Individualismo, Identidades Coletivas e Cidadania: Os Estados Unidos e o Quebec vistos do Brasil



Os Estados Unidos têm sido, recorrentemente, um contraponto ou uma referência comparativa estimulante para cientistas sociais brasileiros refletirem sobre a democracia e a cidadania no Brasil. De Sérgio Buarque de Holanda (1936/1963), passando por Oracy Nogueira (1954/1985), até o trabalho mais recente de Roberto da Matta (1979; 1991). Neste sentido, o individualismo americano tem sido o centro da preocupação destes autores e uma grande fonte de insights em suas análises sobre o Brasil, onde noções como personalismo, complementaridade, hierarquia e tradição são enfatizadas na comparação como características do contexto brasileiro, em oposição aos ideais de individualidade, autonomia, igualdade e modernidade encontrados nos EUA.

Inspirando-me neste quadro, gostaria de acrescentar o Quebec a minha investigação e reverter o foco da análise para examinar certos aspectos dos direitos individuais, das identidades coletivas e da cidadania nos EUA e no Quebec a partir do Brasil.

Tendo como foco as demandas de reconhecimento da identidade quebequense no Canadá, e a articulação entre as noções de indivíduo e de direitos legais nos EUA, vou inquirir sobre um determinado tipo de direitos de cidadania que não são adequadamente equacionados nos dois contextos. Enquanto no Quebec a mediação entre identidades coletivas e direitos de cidadania esta no âmago da crise constitucional canadense, a força da ideologia individualista nos EUA e a ênfase correspondente nos direitos individuais têm sido uma barreira significativa para o tratamento do que gostaria de definir como insultos morais, e uma grande dificuldade para a proteção dos respectivos direitos que são, assim, frequentemente agredidos.

Em outra oportunidade, fazendo uma comparação entre as condições para o exercício da cidadania no Brasil e nos EUA, argumentei que independentemente da amplitude e da diversidade do significado dos direitos de cidadania em diferentes democracias, eles teriam que contemplar um equilíbrio razoável entre os princípios de justiça e de solidariedade. Isto é, um equilíbrio entre o respeito aos direitos (universalizáveis) do indivíduo e a consideração à pessoa ou à identidade do cidadão.

Assinalei então que a eventual ausência de tal equilíbrio deveria resultar em déficits de cidadania (Cardoso de Oliveira 1996).

Neste contexto, argumentei que Brasil e EUA têm déficits de cidadania em direções opostas, e enfatizei que o déficit brasileiro seria muito mais sério que o americano, dado que aqui uma preocupação desmedida e seletiva com a dimensão da consideração seria responsável pela grande dificuldade em se respeitar os direitos básicos de cidadania de todos aqueles que (ou quando) não são vistos como merecedores de atenção especial. O cenário contrastante nos EUA foi caracterizado pela dificuldade em se manifestar o reconhecimento à singularidade de identidades pessoais em relações ou interações sociais, mesmo quando tal reconhecimento pode ser interpretado como a condição para um tratamento apropriado e respeitoso do interlocutor. Agora, gostaria de sugerir, inspirado em Berger (1983:172-181), que este último desequilíbrio teria sido responsável pela invisibilidade dos insultos à honra (ou dignidade) dos indivíduos ou cidadãos em sociedades como os EUA. Tais sociedades não teriam instituições ou mecanismos adequados para reparar os direitos agredidos em situações de insulto à honra/dignidade dos atores. Como veremos, a crise constitucional no Canadá, ou a sua dificuldade em reconhecer a distinção da identidade quebequense, tem conexões interessantes com o desequilíbrio nos EUA, as quais são particularmente instigantes quando vistas da perspectiva do Brasil (ou de um brasileiro). Em uma palavra, a ênfase na consideração e na distinção (worthiness) que responde por (ou estimula) atos de discriminação cívica2 no Brasil pode ser interpretada, no caso do Quebec, como uma demanda legítima de reconhecimento, cuja negação é experimentada como um ato de desconsideração ou como um insulto moral.

Farei agora um breve relato sobre a invisibilidade dos insultos morais nos EUA, através da discussão do problema no contexto dos Juizados de Pequenas Causas, para me dirigir à demanda de reconhecimento do Quebec no resto deste ensaio. Como veremos, no caso da disputa Canadá/Quebec não se trata tanto de tornar visíveis insultos que, a despeito de serem sentidos e percebidos como ofensas são culturalmente dissociados da discussão sobre direitos, mas de lidar com a dificuldade de fundamentar tais insultos como uma agressão ilegal, socialmente inaceitável.

Insultos Morais e Invisibilidade de Direitos nas Pequenas Causas

Apesar de todas as demandas encaminhadas aos Juizados de Pequenas Causas nos EUA serem expressas através de um valor monetário, o qual traduz na linguagem do direito a compensação pela perda que os litigantes teriam sofrido, em muitas causas a principal motivação para o engajamento na disputa gira em torno da eventual reparação de um direito não monetizável. Ou seja, da demanda de reparação por um ato de desconsideração ou insulto moral.

Nas causas cíveis as demandas de reparação são baseadas na definição de uma perda materialmente identificável, a qual é associada a um direito que teria sido desrespeitado. Nos EUA, onde vigora a Common Law, o desrespeito ao direito em pauta é sempre percebido como o resultado de uma quebra de contrato ou de um ato de responsabilidade (ou de um ilícito) civil (tort).3 De todo modo, em nenhuma circunstância a perda sofrida é associada a uma intenção de agressão à pessoa do querelante ou autor do processo.4 Entretanto, se a distinção entre perda e agressão, ou entre desrespeito a direitos e insulto à pessoa dos litigantes, nem sempre é muito nítida nas causas cíveis, a nebulosidade entre estas duas possibilidades é particularmente significativa nas Pequenas Causas.

De fato, o valor monetário demandado em muitas disputas não deveria estimular, em si mesmo, a formalização da causa. Nas disputas envolvendo valores inferiores a 50 dólares, por exemplo, a soma das taxas cobradas pelo Juizado (entre 5 e 10 dólares em 1985/1986) com os custos de transporte para pelo menos duas visitas ao Juizado, além da perda de remuneração pelas horas não trabalhadas no dia da audiência (que pode ultrapassar três horas), faz com que um litigante bem sucedido consiga normalmente recuperar no máximo os recursos investidos no processamento da causa.5

Me parece que a motivação das partes em casos deste tipo não estaria apenas numa questão de princípio — na defesa do direito pelo direito — com o objetivo de exigir um comportamento legal e normativamente correto de seus oponentes, ou numa compulsão para defender o interesse próprio visto como um direito absoluto, mas num sentimento de revolta contra um ato ou atitude percebido como uma agressão gratuita ao status ou à identidade dos atores enquanto pessoas morais. Isto é, um ato de desconsideração à dignidade do indivíduo com uma identidade própria, e como alguém merecedor da atenção à qual qualquer cidadão teria direito enquanto pessoa. Este sentimento de revolta, de ultraje, ou de retaliação era aparente nas chamadas telefônicas que eu estava acostumado a receber no Serviço de Aconselhamento para Pequenas Causas (SAPC),6 onde trabalhei como voluntário. Frequentemente, os usuários do Serviço demonstravam sua insatisfação com a forma atenta, mas estritamente impessoal das instruções que nós éramos treinados a dar, e exigiam uma atitude de simpatia ou de solidariedade por parte do conselheiro à luz das agressões que alegavam ter sofrido de seus oponentes. O mesmo tipo de indignação demonstrada pelos usuários do SAPC se repetia nas audiências judiciais ou nas sessões de mediação, sempre que os litigantes lembravam ou percebiam no momento tentativas de enganação ou atitudes de desconsideração da parte de seus oponentes. Mas, deixe-me fazer uma pequena digressão para ilustrar este ponto.

O caso do "Congelador Suspeito" é um bom exemplo. Os querelantes, dois homens que dividiam um apartamento, estavam processando o proprietário de uma loja especializada na venda de refrigeradores usados, de quem reivindicavam uma reparação no valor de 40 dólares, por uma transação comercial na qual alegava-se que o querelado teria mentido sobre as características do congelador comprado pelos querelantes.

Quando estes instalaram o congelador em casa, suspeitaram do barulho que o aparelho estava fazendo e telefonaram para o fabricante, a General Electric, que lhes informou tratar-se de um aparelho com 13 anos de uso, ao invés dos 6 para 8 anos de idade que o querelado havia estimado. Após várias tentativas mal-sucedidas para devolver o congelador e desfazer o negócio, os querelantes formalizaram a causa no Juizado nos seguintes termos: "25 dólares que eles teriam pago inicialmente pela entrega do congelador, 10 dólares gastos para bloquear no banco o cheque com o qual compraram o aparelho [no valor de 250 dólares (LRCO)], e 5 dólares que o querelantes teriam gasto enviando cartas registradas ao PROCON". Além deste valor em dinheiro, os querelantes também estavam demandando que o querelado se responsabilizasse pelo transporte do congelador de volta para a loja. Por seu turno, o querelado negava veementemente a acusação de falsidade ideológica, mas estava disposto a desfazer o negócio com tanto que os querelantes o pagassem mais 25 dólares para fazer frente aos seus custos com o transporte do refrigerador de volta para a loja. As partes acabaram fazendo um acordo estabelecendo uma indenização de 20 dólares para os querelantes, e envolvendo o compromisso assumido pelo querelado no sentido de se responsabilizar pelo transporte do congelador indesejado.


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