Quando Fazer é Refletir (Sobre a Importância do Ensino de Filosofia na Formação do Antropólogo)



Em outras oportunidades, ao discutir as características do conhecimento ou da interpretação antropológica, tenho chamado a atenção para a importância da dimensão filosófica da antropologia. Deste modo, sugeri que a disciplina teria se desenvolvido a partir de um dilema constitutivo entre, de um lado, uma ênfase no carater "local" e contextualizado da interpretação etnográfica e, de outro, uma preocupação com questões de validade. Da mesma forma, indiquei que este dilema fazia com que o trabalho antropológico estivesse profundamente marcado por uma dialética radical entre a ciência e a filosofia, entre o empirismo e a metafísica, ou entre o dado e o significado (L. Cardoso de Oliveira, 1993:67). Procurava demonstrar então que a combinação de uma especialização no estudo das sociedades ditas primitivas ou exóticas, --especialmente forte durante o período de formação da disciplina--, com a prática do trabalho de campo fazia com que o sucesso do empreendimento etnográfico fosse condicionado pela relativização efetiva das categorias de entendimento do antropólogo, ainda que isto tivesse que ser feito a revelia deste (Idem:68-69). Isto é, inspirado no lema da "observação participante", assinalava que o antropólogo não podia abdicar de um exercício hermenêutico que conjugasse a dimensão analítica de seu empreendimento (aquela que enfatiza o distanciamento, a observação e a objetividade) com a dimensão auto-reflexiva (que não perde de vista a idéia de pertencimento ou de participação, assim como as pressuposições culturais do pesquisador).

Quando fui convidado para participar desta mesa-redonda, sobre a necessidade da "Filosofia para outros cursos da Universidade", estimulado pelo equacionamento do problema proposto pelo Prof. Julio Cabrera, pensei que seria uma boa oportunidade para desenvolver estas idéias no contexto de uma reflexão sobre as relações entre práticas de ensino e/ou de aprendizado nas duas disciplinas. Isto é, como não poderia deixar de ser, a partir de uma perspectiva antropológica.

Neste contexto, ao invés de me preocupar com o significado da filosofia para as Humanidades em geral, enquanto referencial obrigatório para o pensamento ocidental, ou mesmo para modalidades específicas de realização do empreendimento antropológico, nas quais o pesquisador desenvolve um diálogo direto com a tradição filosófica, resolvi centrar minha discussão naqueles aspectos ou dimensões da disciplina que teriam algo a dizer para o "fazer antropológico" em geral. Afinal de contas, haveriam semelhanças ou relações entre o "fazer antropológico" e o "fazer filosófico" cuja exposição ou aprendizado por parte dos antropólogos pudesse torná-los profissionais mais bem equipados? Até que ponto o ato de "antropologizar" um problema teria algo de "filosofar" sobre o mesmo? Até que ponto, digamos, o estudo dos "Diálogos Socráticos" pode nos ajudar a compreender melhor as práticas de bruxaria entre os Azande, os funerais Bororo, as concepções de família entre populações camponesas no nordeste, o processo de "impeachment" do ex-Presidente Collor, ou, para trazer o problema para horizontes ainda mais próximos, porque entre os historiadores um pesquisador de cinquenta anos é às vezes considerado imaturo para realizar um trabalho de maior fôlego, enquanto entre os matemáticos o auge da carreira é percebido como estando destinado a chegar ao fim por volta dos vinte e cinco anos de idade (Geertz, 1983:159)?

Tomando como referência o título dado a esta exposição, pode-se dizer que a principal caracterísica do "fazer antropológico" é a indissociabilidade entre pesquisa empírica e reflexão, assim como definida no primeiro parágrafo do texto. Da mesma maneira, se relativizarmos as origens marcadamente Kantianas da noção de reflexão, poderíamos dizer que a filosofia em geral não pode abrir mão da atitude reflexiva na medida em que qualquer que seja a maneira que a disciplina seja definida e qualquer que seja o seu foco de interesse privilegiado, o exercício filosófico nunca deixará de se constituir num pensa (ou questionar) sobre o pensamento. Seja este apreendido através da linguagem, das representações, das visões de mundo, ou de alguma forma de discurso sobre a experiência (ou existência) humana.

Além disto, seja a filosofia concebida como a "guardiã da racionalidade", para utilizar uma expressão de Habermas (1989), como a "arte de formar [de inventar, de fabricar] conceitos", para fazer uso agora de uma formulação de Deleuze & Guattari (1992:10), ou como a atividade de descrever "jogos de linguagem" e/ou "formas de vida", para não deixar de citar a visão de Wittgenstein (1979), --que tem grande penetração em certos círculos antropológicos--, o trabalho do filósofo é sempre identificado com o processo de desvendar significados e de esclarecer idéias, trazendo a tona a preocupação da filosofia com a sustentação de seu próprio discurso, entendido aqui como, simultâneamente, o objeto e o produto das investigações dos filósofos.


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