the existence of the dealer, would not survive against the legalization. The aim of this study, therefore, is to demonstrate that the ban was who created, and who is maintaining the existence of the dealer, with all related crime.

Key - words: Penal Abolitionism, Minimalism Criminal, Criminal Law of the Enemy, Legalization of drugs, Drug Trafficking, history of drugs.

1 INTRODUÇAO

1.1 DELIMITAÇAO DO TEMA E FORMULAÇAO DO PROBLEMA

Esse capítulo aborda os elementos que se mostram essenciais à elaboração da pesquisa monográfica, desde a delimitação do tema até os conceitos operacionais, requisitando para isso dedicação e profundidade no estudo, como condição fundamental para a dinâmica da pesquisa monográfica.

1.1.1 DELIMITAÇAO DO TEMA

O presente trabalho busca analisar a nefasta interferência que o direito penal produziu e continua produzindo ao tentar resolver a problemática das drogas à luz desse ramo do direito. Sabemos que o direito penal é ramo do direito meio mais poderoso e violento que o Estado dispõe, penalizando indivíduos apenas quando estes atentam contra os bens jurídicos mais importantes.

Assim, devem ser procurados os outros ramos do direito para solucionar os conflitos sociais, antes de procurar a tutela penal. Esta somente deve ser posta em prática quando o bem jurídico violado é demasiado importante, de modo que qualquer outro ramo do direito não consiga protegê-lo de forma adequada.

Assim, no que tange à questão das drogas, o Brasil, a reboque de uma política fracassada de âmbito mundial, vem há muito tempo tratando esse problema à luz do direito penal, e suas consequências são vistas a todo o momento, com uma criminalidade conexa e poderosa.

Trata este trabalho, portanto, da legalização das drogas como meio possível de combate ao narcotráfico, pondo fim a tal "guerra às drogas", entendendo ser o tráfico subproduto da política proibicionista. O foco deste trabalho está no combate ao narcotráfico através de uma política de legalização, com foco na teoria do direito penal mínimo (entendida no âmbito da contração penal) como marco teórico.

1.1.2 FORMULAÇAO DO PROBLEMA

Para corroborar a natureza do tema proposto e motivar a investigação, lançam-se primeiramente algumas indagações, como: O traficante é um produto (fruto) da política proibicionista? Que consequência o problema do tráfico traz para toda sociedade? Quais consequências que da legalização das drogas irão surtir no poder dos traficantes? De que modo o direito penal mínimo pode servir como marco teórico à proposta de legalização?

1.1.3 JUSTIFICATIVA

O presente trabalho busca abordar um tema atualmente muito discutido, que vai desde conversas informais, a debates presidenciais, que é a mudança de paradigma no combate às drogas. Apesar de ainda ser um tabu, o tema conquista espaços cada vez maiores, tendo em vista o aumento da criminalidade relacionada ao tema, incluindo a presença de menores. A repercussão aumentou ainda mais com o RE 635.659 no STF, que, atualmente, está discutindo acerca da descriminalização contidano art.28 da Lei 11.343 (Lei de Drogas).

A criminalidade aumenta, e a presença de menores em crimes direto ou correlatos ao tráfico de drogas aumenta concomitantemente, demonstrando um fracasso da política criminal utilizada. Porém, até neste início de século, por mais que o fracasso da política proibicionista fosse uma realidade não apenas no Brasil, difícil era mudar de paradigma, frente à imposição estadunidense que forçava todos demais países a seguir uma política de combate às drogas, segundo o modelo bélico repressivo por este imposto, por motivações ideológicas, que será abordada ao longo deste trabalho.

Porém, nesta segunda década deste novo século, a mudança de paradigma que vem sofrendo dentro dos Estados Unidos, uma mudança vinda de "baixo para cima", pois alguns Estados Americanos estão adotando postura descriminalizante e até mesmo legalizante em relação às drogas, seja para fins medicinais ou recreativos, está deixando o restante do mundo vivenciar neste exato momento, uma oportunidade única de rediscutir o tema das drogas sem interferência da política estadunidense, visto que até mesmo este está possibilitando aos seus estados membros discutirem o tema livremente.

Frente a isso, este trabalho buscou discutir o tema das drogas à luz da teoria do minimalismo penal, esta entendida aqui, no âmbito da contração penal (deflação legislativa penal), e não um direito penal simbólico, tendo o direito penal cuidando apenas dos bem jurídicos considerados mais importantes, e rediscutindo a política de drogas sob uma perspectiva de legalização, para assim vermos um direito penal mais atuante (mínima impunidade), e cuidando estritamente dos crimes de grande monta, que provocam grave lesão a bens jurídicos de relevância penal.

Buscou-se ainda, comentar brevemente a teoria do direito penal do inimigo, pois esta pode ser utilizada pelos defensores da continuidade da proibição e o aumento do modelo repressivo, tendo o traficante como inimigo eleito, de modo que procurou-se demonstrar que tal teoria não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, em especial com os princípios constitucionais da nossa Carta Magna de 1988.

Dessa forma, o objeto de estudo em análise mostra-se em consoante conexão com problemas da atualidade, da problemática penal, da problemática policial e, dessa forma, provocando argumentos prós e contras à legalização.

Argumentos favoráveis à legalização têm em vista que o combate bélico às drogas não surtiu efeito. Pelo contrário, apenas fez criar um "Estado paralelo" ao poder central, através do mando do traficante que coordena todo esse processo, que culmina na delinquência e corrupção de menores, no crime de lavagem de capitais, pois inúmeros são os empresários envolvidos no sistema e que lavam dinheiro oriundo do tráfico em seus negócios lícitos, e também contribui maciçamente para a corrupção política que muito assola nosso país na atualidade, pois dinheiro oriundo do tráfico é dinheiro que "entra limpo" na campanha de candidatos, tendo em vista que não está sujeito a prestação de contas.

Acredita-se que a proibição, em maior ou menor grau, não inibe o consumo, tendo como único resultado o inflacionamento das drogas, o que é diferente de redução de consumo. Essa visão está próxima do ideal minimalista de direito penal (esta entendida no âmbito da contração penal neste trabalho), de modo que o direito penal somente atua para proteção de bens jurídicos de grande relevância, fazendo, portanto, perceber que, no delito de drogas, essa proteção não ocorre, o que acaba por não justificar a proibição dentro desta teoria, já que o bem jurídico teoricamente tutelado (saúde pública) não o é na prática com a proibição.

Ainda, tendo o direito penal como um de seus princípios a subsidiariedade ("ultima ratio"), só deve intervir quando outros ramos do direito não puderem fazê-lo de modo adequado, e quando essa interferência for legítima e eficaz.

Este trabalho tem como objetivo demonstrar, justamente, o quão ineficaz é a interferência do direito penal na questão das drogas, demonstrando as consequências que o direito penal trouxe, e a problemática vivida atualmente no Brasil por conta desse fato ser considerado delito. Este trabalho dedicou-se, ainda, a pesquisas bibliográficas e pesquisas na internet, buscando sempre fundamentar uma teoria ou outra e enriquecendo os temas abordados.

1.1.4 OBJETIVOS

1.1.4.1 Objetivo Geral

Analisar a interferência do Direito Penal na questão das drogas, com a criação do traficante e toda carga de criminalidade direta e correlata oriunda da política proibicionista de drogas, discutindo a possibilidade de sua legalização como meio possível de combate ao narcotráfico.

1.1.4.2 Objetivos Específicos

a) Discorrer sobre as teorias penais como modelo de fundamentação para legalizar as drogas ou justificar a proibição.

b) Discorrer sobre o minimalismo penal, este entendido neste trabalho sob o âmbito da contração penal (deflação legislativa), como modelo de fundamentação da não atuação do direito penal na problemática das drogas.

c) Analisar o histórico do combate às drogas e como este problema vem sendo encarado desde o início do século passado até o momento atual em escala mundial.

d) Analisar os artigos 28 e 33 da Lei de Drogas (11.343/2006) e os embates doutrinários e jurisprudenciais a respeito.

d) Discorrer sobre a possibilidade da legalização das drogas como meio eficaz de combate ao narcotráfico.

2 TEORIAS DO DIREITO PENAL

 

Buscou-se, neste capítulo, relacionar as teorias penais atualmente debatidas, sem adentrar com muita profundidade no tema, pois o objetivo é, no quarto capítulo, correlacionar as teorias penais às diferentes visões acerca da problemática das drogas sob o viés penal.

  • BREVE CONSIDERAÇAO SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO:

Segundo Moura e Vargas (2009, p.2), o Direito Penal do Inimigo é uma hipótese lançada por Gunther Jakobs, doutrinador alemão, que sustenta tal teoria desde 1985, com base nas políticas públicas que combatem a criminalidade internacional, bem como a nacional. Esta proposição da mesma forma passa a ser conhecida como direito penal de terceira velocidade.

Na visão do doutrinador, existem dois tipos de criminosos, sendo que o primeiro é o criminoso cidadão, que pratica um delito por um fator qualquer, e o segundo é o criminoso inimigo, aquele que atenta diretamente contra o Estado, separando-se de maneira inalterável do direito e, assim, não seria justificável oferecer as garantias processuais e constitucionais.

Assim, o inimigo é considerado uma coisa, não sendo mais considerado um cidadão e nem um sujeito processual, pois quem não oferece segurança à sociedade não deve ser tratado como pessoa. Esta teoria fundamenta atualmente a forma como os EUA lidam com terroristas e justifica a base de Guantánamo, em Cuba, só para citar um exemplo.

Moura e Vargas (2009, p.5) afirmam que:

para Jakobs, tudo se reduz na consideração de pessoa ou não pessoa, de forma que para ele o inimigo não é uma pessoa, visto que o indivíduo não se manteve num Estado Democrático de Direito, não podendo participar dos benefícios dado ao conceito de pessoa. [...] Jakobs propõe um direito diferenciado a pessoas de alta periculosidade, visto que, para estas, o direito penal do cidadão não se faz eficaz, assim, desta forma, os inimigos seriam os sujeitos criminosos, que cometem delitos de ampla crueldade, como crimes econômicos, crimes organizados, infrações penais perigosas, crimes sexuais, bem como terroristas.

Como se observa, a teoria do direito penal do inimigo propugna pela relativização dos direitos fundamentais naqueles considerados inimigos do Estado. Propõe, portanto, um direito penal de terceira velocidade, com relativização das garantias fundamentais e aplicação de pena privativa de liberdade.

Jackobs remonta ao pensamento clássico, contratualista do século XVIII, que fundamenta a existência do Estado no pacto social, como algo criado de comum acordo entre os co-cidadãos antes mesmo da existência da sociedade civil, doutrina de grande relevância para a época (século XVIII), embora muitos historiadores afirmem ser o contratualismo uma situação hipotética, e jamais um fato histórico. É importante essa teoria, pois vem a fundamentar a legitimação do poder pelo povo, pois, se os co-cidadãos decidem criar o Estado, logo estes são os titulares do poder, e não um rei cuja legitimidade se baseava em fundamentação religiosa, por vontade divina.

Assim, essa teoria clássica baseia-se também na autodeterminação do indivíduo para praticar ou não um delito, sendo este uma escolha de livre vontade. Porém, mesmo entre os contratualistas, diz Rousseau (2007 p. 26-27):

a guerra não é pois uma relação de homens, porém de Estado com Estado; só acidentalmente nela são inimigos os particulares, não como homens ou mesmo cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como defensores dela. Todo Estado, enfim, só pode ter por inimigo outros Estados, e não homens, visto que entre coisas de diversa natureza não há verdadeira relação. (Grifo nosso).

Continua ainda Rousseau (2007, p.27), "o estranho que furta, mata ou prende os vassalos sem declarar guerra ao príncipe, ou rei, ou particular, ou povo, não é um inimigo, mas um ladrão".

Dessa forma, podemos deduzir que, para Rousseau, ao contrário de Jackobs, não pode haver um inimigo do Estado enquanto criminoso apenas o for, não importando qual crime o tenha praticado, mas apenas o será quando este for agente nacional ou de outro Estado, com a finalidade de destruir a soberania deste, diversamente de Jackobs, para quem o agente é considerado inimigo por ameaçar o sistema. O direito penal do inimigo muda o caráter do direito penal do fato para o direito penal do autor, privilegiando o autor que comete o delito em detrimento do crime em si.

É importante observar que alguns entendem que Rousseau afirma que, qualquer pessoa que atente contra o "pacto social", merece ser excluído do convívio dele, de modo que seu trabalho desperta conclusões distintas. Segundo Moura e Vargas (2009, p.5), a teoria do direito penal do inimigo entende que o inimigo deve ser punido baseado na sua periculosidade e não na sua culpabilidade.

Para Moura e Vargas (2009, p.4), temos como principais características do direito penal do inimigo:

a antecipação de punibilidade com a tipificação de atos preparatórios, criação de tipos de mera conduta e perigo abstrato; desproporcionalidade das penas; restrição de garantias penais e processuais e determinadas relegações penitenciárias ou de execução penal, como o regime disciplinar diferenciado recentemente adotado no Brasil.

Portanto, no direito penal do inimigo, percebe-se que o direito penal seria um instrumento público a serviço do Estado para fins de mitigação de direitos fundamentais aos "inimigos", e não uma medida de "ultima ratio", de intervenção mínima, que deveria atuar somente quando comprovada a necessidade pela inércia dos demais "ramos" do direito, cuja função é limitar o poder incriminador do Estado, e o objetivo primordial deveria ser a proteção dos direitos humanos, fixando como crime apenas aquelas condutas que ofendessem objetivamente determinado bem jurídico.

Assim, o direito penal do inimigo se configuraria, portanto, como sendo um modelo de direito penal parcial, através do qual se pune de forma antecipada e mais rigorosamente aqueles considerados "inimigos", restringindo-se a liberdade, tanto a de agir quanto a de pensar.

Diferentemente pensa Greco (2013, p.2), afirmando que "a finalidade do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes e necessários para a própria sobrevivência em sociedade". Ainda nas palavras de Greco (2013, p.47):

o princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a especial atenção do Direito Penal, mas se presta também, a fazer que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste principio que os bens jurídicos são selecionados para permanecer sob tutela do direito penal, porque considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador atento às mutações na sociedade, que com sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior relevância, fará retirar do nosso ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.

Logo, para Greco, o direito penal deve, portanto, interferir o menos possível na vida em sociedade, devendo ser solicitado somente quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para a proteção de determinado bem jurídico.

Vemos ainda que, para o direito penal do inimigo, o indivíduo é tratado como meio para um fim, e não um fim em si mesmo, pois, ao preterir o direito penal do fato e enaltecer um direito penal do autor, o individuo (autor) é tido como um instrumento a ser penalizado, pois não é o fato criminoso em si que justifica a pena, mas a periculosidade do agente.

Dessa forma, o grande bem tutelado na visão de Jackobs é a norma, e somente de modo indireto bens jurídicos. O problema é que poderia existir a instrumentalização do indivíduo, pois, se a norma é o grande bem tutelado, aqueles que agirem em desacordo com ela deveriam ser excluído do pacto social.

Poderia essa premissa atacar o princípio da dignidade humana, pois, com base nele, aduzindo o grande filósofo Immanuel Kant, justamente se impede através da dignidade humana que o homem seja utilizado como meio para um fim, mas que seja um fim em si mesmo.

Tal teoria formulada por Kant serviu de fundamentação à teoria retributiva da pena (pena justiça). Nas palavras de Kant (apud QUEIRÓZ, 2005, p.20), "o homem é o fim de todas as coisas", sendo essa a premissa para a dignidade humana em Kant. Logo, a aplicação do direito penal do inimigo no Brasil encontra barreiras, por atacar diretamente princípios constitucionais. Para citar um exemplo na própria CF:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (BRASIL, 1988).

Pode-se observar o princípio da humanidade (Dignidade Humana) em diversos momentos, sobretudo no artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal.

Todavia, explicam Moura e Vargas (2009, p.7), que o direito penal do inimigo justifica a não aplicação desta e de muitas outras garantias constitucionais, como, por exemplo, não ter o agente o direito de entrevista com o advogado, pois, aos adeptos deste direito, cabe ao Estado não adotar suas garantias.

Revela ainda o direito penal do inimigo que, contra o agressor, não se justifica um procedimento penal (legal), mas sim, um procedimento de guerra. Deste modo, a Constituição pátria é nitidamente contrária a qualquer tratamento diverso do respeito devido à pessoa humana. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com devido respeito à dignidade inerente ao ser humano.

Faz-se de suma importância destacar outro princípio constitucional, consagrado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (BRASIL, 1988).

Assim, não é possível falar em um direito para o "inimigo" e outra espécie de direito para o "cidadão". Ainda, no tocante ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, evidente a conjuntura do valor da dignidade da pessoa humana como princípio superior, fundamento de um Estado democrático de direito.

Discorrendo acerca da impossibilidade de direito diferenciado para "inimigo" e "cidadão", aduz Marmelstein (2014, p.189) que:

há uma grande parcela da sociedade que não vê os direitos fundamentais com bons olhos. Imagina-se que eles protegem apenas criminosos. Costuma-se dizer que cidadãos "de bem" não precisariam de direitos fundamentais. Ou então que apenas os "humanos direitos" mereceriam ser titulares de "direitos humanos". Essa visão é extremamente equivocada. Primeiro, porque reduz os direitos fundamentais às garantias do processo penal [...] segundo, porque acredita que seja possível dividir a sociedade em mocinhos e bandidos, quando muitas das vezes são os tais "humanos direitos" que oprimem, discriminam e, como consequência, geram num efeito bumerangue, a violência que tanto o assusta. (Grifo nosso).

Para Silva (2013, p.107) "a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida". Já Piovesan (2013, p.88) afirma que:

dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º,III). Vê-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de direito com os direitos fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático, tendo em vista que exercem uma função democratizadora.

Segundo Pilati (2011, p. 35-37):

os fundamentos jusfilosóficos da teoria, segundo escreve Jakobs, estariam em autores contratualistas como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant. Para estes, o delinquente que infringe o contrato social não pode usufruir dos benefícios do Estado. Rousseau e Fichte, porém, entendem que qualquer indivíduo que infringe a lei deixa de fazer parte do Estado, enquanto para Hobbes e Kant apenas os autores de crimes graves devem ser excluídos. Jakobs observa que seu pensamento assemelha-se mais com o entendimento destes dois últimos filósofos: "Hobbes e Kant conhecem um direito penal do cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio – e um direito penal do inimigo contra quem se desvia por princípio". [...] A proposta político-criminal de Jakobs carrega a concepção simbólica da pena. Sua obra "Direito penal do inimigo: noções e críticas" discorre sobre dois aspectos da pena: como coação e como segurança. A pena como coação seria portadora de um significado simbólico, ou seja, de que o fato criminoso é irrelevante e que a norma segue sem modificações. O crime seria visto como o ato de uma pessoa racional, que desautoriza a norma. A pena/coação afirmaria que a lei continua vigente, mantendo-se a configuração da sociedade.

Zaffaroni (apud PILATI 2011, p. 40) acrescenta que:

o conceito de inimigo é incompatível com o Estado de Direito. O hostis, pelo contrário, reclama um Estado Absoluto. As consequências da admissão do inimigo são aquelas registradas por Carl Schmitt, ou seja, a suspensão da Constituição nas emergências, instalando-se uma ditadura jurídica.

Importante ainda observar ainda que, para Pilati (2011, p.41), por outro lado, não se pode falar que o poder punitivo em exercício na América Latina reproduz o direito penal do inimigo. Isto porque a proposta de Jakobs é muito mais limitada do que já acontece nessa região. Na verdade, o âmbito de aplicação da teoria do autor alemão são os países centrais.

Portanto, a adoção ao direito penal do inimigo poderia estar em contradição à Constituição brasileira, pois afronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, tratando criminosos como inimigos do Estado e produzindo, assim, um direito baseado, não na punição por fatos delituosos, mas num sistema penal voltado ao autor, aferindo-se principalmente sua periculosidade.

2.2 O ABOLICIONISMO PENAL ENQUANTO CRÍTICA PENAL

O discurso penal agrada a sociedade. Vemos, no atual momento, legisladores com discursos ferozes pró-aumento da repressão penal, repercutindo em votos a seu favor, e apresentadores televisivos disputando pontos de audiência com o discurso do direito penal mais rigoroso para "vagabundo", e que se valem disso para chamar atenção e conquistar aderência do público.

Todos atuando num discurso do direito penal máximo, pois a sociedade não pode ser refém do "vagabundo". E, nas palavras de Greco (2011, p.5), "a disputa por pontos de audiência transformou nossa imprensa num show de horrores que, por mais que possamos repugná-lo, gostamos de assisti-lo diariamente".

Em sentido oposto caminha o discurso do abolicionismo penal, que, apesar de não obter simpatia do público, merece ser estudado e compreendido, dada sua importância e seus argumentos, que enriquecem a compreensão da finalidade do direito penal e sua devida aplicação prática, ainda que ao final se possa discordar dela, porém teoria extremamente válida como crítica ao direito penal.

Podemos perceber claramente que o direito penal é de todos os ramos do direito, o mais forte, mais rigoroso, mais cruel, pois ataca diretamente a liberdade do indivíduo. Porém, Greco (2011, p.6) afirma que somente caem nas garras do direito penal, aqueles indivíduos menos favorecidos, demonstrando a seletividade do direito penal. Em suas palavras:

certo é que o direito penal tem seu público-alvo. Nem todas as pessoas farão parte de sua "clientela". Aqueles que militam nessa seara podem testemunhar, com segurança, que o direito penal tem cor, cheiro, aparência, classe social, enfim, o direito penal, também como regra, foi feito para um grupo determinado de pessoas, pré-escolhidas para fazer parte do show.

A verdade é que, no Brasil, prefere-se o Estado Penal ao Estado Social, de modo que não se percebe que investimentos na área social são verdadeiros inibidores de criminalidade, investimentos no ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo.

Dornelles (apud GRECO 2011, p.13): afirma que "O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o Estado Penal. É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria".

Vemos, assim, que o estado mínimo neoliberal possui inúmeros defeitos, como qualquer sistema possui, porém, adota-se nestes Estados com maior medida um direito penal mais rígido, e, por muitas vezes, direito penal do inimigo, pois, o rigoroso punitivismo nestes Estados procura esconder as mazelas e defeitos que são oriundos do próprio sistema em si.

A criminalidade acaba sendo o meio pelo qual se manifestam os defeitos sistêmicos que, por muitas vezes, o direito penal procura esconder. Interessante salientar que até mesmo a União Soviética, para esconder seus problemas, também se utilizava largamente do direito penal, permitindo inclusive analogia in malam partem.

Desse modo, perfaz-se necessário um Estado Social, que garanta condições mínimas de dignidade a todos, com recursos na educação, lazer, moradia, cultura, dentre outros, de modo que isto reverta-se em condições mínimas para o indivíduo inserir-se na vida social e excluí-lo da criminalidade.

Temos aí o problema da efetivação de direitos fundamentais positivos, como os que constam no artigo 6º de nossa Carta Magna. É mais fácil o estado cumprir e efetivar direitos fundamentais negativos (um não fazer – como exemplo o art. 5º CF), do que efetivar direitos fundamentais positivos (Art. 6º CF), pois exige um "agir, um fazer", que requer recursos por parte do estado para tal efetivação.

Desse modo, a teoria abolicionista traz à tona a discussão acerca da eficácia do direito penal como solucionador dos conflitos sociais e como ressocializador do indivíduo delinquente. O direito penal, portanto, muito possivelmente possui caráter seletivo (tem clientela definida), isso ficando evidenciado quando vê-se punidos fatos de bagatela, por um lado, e a impunidade dos crimes do colarinho branco por outro. Um bom exemplo é o art.16 do Código Penal:

Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (BRASIL, 1940)

Vemos, portanto que, caso seja reparado o dano ou restituída à coisa, o agente criminoso tem sua pena reduzida. Agora nos casos de crimes tributários a recíproca não é verdadeira. A lei 9.249 de 26 de dezembro de 1995 trouxe a lume a possibilidade de extinção da punibilidade do agente, nos crimes tributários, caso o pagamento do tributo ou contribuição social fosse feito antes do recebimento da denúncia. Dispõe seu artigo 34 que:

Art. 34: Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na lei 4.729, de 14 de junho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia. (BRASIL, 1995)

A Lei 12.382/11 estendeu este benefício à hipótese desta dívida ser paga de forma parcelada, suspendendo o "jus puniendi". Diz a referida lei (BRASIL, 2011):

Art. 6º: O art. 83 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 1o a 5o, renumerando-se o atual parágrafo único para § 6o:

§ 2o É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.

§ 3o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§ 4o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. (Grifo nosso).

Dessa forma, vemos como o sistema penal escolhe sua clientela, pois, ao furtar um relógio, por exemplo, e devolvê-lo, o agente tem sua pena diminuída, mas se sonegar milhões e indiretamente matar milhares de pessoas que necessitavam de tais recursos para o bom funcionamento do aparelho estatal a políticas sociais como saúde, por exemplo, o agente tem o benefício da extinção da sua punibilidade, de modo que o direito penal trata desigualmente classes sociais distintas.

Isso tudo demonstra, à luz da teoria abolicionista, a injustiça do sistema penal, e como o direito penal também não é capaz de cumprir as funções atribuídas às penas (reprovação e prevenção), sem falar da cifra negra, que nada mais é do que as infrações penais que não foram objeto de persecução pelo Estado ou que nem mesmo chegaram ao conhecimento de seus órgãos oficiais.

Assim, nem todo delito é denunciado, nem todos os delitos denunciados chegam ao registro pelos órgãos públicos, nem todos os delitos denunciados e registrados são objetos de investigação, e por fim, nem todos os delitos denunciados, registrados e investigados, acabam sendo condenados, de modo então que a teoria abolicionista acredita que há uma verdadeira deslegitimação da atuação do direito penal.

Assim, para a teoria abolicionista, o direito penal encontra-se deslegitimado, pois não satisfaz as necessidades para os quais existe. A crítica abolicionista traz, ainda, o problema das prisões e o funcionamento das penitenciárias. Importante salientar o caráter moral religioso que em nada contribui para a ressocialização do indivíduo delinquente, vez que o próprio nome, "penitenciária", advém do conceito de penitência, como se o preso, ao passar seus dias enclausurado, fosse redimir-se com Deus de seus pecados e, desse modo, não voltaria mais a delinquir.

Esse pensamento de purgação do pecado do crime através do enclausuramento foi uma grande evolução frente aos métodos do passado, que purgava a pena do indivíduo com o corpo e, desse modo, passou a pagar sua pena com a liberdade. Porém, nos dias atuais, é difícil justificar ou encontrar alguém que justifique a pena como forma de expiação de pecado.

Marmelstein (p. 274) afirma que, no Brasil, as cláusulas pétreas (art. 60 §4º, CF) não podem ser suprimidas, pois, conforme o artigo mencionado, não pode ser objeto de deliberação as propostas de emenda constitucional tendentes a abolir "os direitos e garantias individuais".

Assim, como não existe pena perpétua, todos presidiários um dia estarão livres novamente. E aí se tem que pensar que tipo de indivíduo está retornando ao convívio social, pois, se este indivíduo não foi ressocializado, a tendência é que volte pior do que quando entrou, pois a prisão não ressocializa, mas dessocializa, e é uma verdadeira escola do crime, tornando a reincidência uma realidade quase certa, e fazendo novos indivíduos tornarem-se vítimas do delinquente não reinserido do modo adequado.

Greco (2011, p.10), afirma que:

quando o Estado consegue fazer valer seu Jus Puniendi, com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, essa pena não cumpre as funções que lhe são conferidas, isto é, as funções de reprovar e prevenir o delito. Além do mais, aquelas condutas que foram selecionadas pelo Estado, de acordo com um critério político [...] poderiam muito bem, acaso geradoras de conflitos, merecer atenção somente dos demais ramos do ordenamento jurídico, principalmente do direito civil e do direito administrativo, preservando-se desta forma, a dignidade da pessoa humana, que não se encontraria na estigmatizante condição de condenada pela Justiça Criminal.

Nas lições de Queiróz (2005, p.89-90):

 

O sistema penal é incapaz de prevenir, por meio da cominação e execução de penas, quer em caráter geral, quer em caráter especial, a prática de novos delitos [...] Salienta-se assim, que a despeito da incriminação, o aborto, o homicídio, o uso e tráfico de entorpecentes, etc, se repetem sistematicamente como se tal proibição simplesmente não existisse, não se abstendo os potenciais infratores da prática de tais crimes pelo só fato de existir uma norma penal incriminadora. A só reincidência desmentiria a função preventiva ou dissuasiva da norma penal. A prevenção geral, portanto, não se confirma, sendo desacreditada a todo momento, servindo à só legitimação do discurso e da atuação do sistema.

Queiróz (2005, p.89-100) elenca algumas características que servem de críticas ao sistema penal. De modo sucinto:

a) O sistema penal não é capaz de prevenir, quer em caráter geral ou especial, a prática de novos delitos;

b) O sistema penal é arbitrariamente seletivo, escolhe sua clientela e é produtor e reprodutor de desigualdades;

c) O sistema penal opera à margem da legalidade, viola Direitos Humanos pelo próprio sistema, pois o direito penal criminaliza uma série de condutas e os órgãos incumbidos de sua repressão possuem uma capacidade muito inferior à demanda, ou seja, o sistema penal é programado para não funcionar.

Zaffaroni (apud QUEIRÓZ 2005, p.94) afirma que:

a disparidade entre o exercício do poder programado e a capacidade operativa das agências é abismal, e por outra parte, se se desse a inconcebível circunstância de que seu poder se incrementasse até chegar a corresponder a todo exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de penalizar várias vezes a toda população.

d) O sistema penal apenas intervém em situações excepcionais, as cifras ocultas (cifra negra) consomem a maioria dos delitos praticados, pois é irrisória a quantidade de crimes que o sistema penal consegue apurar e punir, sendo que a grande maioria dos delitos sequer chega ao conhecimento dos órgãos responsáveis, e quando chegam poucos são de fato punidos.

e) Reificação (coisificação) do conflito, pois há uma neutralização da vítima no sistema penal. A Vítima no processo penal é duplamente perdedora: em primeiro lugar, frente ao infrator, em segundo frente ao Estado, pois está excluído de qualquer participação em seu próprio conflito.

f) O crime carece de consistência material. Ressalta-se que, sob a etiqueta de "delito", agrupa-se toda uma série de comportamentos que nada têm em comum (exceto o fato de estarem criminalizados). A criminalidade, sob essa perspectiva, não existe por natureza, senão que é mais exatamente uma realidade socialmente construída.

g) O sistema penal intervém sobre pessoas, e não sobre situações. Todo sistema penal gira em torno da ideia de culpabilidade individual, desprezando por completo o ambiente ou sistema social em que se insere. Culpam-se os indivíduos, ignoram-se os sistemas, as estruturas sociais.

h) O sistema penal intervém de maneira reativa e não preventiva. O Direito Penal sempre intervém quando as consequências das infrações já se produziram, mas não efetivamente para evitá-las. Tem efeito, portanto, simbólico, pois as consequências da violência não podem ser eliminadas efetivamente, mas apenas simbolicamente, pela aplicação de sanção penal.

i) O sistema penal só atua tardiamente. O resultado da intervenção do sistema de justiça criminal (a sentença e a execução) não é imediatamente posterior à prática do crime. Muitos delitos duram quase década para serem julgados.

j) O sistema tem uma concepção falsa de sociedade. O sistema penal supõe, e supõe falsamente, um modelo consensual de sociedade, onde todos reprovam de forma unânime os comportamentos definidos como delituosos. Têm-se, portanto, uma concepção dicotômica de sociedade: tudo é acordo ou desacordo, bom ou mau. Logo, representa uma negação do pluralismo necessário nas sociedades, cujos interesses não raro se conflitam.

k) A lei penal não é inerente às sociedades. Antes do estabelecimento da lei penal, havia outras formas de resolver os conflitos, como a lei civil.

l) O sistema penal intervém sobre os efeitos e não sobre as causas da violência.

A teoria abolicionista, apesar de fazer uma crítica ao direito penal, e desvendar suas fragilidades, não explica ou não soluciona o problema de como reprovar e prevenir o crime de modo eficaz.

É neste contexto que surge então o minimalismo penal. Existem vários tipos de minimalismo, porém o enfoque deste trabalho é o minimalismo enquanto contração do âmbito de atuação do direito penal, protegendo bens jurídicos de maior relevância.

2.3 BREVE CONSIDERAÇAO SOBRE MINIMALISMO PENAL

Os adeptos dessa concepção creem que o direito penal serve somente para proteger os bens jurídicos mais importantes (homicídio, estupro, latrocínio, por exemplo), necessários e vitais ao convívio em sociedade, aqueles bens que, pela sua importância, não conseguem ser protegidos por outros ramos do direito.

Situa-se essa teoria num meio termo entre abolicionismo e teorias como movimento "lei e ordem". Assim sendo, o Direito Penal deve atuar somente sobre bens jurídicos que, de nenhum modo, outros ramos do Direito (Direito Civil, Direito Administrativo, por exemplo) consigam proteger de modo eficaz.

Existem vários tipos de minimalismos, sendo o deste trabalho aquele que propõe a contração da atuação penal apenas para proteger bens jurídicos mais relevantes. Porém, existem outros, por exemplo, o defendido por Zaffaroni (apud QUEIROZ 2005, p.101) em que afirma que "o direito penal mínimo é uma proposta que deve ser apoiada por todos que deslegitimam o sistema penal, porém não como meta insuperável, mas como passo ou trânsito ao abolicionismo".

Dessa forma, ao contrário do que hoje vemos ocorrer no Congresso, deveríamos ter uma deflação do direito penal, e não uma Inflação, como ocorre. Todos os dias novas leis penais são criadas, penas são majoradas e, de acordo com o direito penal mínimo, deveria haver justamente o oposto, pois, não é a ameaça de pena que inibe a criminalidade, mas a certeza de punição.

Conforme Beccaria (apud GRECO 2011, p.16) "A certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade".

Percebemos claramente as varas criminais abarrotadas de processos que levam quase décadas para serem julgados, e a deflação legislativa penal contribuiria a um processo mais célere, respeitando o devido processo legal e todas as garantias constitucionais, e ao mesmo tempo contribuiria para um desafogamento do sistema penitenciário, que hoje em quase todos locais está com a lotação máxima extrapolada.

Crimes contra a honra e contravenções penais, só para citar como exemplos, deveriam de imediato ser abolidos do âmbito penal, pois, de acordo com o princípio da subsidiariedade (subespécie de intervenção mínima), outros ramos do direito podem muito bem proteger este bem jurídico, como o direito civil.

Aliás, em casos de crimes contra a honra pode haver a retratação do agente em âmbito processual, acarretando extinção da punibilidade (art.107,VI CP), o que torna a ação penal apenas um desgaste processual inócuo, podendo desde logo resolver tal litígio em âmbito civil.

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:

I - pela morte do agente;

II - pela anistia, graça ou indulto;

III - pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso;

IV - pela prescrição, decadência ou perempção;

V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;

VI - pela retratação do agente, nos casos em que a lei a admite;

IX - pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei.

(BRASIL, 1940, grifo nosso).

Importante salientar que isso não impede, dentro da perspectiva minimalista, que se amplie em alguns casos a intervenção penal, desde que absolutamente necessária à proteção de interesses sociais fundamentais.

E vários são os dispositivos que merecem análise para serem descriminalizados, e tais conflitos passarem a serem resolvidos em outros ramos do direito, de modo que o direito penal protegeria assim bens jurídicos de maior relevo, não resolvidos por outros ramos do nosso direito.

O raciocínio do direito penal mínimo implica a adoção de vários princípios que o legislador deve ater-se no momento da criação e revogação de leis penais e aos aplicadores da lei penal, para que se produza uma correta interpretação.

Importante sempre lembrar que, no conflito entre princípios e regras, ambos espécie de normas, há a prevalência dos princípios, de modo que demonstra-se sua importância jurídica.

Essa é uma inovação do direito constitucional moderno, que supera o positivismo jurídico e, após a Segunda Guerra Mundial, vemos então um novo movimento constitucionalista: o pós-positivismo, onde princípios ascendem à condição de norma, que se torna gênero que tem como espécies os princípios e as regras (lei em sentido estrito). No conflito aparente de normas, haverá prevalência do princípio sobre a regra.

Segundo Marmelstein (2014, p.11):

essa nova concepção, ao contrário do que possa parecer, não abre mão do direito positivo. A norma continua sendo o principal objeto de estudo do jurista. No entanto, a norma, para o operador do direito, deixa de ser "neutra", passando a conter forte ideologia, de modo que princípios como a dignidade humana, da igualdade, solidariedade, autonomia da vontade, liberdade de expressão, livre desenvolvimento da personalidade, legalidade, democracia, seriam tão vinculantes quanto qualquer outra norma jurídica. A observância desses princípios não seria meramente facultativa, mas tão obrigatória quanto a observância das regras/leis. E o mais importante: as regras/leis somente seriam válidas se estivessem de acordo com as diretrizes traçadas nos princípios, reforçando uma ideia atualmente aceita de que os princípios possuem uma função de fundamentação e de legitimação do ordenamento jurídico. (Grifo nosso).

Sobre a prevalência dos princípios, ainda, aduz Gomes (2015, p.8):

Qual o valor jurídico dos princípios? Os princípios não são apenas um conjunto de valores ou de prescrições éticas ou programáticas. São normas jurídicas de caráter cogente. De outro lado, a eficácia prática dos princípios irradia-se não só ao momento legislativo de elaboração da norma penal (quando o legislador cria a lei penal), senão também ao aplicativo e interpretativo (nem o intérprete nem o juiz podem ignorá-los), bem como no momento executivo (no momento da elaboração de políticas preventivas assim como quando se vai concretizar o comando sancionador contido na sentença condenatória, ou seja, no momento da execução da pena). (Grifo nosso).

Dentre os princípios constitucionais penais indispensáveis a este raciocínio, destacam-se: a dignidade da pessoa humana, intervenção mínima, lesividade, adequação social, insignificância, individualização da pena, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, limitação das penas, culpabilidade e legalidade. Fazendo uma breve abordagem sobre tais princípios, segundo Greco (2011, p.30-35):

a) Dignidade da Pessoa Humana: Este princípio fundamenta os direitos e garantias fundamentais insculpidas em nossa constituição. Serve de base a todo ordenamento jurídico e deve ocupar o centro das atenções do Estado, pois não há Estado Democrático de Direito sem haver, ainda que implicitamente, o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Está positivado no art.1º,III, da CF.

b) Intervenção Mínima: Este princípio é considerado o coração do direito penal mínimo, e sua missão é orientar o legislador quando da criação ou revogação dos tipos penais. Segundo Greco, "todo raciocínio correspondente ao princípio da intervenção mínima girará em torno da proteção dos bens jurídicos mais importantes existentes na sociedade, bem como a natureza subsidiária do Direito Penal".

c) Adequação Social: orienta o legislador tanto na criação quanto na revogação de tipos penais. Condutas que no passado eram consideradas socialmente inadequadas, se hoje já forem aceitas pela sociedade, farão com que o legislador afaste a criminalização.

d) Lesividade: este princípio é o terceiro passo para a criação de tipos penais. Por mais importante que seja o bem, que a conduta seja inadequada socialmente, somente poderá haver criminalização de comportamentos se a conduta do agente ultrapassar sua esfera individual, atingindo bens de terceiros.

e) Insignificância: a aplicação deste princípio conduz à atipicidade material do fato praticado. Se chegarmos à conclusão, mediante análise dos princípios anteriores, de que o patrimônio, por exemplo, é um bem importante a ponto de ser protegido pelo Direito Penal, devemos perguntar no caso concreto se o bem subtraído goza desse status.

f) Individualização da pena: previsto no art. 5º, XLVI da CF/88:

art. 5º, XLVI: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

c) multa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

(BRASIL, 1988, grifo nosso).

Através desse princípio, cada bem jurídico tutelado possui uma importância singular, que merece proteção na medida de sua importância, individualizando, portanto, a pena, que pode ocorrer tanto na fase de cominação, quanto de aplicação e até mesmo na execução.

g) Proporcionalidade: a pena deverá ser proporcional ao mal praticado. Está intimamente ligada à individualização da pena. Já dizia Beccaria (1996, p.39), "para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos e ditadas pela lei".

h) Responsabilidade Pessoal: também conhecido como princípio da pessoalidade ou intranscendência da pena, conforme art. 5º, XLV da CF/88: "Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido". (BRASIL, 1988).

i) Limitação das Penas: encontra fundamentação também na Constituição em seu art. 5º, XLVII: não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis. (BRASIL,1988). Tais proibições encontram fluidez também no princípio da dignidade da pessoa humana.

j) Culpabilidade: a ação do agente tem que ser passível de censura, agindo com dolo ou culpa.

k) Legalidade: fundamentação constitucional no art 5º, XXXIX e art. 1º do Código Penal: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este princípio também deve ser observado tanto na aferição formal (subsunção), quanto material, ou seja, deve o intérprete avaliar a legalidade formal e também a legalidade material, observando se o conteúdo da lei penal não contraria dispositivos principiológicos da Constituição. (BRASIL, 1988).

Portanto, num Estado verdadeiramente Democrático de Direito, não se admite que, em nome de uma "suposta Justiça", se violem direitos fundamentais e princípios. É equivocado pensar, como alguns pensam, que defender um direito penal constitucional, respeitando direitos e garantias fundamentais, é pactuar com a impunidade.

Marmelstein (2014, p.189), a respeito afirma que:

os direitos fundamentais não compactuam com a impunidade. Na verdade, esses direitos são instrumentos de proteção da dignidade humana e à limitação do poder. Logo, não podem servir justamente para acobertar as práticas criminosas que violem essa dignidade.

Vemos, assim, que a própria teoria dos direitos fundamentais não compactua com impunidade, de modo que é equivocado pensar dessa maneira. O que não se pode é jogar séculos de luta por concretização de direitos no "lixo", em nome de uma suposta Justiça, que na verdade está escondida sob o desejo de "Vingança".

O direito não pode jamais ser sinônimo de vingança num Estado verdadeiramente democrático. Estado não se vinga, apenas pune por fatos praticados e previstos como crimes, pois, conforme Queiróz (2005, p.111) "tão grave e importante quanto o controle da violência, é a violência do controle".

Como afirma Queiróz (2005, p.112-113):

naturalmente, porém, que direito penal mínimo, que é o mesmo que se dizer direito penal da Constituição ou conforme a Constituição, não é em si uma solução, mas parte da solução, pois o decisivo para o controle racional da criminalidade, a par da eficientização ou democratização do controle social não-penal é privilegiar intervenções estruturais (etiológica) e não simplesmente individualizadas e localizadas (sintomatológicas), sobretudo com vistas a melhorar as condições de vida das populações marginalizadas, por meio de políticas sociais de integração social do homem. Um direito penal mínimo não é só, portanto, um programa de um direito penal mais justo e eficaz; é também, sobretudo, parte de um grande programa de justiça social e pacificação dos conflitos. Assim postas às coisas, terá o direito penal um papel bastante modesto e subsidiário de uma política social de largo alcance, mas nem por isso menos importante. Uma boa política social ainda é a melhor política criminal (Mezger). Porque, no fundo, e como se vem demonstrar, segurança e proteção têm pouco a ver com a proteção penal ou com o aumento de sua carga repressiva, isto é, o controle da criminalidade tem, em verdade, pouco a ver com o controle penal (polícia, juízes etc.).

Dentro da visão do direito penal mínimo, o direito penal tem como finalidade a proteção de bens jurídicos. Conforme Greco (2013, p.2):

a finalidade do direito penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, ou, nas palavras de Luiz Regis Prado, "o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do direito penal radica na proteção de bens jurídicos essenciais ao indivíduo e a sociedade". Nilo Batista aduz que "a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena". A pena, portanto, é simplesmente instrumento de coerção de que se vale o direito penal para a proteção dos bens, valores e interesses mais significativos da sociedade.

Dessa forma, podemos considerar como possível, o entendimento de que o direito penal mínimo encontra consoante reflexo na Constituição. Seus princípios podem ser considerados princípios constitucionais penais, pois, conforme Gomes (2015, p.11):

Nossa Constituição legitima qual movimento de política criminal? O punitivista, o minimalista ou o abolicionista? Os princípios penais extraídos direta ou indiretamente de nossa Constituição Federal indicam a opção político-criminal (preponderante) pelo minimalismo penal (que vê o direito penal como conjunto de normas que limitam a liberdade assim como, ao mesmo tempo, o poder punitivo do Estado). Com isso fica refutado o abolicionismo penal (seja o moderado, seja o radical – Hulsman, Christie etc.; o abolicionismo radical afasta qualquer aplicação do direito penal, levando os conflitos para outras esferas de resolução, como a civil, administrativa etc.; o abolicionismo moderado propõe a abolição da pena de prisão, que seria mais nefasta que útil para o controle da delinquência). Mas entre a teoria e a prática há uma grande distância. Na prática se nota nitidamente uma tendência maximalista (uso máximo ou desproporcional do direito penal). Os princípios assim como os postulados político-criminais estão contemplados no texto constitucional e nos tratados de direitos humanos de forma expressa (princípio da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade etc.) ou implícita (exclusiva proteção de bens jurídicos, ofensividade do fato etc.) (Grifo nosso).

Desse modo, poderemos adiante vislumbrar que uma política criminal de drogas que esteja de fato comprometida com a saúde pública, e, ainda, comprometida com o fim do narcotráfico e da "guerra às drogas", encontrará fundamento de validade na teoria do direito penal mínimo, que, segundo alguns autores supramencionados, encontra consoante reflexo em nossa constituição. Abaixo, um breve histórico da proibição das drogas.

3: DROGAS: HISTÓRIA E QUESTÕES JURÍDICAS

Pretendeu-se neste capítulo compreender o histórico do combate às drogas e suas motivações, bem como a forma pelo qual a proibição criou o traficante e as mazelas sociais decorrentes do tráfico, além de analisar os artigos 28 e 33 da lei 11343/06 (Lei de Drogas), analisando aspectos doutrinários e jurisprudenciais acerca destes referidos artigos.

Por fim, buscou-se fazer uma análise da perspectiva das drogas pelo mundo, lembrando que os dados datam, em sua maioria, de 2013, ou seja, praticamente no início da mudança de paradigma dentro dos EUA, de modo que, na atualidade (2016), em muito já pode ter avançado acerca do tema tal discussão nos países mencionados.

3.1 HISTÓRICO DO COMBATE ÀS DROGAS.

Percebemos claramente que as drogas vêm sendo tratadas à luz do direito penal, sob a influência dos EUA, desde início do século passado. De acordo com Pedrinha (2013) afirma-se que, em sintonia com o modelo internacional de combate às drogas, capitaneado pelos Estados Unidos, o Brasil desenvolve ações de combate e punição para reprimir o tráfico.

Essa tendência, porém, vem desde os tempos de colônia. As Ordenações Filipinas, de 1603, já previam penas de confisco de bens e degredo para a África para os que portassem, usassem ou vendessem substâncias tóxicas. O país continuou nessa linha com a adesão à Conferência Internacional do Ópio, de 1912.

A visão de que as drogas seriam tanto um problema de saúde quanto de segurança pública, desenvolvida pelos tratados internacionais sob a influência americana da primeira metade do século passado, foi paulatinamente introduzida na legislação nacional. Até que, em 1940, o Código Penal confirmou a opção do Brasil de não criminalizar o consumo.

Pedrinha (2013) informa ainda que se estabeleceu uma "concepção sanitária do controle das drogas", pela qual a dependência é considerada doença e, ao contrário dos traficantes, os usuários não eram criminalizados, mas estavam submetidos a rigoroso tratamento, com internação obrigatória.

Porém, o regime militar de 1964 e a Lei de Segurança Nacional deslocaram o foco do modelo sanitário para o modelo bélico de política criminal, que equiparava os traficantes aos inimigos internos do regime (note que se dá no mesmo momento em que Nixon – Presidente dos EUA, declara a sua "guerra às drogas").

Não por acaso, a juventude associou o consumo de drogas à luta pela liberdade. Nesse contexto, da Europa às Américas, a partir da década de 60, a droga passou a ter uma conotação libertária, associada às manifestações políticas democráticas, aos movimentos contestatórios, à contracultura, especialmente as drogas psicodélicas, como maconha e LSD.

Em 1973, o Brasil aderiu ao Acordo Sul-Americano sobre Estupefacientes e Psicotrópicos e, com base nele, baixou a Lei 6.368/1976, que separou as figuras penais do traficante e do usuário. Além disso, a lei fixou a necessidade do laudo toxicológico para comprovar o uso.

Finalmente, a Constituição de 1988 determinou que o tráfico de drogas é crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Em seguida, a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) proibiu o indulto e a liberdade provisória e dobrou os prazos processuais, com o objetivo de aumentar a duração da prisão provisória. A Lei de Drogas (Lei 11.343/06) eliminou a pena de prisão para o usuário e o dependente, ou seja, para aquele que tem droga ou a planta para consumo pessoal.

Já a criação da Força Nacional de Segurança e as operações nas favelas do Rio de Janeiro, iniciadas em 2007 e apoiadas pelas Forças Armadas, seguidas da implantação das unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), reforçaram a repressão e levaram a presença do Estado a regiões antes entregues ao tráfico, não apenas atendendo às críticas internacionais, como também como preparação para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016.

As discussões em torno das leis que tratam do tráfico e dependência de drogas continuam a ser feitas no Congresso, envolvendo ainda aspectos como o aumento de impostos e o controle do álcool e do cigarro.

Em reportagem na revista de História, Pelli (2011) afirma que um paralelo possível e sempre citado com a história das drogas é a trajetória dos medicamentos. As drogas legais que alteram a consciência, é interessante ressaltar, estão sempre entre as mais vendidas, mesmo com todas as exigências para a sua compra. O ansiolítico Rivotril ficou em segundo lugar na lista de 2010 no Brasil, por exemplo.

Carneiro (2011) cita o que para ele são as razões para o sucesso dessas vendagens:

O atual sistema de patentes, que prioriza as grandes companhias farmacêuticas, em detrimento do pequeno produtor que nunca fez segredo de suas descobertas; o monopólio médico da prescrição, que deixa na mão de uma classe específica o poder de receitar este ou aquele remédio; e o mercado publicitário voltado tanto para quem toma como para quem ministra esses medicamentos, criando ou, pelo menos, reforçando novas demandas e necessidades. Sua outra contrapartida indispensável (para o crescimento dessas vendas de remédios legais) é a proibição concomitante do uso de diversas plantas psicoativas de uso tradicional – como a canábis, a papoula e a coca. As funções psicoterapêuticas que estas têm em medicinas tradicionais passaram a ser substituídas por pílulas farmacêuticas, afirmando que o maior número de usuários e dependentes de drogas na sociedade contemporânea são os consumidores de produtos da indústria farmacêutica.

Cesar (apud PELLI, 2011), acredita que as pessoas sempre vão fazer uso de substâncias psicoativas, independentemente de serem liberadas ou não. Por isso, ele sugere que, em vez de proibir, devemos tentar "reduzir riscos". Vejamos, a título de exemplo, o álcool, que é uma droga e seu uso abusivo faz mal, mas, hoje, há uma regulação e são raros os comerciantes que vendem bebidas para crianças e adolescentes, principalmente para serem consumidos em seus estabelecimentos.

No entanto, qualquer criança ou adolescente pode comprar droga com um traficante, pois sua venda não é regulada, argumentando, porém, que a descriminalização do uso pode acarretar o acesso de um número maior de pessoas a determinadas drogas, e sugerindo que haja uma política integrada para diminuir a demanda.

Carneiro (2011) é ainda mais revolucionário: além da legalização de todas as drogas, ele sugere o controle estatal da produção e do comércio. O conjunto das drogas legalizadas acabaria com os efeitos nefastos do chamado narcotráfico, encerraria a guerra contra as drogas, libertaria os prisioneiros dessa guerra: em torno de metade da população carcerária tanto nos EUA como no Brasil. Reduzir-se-iam os danos sociais dos usos problemáticos de drogas.

Vemos que, desde a época das grandes navegações, os europeus passam a ter contato com vários tipos de drogas, que são utilizadas não somente como terapêuticas, mas também como recreativas. Porém, com o advento da revolução industrial e as revoluções burguesas, as drogas passaram a ter conotação mercadológica. Silva (2011) assim aduz:

Os europeus entraram em contato com um grande número de substâncias psicoativas desde as Grandes Navegações (século XVI), e as introduziram, progressivamente, em suas sociedades com finalidades médicas ou recreativas. No século XIX, Europa e Estados Unidos passaram a conviver com grande variedade de novas drogas, com as quais tinham pouca ou nenhuma identificação cultural. Paulatinamente, da expansão européia à revolução industrial, as substâncias psicoativas deixaram de ser ministradas segundo preceitos culturais, ritualísticos e litúrgicos, para se converterem em mercadorias, bens de consumo. O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio (1839 e 1865), pelas quais os ingleses, que declararam guerra à China em favor do "livre comércio", garantiram o monopólio internacional, consolidaram o domínio no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala.

Continua mesmo autor dizendo:

Os Estados Unidos foi o principal expoente na cruzada moral contra o consumo de drogas. Passaram a tentar, em nível internacional, controlar o comércio de ópio para fins não medicinais. Haveria, por parte dos americanos, dois motivos, que se sobreporiam aos aspectos sanitários: adaptar os imigrantes do século XIX ao estereótipo moral da elite anglo-saxônica protestante, penalizando os desviantes; e conquistar espaço de manobra e poder econômico nos mercados do oriente, então dominado pelos ingleses. A pressão americana faz com que em 1909, representantes de países com colônias no Oriente e na Pérsia se reunissem em Shangai na Conferência Internacional do Ópio. Posteriormente, realizou-se em 1911 a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Dessa conferência resultou a "Convenção do Ópio", em 1912, pela qual os países signatários criaram o compromisso de tomar medidas de controle da comercialização da morfina, heroína e cocaína nos seus próprios sistemas legais. Vale ressaltar que outras substâncias, como a cocaína, foram adicionadas devido a uma pressão inglesa, para que o ônus econômico da proibição recaísse também sobre outros países (França, Holanda, Alemanha), que estavam tendo lucros com o comércio da cocaína através da emergente indústria farmacêutica.

Durante todo século XX vamos ver, portanto, por influência americana, um recrudescimento cada vez maior no combate às drogas. No mesmo entendimento de Pedrinha, Silva (2011) também afirma que:

[...] com o golpe militar de 1964, criaram-se as condições para a implantação daquilo que Nilo Batista batizou de modelo bélico, com o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas. Sobrando o modelo sanitário para quem se encaixasse no estereótipo da dependência, isto é, os jovens de classe média e alta. É necessária uma breve análise do contexto histórico que favoreceu a mudança do modelo sanitário para o modelo bélico. Estava-se na época da "guerra fria", com uma aliança de setores militares e industriais para a qual a iminência da guerra era condição de desenvolvimento. Havia gastos bilionários com armamentos por parte dos dois blocos antagônicos (Estados Unidos e União Soviética), sendo fundamental para ambos a militarização das relações internacionais e também em nível interno. Com o suporte ideológico da doutrina de segurança nacional, criou-se a figura do inimigo interno que transbordou os limites da Guerra Fria, perdurando até hoje, antes os criminosos políticos, depois os comuns. Por outro lado, a década de 60 era a década dos movimentos de contracultura, como os "hippies", dos movimentos de protesto político, como as guerrilhas na América Latina. Especialmente, era o momento do estouro da droga, aumentando o consumo da maconha também entre jovens de classe média e alta, e estourava também a indústria farmacêutica, que criou drogas sintéticas, como o LSD. Como o consumo já não era apenas dos guetos, passou a se mostrar um problema moral, uma "luta entre o bem e o mal". O mal, representado pelo pequeno distribuidor, vindo dos guetos, que incitaria o consumo, qualificado como delinquente. O bem, pelo consumidor, "filho de boa família", corrompido pelos traficantes, qualificado como doente/dependente, merecendo tratamento por médicos, psicólogo e assistente social. O consumo de substâncias psicoativas passa a ser tratado como questão de segurança nacional, uma vez que já não se podia aceitar que tantos jovens americanos fossem desprovidos de virtudes. Assim, surgem os discursos, absorvidos no âmbito jurídico, sustentando que a generalização do contato de jovens com drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista, para solapar as bases morais da civilização cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-se de métodos e dispositivos militares.

Como se vê, usuário de drogas é visto como alguém sem "virtudes", ao contrário do usuário de drogas "lícitas", como o álcool por exemplo. No mais, chega-se ao absurdo de comparar o uso das drogas como estratégia comunista para desestabilizar "os bons costumes da civilização cristã". Essa visão dualista entre bem e mal é típico do momento vivido no período da Guerra Fria, em que os ânimos estavam aflorados e, em muitas das vezes, fugia da racionalidade essa disputa ideológica.

A visão dualista é equivocada, pois prega valores de uma sociedade como superior aos valores de outra. É um desrespeito silencioso aos valores alheios, e na questão das drogas não é diferente, pois, drogas como o álcool, que representa índice altíssimo de morte, continuam lícitas por mero valor moral, enquanto várias drogas ilícitas como maconha, por exemplo, permanece na ilicitude por não pertencer aos valores dessa sociedade dos "bons costumes".

No mais, percebe-se então que a raiz do tratamento do tráfico com um viés em direito penal do inimigo tem raízes históricas na Guerra Fria. Vislumbra-se ainda, que os jovens de classe media alta que são usuários, seriam, na verdade, "vítimas" desses "monstros" que vendem tais produtos com a finalidade de desestabilizar os valores daquela.

Entra em curso, assim, dentro dessa visão dualista, um conceito de países-vítimas e países-agressores dentro da perspectiva das drogas. Desta forma, países como Colômbia, Bolívia e China são vistos como países produtores (países-agressores), enquanto EUA e países da Europa Ocidental seriam países-vítimas. Surge então a globalização do combate às drogas capitaneado pelos EUA. Silva (2011) complementa dizendo:

Reunia-se o elemento religioso-moral com o elemento bélico com cada vez mais verbas para o capitalismo industrial de guerra, que resulta numa "guerra santa" contra as drogas, que tem a vantagem de não ter restrições nem padrões regulativos, com os fins justificando os meios.

Além das questões históricas, percebemos também a questão econômica. As indústrias farmacêuticas lucram somas vultosas, movimentam uma economia bilionária que, dentro da perspectiva de mercado, produz as drogas que podem ser vendidas, desde que se beneficiem desse mercado que vai do médico (que prescreve) ao produtor.

Essa realidade é diferente quanto às drogas ilícitas, como derivados da cannábis, papoula e coca, pois estas não estão controladas pelas indústrias farmacêuticas, o que as torna uma "ameaça" ao monopólio desse grande mercado, afrontando interesses.

Carneiro (2011) afirma:

Num tempo de aumento de tensões e de sofrimentos psíquicos diversos e complexos, estão disponíveis centenas de moléculas puras, para os mais diversos efeitos. A indústria farmacêutica busca ampliar seu monopólio, substituindo usos de plantas tradicionais por fármacos patenteados, e colonizando cada vez mais a vida cotidiana, oferecendo novos "remédios" para as mais diferentes esferas comportamentais. O maior número de usuários e dependentes de drogas na sociedade contemporânea são os consumidores de produtos da indústria farmacêutica. As drogas de farmácia também têm usos variados, que podem ser benéficos ou nocivos, equilibrados ou abusivos. Uma parte dos consumidores faz uso abusivo. Cerca de um terço das intoxicações que ocorrem no país, por exemplo, são devidas a drogas da indústria farmacêutica, numa proporção muito maior do que as que ocorrem por causa do uso abusivo de substâncias ilícitas.

A dependência de drogas lícitas torna-se cada dia maior. Só nos anos de 2008 e 2009, segundo Carneiro (2011), o segundo medicamento mais vendido no Brasil foi o Rivotril. A dependência de remédios, uma forma de consumo compulsivo, às vezes chamada popularmente de hipocondria, é uma característica marcante da relação das pessoas com as drogas. Por serem, por vezes, receitadas por um médico, são chamadas de "remédios", mas o seu resultado é exatamente o mesmo de qualquer outro consumo compulsivo, podendo levar a efeitos danosos para o organismo e à dependência e tolerância.

No aspecto político, com o fim das ditaduras latino-americanas apoiadas pelos EUA e o fim da Guerra Fria, era necessário um novo motivo para justificar a intervenção norte-americana no plano internacional, um novo inimigo deveria ser eleito.

O vácuo deixado pela queda progressiva da ameaça comunista seria ocupado pelo narcotráfico, um novo perigo identificado pelo governo norte-americano. Assim seria possível ocupar a Amazônia, e ter fuzileiros e conselheiros na Colômbia, por exemplo. O discurso da segurança nacional é deslocado para esse novo inimigo.

Numa perspectiva psicológica, as drogas, em muitas das vezes, são utilizadas como forma de fuga da realidade, consequência talvez das dificuldades de viver no mundo moderno frente à pressão social (família, trabalho etc.). Dessa forma, as drogas em sentido amplo (lícitas e ilícitas), são utilizadas por algumas pessoas para fugirem, mesmo que por instantes, das pressões sociais existentes.

Portanto, as drogas não seriam necessariamente o problema, mas sim, o sintoma do problema, de modo que a dependência, em muita das vezes, é obtida pelo enorme grau de problema social que um determinado indivíduo possui e, encontra nas drogas, uma rota de fuga aos seus problemas, como se esta tivesse o condão de excluir os problemas pelos quais este indivíduo está passando.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5


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