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Absenteísmo ao programa de assistência pré-natal (página 2)

Lorena T. C. Geib

Introdução

A mortalidade infantil é considerada um evento delineador da qualidade de vida e dos serviços de saúde, razão pela qual seu coeficiente tem sido classicamente utilizado para o reordenamento das políticas públicas, visando, especialmente, à redução de mortes por causas evitáveis. Nos últimos anos, esse indicador mostrava uma nítida tendência de queda no Rio Grande do Sul. Preocupante, porém, o Coeficiente de Mortalidade Infantil no Município de Marau passou de 14,93, em 2000, para 33,86, em 2001. Já em 2002, o coeficiente foi de 11,82.3

A reversão desse indicador no município não pode ser atribuída apenas ao melhor preenchimento e fidelidade dos dados de nascimentos e óbitos, já que não houve alteração significativa nesses procedimentos. O que se observa é a pouca utilização dos recursos disponíveis na rede de saúde pelas gestantes, com reflexos nas causas dos óbitos em menores de um ano de idade, que no ano de 2001 foram principalmente relacionadas à prematuridade, à insuficiência respiratória, à anóxia e à morte súbita.

A partir desses indicadores, considerando-se que o absenteísmo ao Pré-Natal está entre os fatores relacionados à mortalidade infantil, e que, mesmo com uma considerável oferta de serviços obstétricos no município, a freqüência das gestantes aos mesmos é muito baixa, questionou-se: - Quais os motivos da não-adesão das gestantes ao Programa de Assistência Pré-Natal, sob a ótica daquelas que, subseqüentemente, geraram crianças prematuras?

O atendimento pré-natal em muito pode contribuir na detecção precoce de alterações no desenvolvimento fetal, minimizando os problemas pós-natais, e, conseqüentemente, a mortalidade infantil, assim como pode evitar as mortes intra-uterinas.

Esse enfoque tem orientado as ações preventivas do Município de Marau - RS, que conta com recursos suficientes, quantitativa e qualitativamente, para atender às necessidades de saúde de boa parcela da população. Contudo, os profissionais se deparam com forte resistência de adesão das gestantes às ações do Programa de Pré-Natal. Atualmente, as gestantes freqüentam o programa somente mediante recompensas, sendo-lhes proporcionado enxoval para o bebê, exames laboratoriais, ultra-sonografia obstétrica e garantia de atendimento médico imediato.

Esse fenômeno, ao impactar fortemente nos indicadores de morbimortalidade do município, colocam-no na situação do risco de retenção de verbas públicas, uma vez que a liberação das mesmas está condicionada ao desempenho dos serviços de saúde, indiretamente avaliados pelos indicadores acima. Além dessa implicação legal e de sua conseqüente penalização, os gestores preocupam-se, sobremaneira, com a perpetuação de um modelo assistencialista/paternalista que promove a responsabilidade única do setor público, sem o devido comprometimento dos usuários com a sua saúde e a de sua coletividade.

Na perspectiva de perseguir um modelo mais participativo, os gestores e profissionais de saúde do município entendem ser fundamental desvelar os motivos que estão impedindo a maior adesão das gestantes ao Pré-Natal e se refletindo fortemente no perfil da morbimortalidade infantil. Compreendem que a melhoria da qualidade da assistência pré-natal a essas gestantes e a adesão efetiva que se busca sejam fatores preponderantes na detecção precoce de intercorrências na gravidez e parto, reduzindo as mortes infantis por causas evitáveis. Compreendem também que a participação da mãe nesse processo, exercitando sua cidadania, poderia contribuir com a qualidade da assistência, a partir do momento que passa a exigi-la do serviço e do profissional que a atende, melhorando e desmistificando assim a visão errônea do serviço público negligente e de má qualidade, e provocando uma readequação e transformação na sistemática da assistência.

O baixo nível socioeconômico e cultural, a adolescência, a gravidez indesejada, os distúrbios emocionais e mentais, o difícil acesso às unidades de saúde pela localização geográfica de suas residências são fatores que interferem diretamente na falta de adesão das gestantes aos programas de pré-natal.

Ao se abordar a saúde da mulher, o foco costuma estar nas especialidades de ginecologia e obstetrícia, reduzindo as mulheres à sua capacidade reprodutiva. Porém,

a dependência econômica, a pobreza, a dupla jornada de trabalho, a violência, a discriminação, a falta de alimentos ou a sua distribuição desigual no ambiente doméstico afetam diretamente a sua saúde nas diversas etapas da vida. Para garantir saúde às mulheres, as políticas públicas devem ir além do eixo materno-infantil, e de forma integral educar e prevenir as situações de risco.

Nesse contexto, a prevenção de doenças e agravos, quando se conseguem satisfazer essas condições mínimas, representa um grande avanço na saúde pública, pois além de ser menos oneroso, comprovadamente é eficiente. O Pré-Natal insere-se nesse leque de possibilidades.

No Brasil, somente 60% das mulheres realizam acompanhamento pré-natal e, dessas, 1/3 inicia suas consultas tardiamente, realizando menos que 6 consultas durante a gestação. Infelizmente, muitas mulheres iniciam o acompanhamento pré-natal após as primeiras oito a doze semanas de gestação (MARTINS-COSTA; RAMOS, 1997).

As ações de saúde devem estar voltadas para a cobertura de toda população-alvo da área de abrangência da unidade de saúde, assegurando continuidade no atendimento, acompanhamento e avaliação das ações sobre a saúde materna e perinatal (BRASIL, 2000). No entanto, essas políticas públicas esbarram na adesão das gestantes aos programas de assistência pré-natal, determinantes para a vitalidade e saúde materna e fetal, além de oferecer a possibilidade de detecção precoce de intercorrências na gestação, como a prematuridade, que está sendo considerada, hoje, a maior causa de morbimortalidade neonatal. Estima-se que aproximadamente 75% dos óbitos no período neonatal estão relacionados à prematuridade; a prevalência de partos prematuros gira em torno de 10% (FREITAS et al., 2001), o que constitui um agravo importante e merecedor de atenção e de medidas preventivas adequadas e precoces.

A prevenção da ocorrência de partos prematuros representa um dos maiores desafios da saúde reprodutiva, pois, apesar de serem reconhecidos alguns dos inúmeros fatores de risco que levam a um nascimento pré-termo, há ainda a influência dos aspectos educativos e sociais, os quais, na maioria das vezes, não se consegue identificar.

Para prevenir a prematuridade, é essencial garantir a adesão das gestantes aos programas de assistência pré-natal. Quando isso não ocorre, os motivos do absenteísmo devem ser desvelados para promover a inserção precoce das gestantes nas ações de saúde.

Este trabalho propôs-se conhecer os motivos da não-adesão das mães de crianças prematuras ao Programa de Assistência Pré-Natal no Município de Marau - RS, descrevendo a percepção das mães de filhos nascidos prematuramente sobre esse tipo de assistência, verificando as dificuldades encontradas para a freqüência ao programa, além de identificar os aspectos que contribuíram para a não-adesão das gestantes ao mesmo.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, realizado na zona urbana e rural do Município de Marau, situado no Planalto Médio do Rio Grande do Sul, região da produção, com uma população de 28.158 mil habitantes, sendo que, destes, 22.645 residem na zona urbana. Na área de saúde, o município está estruturado com 02 hospitais, totalizando 120 leitos; 01 Unidade Básica de Saúde Central; 01 Pronto Atendimento Municipal 24 horas; 03 Unidades de Saúde da Família; e 02 postos acessórios nos bairros. Nesses últimos citados, somente são atendidas consultas médicas. Possui também 19 Agentes Comunitários de Saúde, com projeto para ampliação desse número para 65. Assim, será dada cobertura a 100% da população urbana do município com o Programa de Saúde da Família e a 100% da população rural com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde.

Participaram do estudo 24 mães, de um total de 27 mães de crianças nascidas e domiciliadas no Município de Marau-RS, no período de outubro de 2001 a outubro de 2002 - retiradas da pesquisa "Associação entre absenteísmo ao Programa de Assistência Pré-Natal e prematuridade: estudo populacional", conduzida paralelamente a esta -, cujos filhos nasceram com idade gestacional entre 22 e 36 semanas e 6 dias, conforme dados constantes na Declaração de Nascido Vivo da Secretaria Municipal de Saúde. Localizadas conforme endereço registrado na mesma declaração ou nos registros hospitalares (prontuário, livro de registros de nascimento), essas mães consentiram em participar do estudo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Informado. Uma mãe foi excluída, por ser mentalmente incapaz.

A coleta dos dados foi realizada de outubro de 2002 e março de 2003, utilizando- se como técnica a entrevista semi-estruturada. Como instrumento, foi utilizado um formulário contendo as questões norteadoras que permitiram desvelar as percepções das participantes sobre a assistência pré-natal, suas dificuldades para freqüentar o Programa de Assistência Pré-Natal oferecido pelo município e os motivos da não- adesão ao Programa. Foi solicitada a cada participante a permissão para o uso do gravador, registrando-se as informações em fitas cassete, as quais foram transcritas na íntegra. Para análise, utilizamos os procedimentos da Técnica de Análise de Conteúdo, modalidade temática (MINAYO, 1994), realizando a ordenação dos dados,

a classificação dos dados e a elaboração das categorias empíricas a partir das seguintes categorias teóricas: percepções sobre o Programa de Assistência Pré-Natal, dificuldades sentidas pelas mães de crianças prematuras para freqüentar o Programa e motivos alegados pelas mães para a não-adesão ao Programa.

Desvelando o absenteísmo

Na análise de dados, emergiram as seguintes categorias empíricas: a (in) conscientização político-sanitária, o direito bloqueado - direito abnegado e os escudos sociais, que constituem situações que perpassam a trilha do absenteísmo ao Programa de Assistência Pré-Natal, segundo a ótica das mães de crianças nascidas prematuramente. Tais categorias são descritas e discutidas a seguir:

  • Percepções sobre o Programa de Assistência Pré-Natal: A (IN) CONSCIENTIZAÇÃO POLÍTICO-SANITÁRIA
  • No entendimento das mães das crianças prematuras, o Programa de Assistência
  • Pré-Natal pode ser categorizado como:

• Satisfatório e eficiente

A eficiência do serviço é expressa na facilidade de acesso a consultas e exames e na agilidade do atendimento. As usuárias reconhecem no Programa de Assistência Pré-Natal a resolutividade clínica, a integralidade e a diversidade de ações. Contudo, denotam um padrão de utilização dos serviços públicos de saúde, orientado para a busca do atendimento médico (consultas) e de diagnóstico (exames). Não ter que "tirar ficha" e poder realizar "as consultas e exames necessários" são dois marcadores importantes da representação social de um atendimento, percebido como qualificado quando há medicalização e rapidez.

Cohn et al. (1999) atribuem ao diagnóstico subsidiado por exames complementares o significado de comprovação objetiva da capacidade - subjetiva, quase mística - do médico para descobrir a causa oculta por trás dos sintomas. Acessar esse poder enigmático, sem as barreiras comumente impostas pelos limites da universalidade dos serviços, confere segurança e satisfação às usuárias, como verbalizaram: "[...] minha cunhada utilizou e foi bem atendida. Não "deixô nada a desejá" (M 12), "[...] as pessoas estão bem satisfeitas com o atendimento [...]" (M 13).

Nas descrições acima, fica evidente a valorização atribuída às interações pessoais positivas estabelecidas, bem como à dinâmica de funcionamento. Esses depoimentos de valorização da atenção médica não obscurecem outras ações (...tem várias oportunidades), especialmente as de cunho educativo.

Preventivo e educativo

Outro aspecto destacado é o da qualidade das ações educativas desenvolvidas, como explicita M 9: "[...] as aulas que têm, elas explicam bem como é que deve sê, como não deve sê, como tem que cuidá [...]".

É dada importância às ações educativas do Programa, principalmente quando se referem ao Grupo de Gestantes, como se pode observar: "[...] muita coisa que a gente não sabe, a gente aprende lá. É o cuidado, como nasce o bebê [...]" (M 9), "[...] importante "prá todas as crianças, e evita muitas doenças" (M 6).

A aquisição de novas pautas de conduta durante a gestação é a estratégia perseguida pelo Programa para conter os coeficientes de mortalidade infantil, especialmente aqueles decorrentes da prematuridade.

Fica claro que há, por parte das usuárias, uma preocupação com a proteção específica de agravos e doenças, bem como com as questões educativas. No entender de Vasconcelos (1999, p. 25), é nesse campo educativo, no qual a saúde transita, que tem ocorrido a "criação de vínculos entre a ação médica e o pensar e o fazer cotidiano da população". Aposta-se nessa simbiose entre profissionais da saúde e usuárias para manter a adesão às ações desenvolvidas pelo serviço.

• Desconhecido-excludente

Embora o Programa de Assistência Pré-Natal seja valorizado por uma parcela das participantes do estudo por possibilitar o acesso à saúde, para muitas outras ele é desconhecido: "[...] talvez por um poco de falta de vontade de algumas e otras por não tê conhecimento. Que nem eu, não sabia que tinha" (M 20).

Para Cohn et al. (1999), largas parcelas da população estão submetidas a condições de profunda injustiça social, verificadas pelo nível de exclusão em que vivem e em virtude do desconhecimento da existência de certos serviços.

O Ministério da Saúde (BRASIL, 2000) entende que, no contexto da assistência integral da saúde da mulher, a assistência pré-natal possa atingir toda a população- alvo da área de abrangência da unidade de saúde. Prevê, para isso, a captação precoce das gestantes por meio de visitas domiciliares a serem realizadas, preferencialmente, pelos agentes comunitários de saúde.

No caso específico do Município de Marau, os depoimentos apontam para a inadequada captação da clientela-alvo, para quem a falta de divulgação seria um fator de exclusão da assistência prestada: "Talvez seja pela falta de conhecimento, [de saber] como funciona exatamente, porque não é muito divulgado esse tipo de coisa no nosso município" (M 1).

Assistencialista

Através de algumas falas, as usuárias entrevistadas demonstram uma visão assistencialista do Programa de Gestantes, caracterizado como serviço de caridade e de assistência social, e não como um projeto de promoção à saúde: "[...] é uma ótima coisa que inventaram pela Assistência Social" (M 4).

Essa percepção do serviço social, predominando sobre a concepção de serviço de saúde, mascara a desqualificação social contida nas falas. A desqualificação social corresponde, para Paugam (1999), a uma relação de dependência dos serviços sociais por uma população designada pobre e que acaba estigmatizada. Em vista disso, no momento em que as pessoas pobres obtêm assistência, confirmam sua condição de pobreza e acabam estigmatizando também o serviço como serviço para pobres, categorizado a seguir.

Serviço para pobres

As nuanças de assistencialismo estão fortemente impregnadas nas falas abaixo, nas quais é possível evidenciar a desqualificação social atribuída pelas participantes do estudo às usuárias do Programa de Gestantes: "[...] os pobres que precisam" (M 3);"[...] tem gente que não tem condições de pagá" (M 4).

O ponto de vista dessas participantes permite desvelar os vínculos que as mesmas estabelecem com o restante da sociedade, mesmo que pertençam a estratos sociais semelhantes. Nessa ótica, o SUS não é concebido como um sistema de acesso universal. Denotam-se resquícios da dicotomia existente antes da Constituição de 1988, em que o Ministério da Saúde abrigava "os não-contribuintes" em contraposição àqueles que tinham a assistência médica paga por contribuições previdenciárias suas e/ou de seus empregadores.

Essa diferenciação entre os "não-contribuintes" - que consumiam os serviços da rede pública de saúde, considerados de baixa qualidade e resolutividade - e os "contribuintes" - atendidos pelas instituições médicas conveniadas ao Instituto de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), seletivo e de caráter contributivo - impregna até hoje o imaginário social, delineando a lógica do "público e gratuito" como exclusividade dos pobres. Nessa situação, a gratuidade associa- se também à ineficiência. Assim, aqueles que dispõem de recursos financeiros buscam o atendimento no setor privado por acreditar que o pagamento direto assegura-lhes qualidade. Essa lógica conduz à negação da saúde como um direito universal. O acesso à assistência passa a ser feito, no entender de Cohn et al.(1999, p. 130), por "um direito assegurado, não pela condição de cidadão, mas pela ausência da exigência imediata de remuneração pelo serviço consumido" [grifo no original].

Quinze anos após a promulgação da Constituição Federal que garantiu a gratuidade e universalidade da saúde como direito de todo cidadão, constata-se ainda o fosso que separa o direito institucionalizado do seu exercício cotidiano. Analisando a universalidade do atendimento:

O SUS surgiu como instrumento para fazer com que os pobres parassem de pagar pela saúde. Mas, na visão de seus mentores, não bastaria tornar a saúde acessível e gratuita somente para os pobres. A divisão entre uma saúde gratuita para os pobres e outra paga para os ricos poderia levar a prestação de serviços de segunda classe para os pobres e de primeira classe para os ricos. (MÉDICI, 1999, p. 130)

A diminuição dessa desigualdade social deverá desafiar os profissionais da saúde e de áreas afins que atuam no Município de Marau. Afinal, a busca dos princípios do SUS é uma tarefa permanente de (re)construção da conscientização política, social e da saúde.

Dificuldades sentidas pelas mães de crianças prematuras para freqüentar o Programa:

DIREITO BLOQUEADO, DIREITO ABNEGADO

As dificuldades em freqüentar o Programa de Assistência Pré-Natal, alegadas por essas mães podem ser categorizadas dessa forma:

Acesso: geográfico e operacional

O acesso ao serviço, geograficamente distante das suas residências, é mostrado pelas usuárias: "[...] não podia caminhar e eu tinha que pegá táxi a cada ida ao médico. E foram várias vezes" (M 18).

A proximidade, portanto, constitui um fator facilitador na utilização de um serviço de saúde. Muito mais quando se considera o tipo de serviço: emergencial, terapêutico, preventivo. Para os dois primeiros, dada a sua maior complexidade, a população investe grande esforço na construção de estratégias de acesso. Entretanto, quando o serviço é preventivo e "distante", seja do ponto de vista geográfico ou operacional, a tendência é de resistir, evadir-se, esquecer. Se for objetivo manter a adesão às ações programadas, estratégias, então, devem ser buscadas pelo serviço de saúde.

Na questão do acesso, dois aspectos devem ser considerados:

1) serviços de saúde costumam aglomerar-se em regiões onde existe complementaridade entre atenção primária e hospitalar;

2) morando em regiões de pior acesso, o custo de transporte passa a ser um dos principais fatores que impede o deslocamento das classes menos favorecidas a um serviço de saúde (MÉDICI, 1999).

Outro aspecto que dificulta a acessibilidade diz respeito ao fator funcional do serviço: "[...] era quando a gente tinha que esperá o número de fichas" (M 3); "[...] As dificuldades que eu enfrentei foi tê que ficar esperando no consultório bastante tempo pra sê atendida" (M 14).

Se para algumas entrevistadas houve a percepção da agilidade no atendimento e facilidade de acesso às consultas, para outras, esses são fatores dificultadores para a freqüência ao programa.

Nas descrições acima, percebe-se uma insatisfação das usuárias com o sistema de agendamento e de espera do serviço.

• O trabalho como impedimento e o direito abnegado

A preocupação com o trabalho, o que impede muitas vezes a mulher de fazer o acompanhamento pré-natal, é vista nestas falas: "A maior [dificuldade] seria só saí do trabalho, pedi prô chefe pra saí... (M 20);"[...] conciliá o trabalho com os horários de consulta" (M 15).

Revela-se, nas falas acima, um temor das mulheres por ausentar-se do trabalho na condição de gestante, com risco de perda do emprego, uma vez que há falta de estímulo por parte do empregador para o cuidado com a saúde, assim como a insensibilidade às necessidades e ao direito de assistência pré-natal para a mulher grávida trabalhadora. Fica explícito também o desconhecimento dos direitos: a liberação do trabalho para tratamento de saúde, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho, no seu Art. 392, § 4º II, que garante à empregada, durante a gravidez, sem prejuízo do salário e demais direitos: "Dispensa do horário de trabalho pelo tempo necessário para a realização de, no mínimo, seis consultas médicas e demais exames complementares" (BRASIL, 2003).

Conhecer e fazer valer seus direitos, tanto para a trabalhadora grávida quanto para qualquer outro cidadão, é fundamental para o resgate da cidadania. Para Schirmer (1997, p.111), "apesar das dificuldades, as mulheres não pretendem abrir mão das conquistas sociais que tiveram à custa do trabalho remunerado. Ter uma renda significa uma arma na luta pela negociação da própria maternidade". Contudo, parece faltar-lhes coragem para usufruir dessas conquistas.

Motivos alegados pelas mães para a não adesão ao programa: OS ESCUDOS PSICOSSOCIAIS Na compreensão das mães, os aspectos que contribuíram para a não adesão ao Programa de Assistência Pré-Natal são:

Preconceito com o serviço "público"

Para algumas mulheres participantes deste estudo, observa-se um desmerecimento do serviço público, o que evidencia o preconceito em serem atendidas pelo serviço de saúde municipal: "Não fui no grupo de gestantes porque eu tinha acompanhamento bom. Não precisei i" (M 6); "[...] como eu estava pagando particular, eu não fui atrás" (M 1).

Percebe-se, das entrevistadas, uma supervalorização do atendimento privado ou do convênio em detrimento do serviço público, insinuando até mesmo uma insatisfação com a qualidade deste, apesar de sabermos que, historicamente,

o modelo econômico gerou no setor saúde uma prática diferenciada e excludente para os distintos segmentos da sociedade, consolidando-se a concepção do direito à saúde como possibilidade de acesso a uma assistência médica precária e de eficiência duvidosa.

• Desinteresse

Ao desinteresse das usuárias participantes deste estudo, foi atribuída boa parte dos fatores que contribuíram para a não-adesão ao Programa de Pré-Natal: "Eu acho que é falta de interesse delas, porque é uma coisa muito importante" (M 22).

Ao mesmo tempo que as mães ouvidas no estudo reconhecem a importância do programa, elas realizam uma autocrítica que define o pouco interesse na sua participação. Talvez esse fato possa ser atribuído à concepção de gestação como um estado fisiológico que dispensa atendimento profissional. Uma investigação mais criteriosa sobre esse aspecto poderá contribuir para o redimensionamento das ações do programa, seja sob a forma de uma sensibilização mais eficaz da clientela-alvo, seja na extensão das orientações sobre o ciclo vital e, particularmente, sobre a gestação, aos vários grupos sociais. Uma rede de informações básicas sobre a assistência pré-natal deverá ser permanentemente alimentada para que os profissionais vinculados ao Programa Saúde da Família e ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde possam efetivamente manter as gestantes vinculadas ao Programa de Assistência Pré-Natal do município.

• Medo

Pelas falas de algumas mulheres, revela-se o fator medo como uma das dificuldades para a não adesão ao Programa de Pré-Natal: "Talvez por causa do medo" (M 21); "Não sei. Umas dizem que tem medo de i até lá" (M 16).

Infelizmente esse fator não foi aprofundado no momento da entrevista com as usuárias, o que nos impede de especificar as razões do medo relatado pelas mesmas. De qualquer forma, uma situação atemorizante pode ser considerada incompatível com o acolhimento preconizado para a clientela do SUS. O que pode ser observado entre as entrevistadas, e que talvez possa justificar essa categoria, foram as diferenças culturais existentes entre elas. Essas diferenças podem ser ter sido determinantes ao impedir as mulheres de procurar o serviço de pré-natal pelo medo de enfrentar situações novas.

• Ocultação da gravidez

Outro motivo que contribui para a não-adesão ao programa foi a ocultação da gravidez; nesse caso, em especial, por se tratar de uma mãe adolescente: "Não fiz porque os meus pais não sabiam que eu estava grávida" (M 21).

A gravidez na adolescência requer dos profissionais de saúde a sensibilidade necessária para oportunizar a expressão das dificuldades emocionais bloqueadoras das relações familiares, evitando-se, com isso, a ocultação da gravidez, com todos os inconvenientes e riscos associados a essa situação.

A inclusão tardia da gestante na assistência pré-natal pode dificultar o diagnóstico precoce de problemas relacionados à mãe ou ao bebê, aumentando os fatores de risco já presentes na gravidez na adolescência. Essa faixa etária comumente mostra resistência ao atendimento de saúde, o que torna ainda mais difícil a sua captação, quando em estado gestacional. Contudo, pela vulnerabilidade própria dessa fase, políticas próprias e criativas voltadas ao atendimento desse público deverão merecer atenção dos gestores de saúde.

• Violência doméstica

Para uma das mulheres participantes do estudo, o motivo alegado para a não- adesão ao Programa de Gestantes foi a violência que sofria em casa: "A minha única dificuldade era por causa do marido, que bebia, que eu sempre apanhava dele [...]" (M 15).

Mulheres que vivenciam situações de violência por parte dos seus companheiros muitas vezes não se libertam dessas relações, apesar de terem plena consciência dos ganhos que poderão advir disso. Sendo assim, raramente elas tomam para si

o peso resultante da culpa e o ônus de ter que arcar sozinhas com a opção de separar-se de seus agressores e, por isso, continuam a conviver em situações crônicas de violência.

Infelizmente, muitas mulheres, temendo uma reação ainda mais violenta de seu agressor, não fazem denúncias aos órgãos competentes que hoje formam uma rede de Delegacias da Mulher em todo o mundo. E, por esse motivo, os registros oficiais não revelam a magnitude do problema.

Um Programa de Assistência Pré-Natal que não é parcimonioso no acolhimento e participação do pai nas ações de saúde apresentará desvantagens, ao captar agressores potenciais ou efetivos que, pela oportunidade de acesso ao conhecimento e educação proporcionadas nos atendimentos individuais e grupais, poderia repensar a sua atitude. Por outro lado, a inclusão do pai no processo de gestação, parto e atendimento ao recém-nascido constitui-se um neutralizador da violência doméstica, por oportunizar a formação de vínculos afetivos mais sólidos com os membros da família.

Somente a educação e o acompanhamento profissional, assumido de forma multidisciplinar, poderão interromper o ciclo da violência doméstica. Num programa que tem na geração da família o seu objeto de trabalho, essa perspectiva não pode ser negligenciada.

Considerações finais

A preocupação dos gestores de saúde do Município de Marau - RS, com o aumento da mortalidade infantil em crianças prematuras e a baixa adesão ao Programa de Assistência Pré-Natal, despertaram a necessidade de conhecer os motivos alegados pelas mães das crianças nascidas prematuramente para essa abstenção. Entre esses motivos, destacam-se a ocultação da gravidez, o desconhecimento do programa, o preconceito com o serviço público, o desinteresse das usuárias, o medo e a violência doméstica. Tais motivos desvelam parcialmente as questões psicossociais, e sugerem a necessidade de inserir no programa ações de saúde mental. O espaço de escuta e as intervenções profissionais específicas poderão contribuir para a retenção das gestantes e para a integralidade do atendimento de saúde. Além desses indicativos para o redimensionamento da assistência prestada, os profissionais e gestores deverão considerar também o desconhecimento da estrutura e funcionamento do Sistema Único de Saúde, o que mantém essa população-alvo com limitada conscientização acerca das políticas sociais e de saúde. Essa condição de subcidadãs interfere na adesão ao atendimento, mantendo-as em situação de maior vulnerabilidade social e de saúde. Campanhas de conscientização sobre os direitos sanitários mostram-se, então, necessárias.

Os resultados obtidos desafiam as autoridades de saúde a ampliar a divulgação do serviço, implantar um atendimento diferenciado para as gestantes adolescentes, capacitar uma equipe multidisciplinar para a detecção e captação de vítimas da violência doméstica, e descentralizar e dinamizar as ações de assistência pré-natal.

O estudo teve, entre outras limitações, a pouca exploração das raízes do medo alegado como motivo para a não-adesão ao Programa. Um trabalho específico poderá preencher essa lacuna e desvendar outras facetas psicossociais não evidenciadas aqui.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Assistência pré-natal: manual técnico. Brasília, DF, 2000.

BRASIL. Ministério do Trabalho. Consolidação das Leis do Trabalho. 30. ed. atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2003.

COHN, A. et al. A saúde como direito e como serviço. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999. FREITAS, F. et al. Rotinas em obstetrícia. 4. ed. Porto Alegre: Art Med, 2001.

MARTINS-COSTA, S. H.; RAMOS, J. G. L. Gestação de alto risco. In: MIURA, E.; PROCIANOY, R. S. Neonatologia: princípios e prática. 2. ed. Porto Alegre: Art Med, 1997. p.20-24.

MEDICI, A. C. Uma década de SUS (1988-1998): progressos e desafios. In: GALVÃO, L.; DIAZ, J. Saúde sexual e reprodutiva no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1999.

MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.

PAUGAM, S. O conceito de desqualificação social. In: VÉRAS, M. P. B. ( Ed.). Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: EDUC, 1999.

SCHIRMER, J. Trabalho e maternidade: qual o custo para as mulheres? In: OLIVEIRA, E. M. et al. Trabalho, saúde e gênero na era da globalização. Goiânia: AB, 1997.

VASCONCELOS, E. M. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec, 1999.

Lisiane Elisabete Dall’Agnese1 Lorena T. C. Geib2
lorena[arroba]upf.br

1. Enfermeira da Unidade de Saúde da Família, Secretaria Municipal da Saúde de Marau-RS. E-mail: variza[arroba]portalnet.com.br

2. Enfermeira, Professora Titular do Curso de Enfermagem da Universidade de Passo Fundo, Mestre em Enfermagem (UFSC), Orientadora.

3. Fonte: Coordenadoria de Informação em Saúde - CIS/SS-RS. 2001.



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