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Saber popular sobre dores nas costas em mulheres nordestinas (página 2)

Giselle Notini Arcanjo

As cartas e declarações de Promoção da Saúde explicam mudanças na educação e no ensino dos profissionais da área de saúde, para que as pessoas sejam vistas e assistidas na integralidade do seu ser. Relatam que os serviços de saúde hão de manter uma postura abrangente e que respeite as peculiaridades culturais, além de uma participação ativa das pessoas na modificação do modo de viver8.

Ante tais reflexões, acreditamos que o modo de pensar e agir da população na sua vida cotidiana, ou seja, o Modelo Explicativo Popular9,10 da dor da coluna, torna-se relevante e deve ser desmistificado e questionado. O que as pessoas pensam sobre as causas de suas dores na coluna? Como essas dores modificam o seu estilo de vida? O que provocam nestas pessoas? O que lhes falta para terem melhor qualidade de vida? Quais as estratégias de enfrentamento para superar ou minimizar a dor?

Em meio a uma multiplicidade de conceitos, para Ferreira11, a dor é uma experiência subjetiva, privada, e sua percepção e tolerância variam significativamente conforme o grupo social. A sensação da dor, os comportamentos que a envolvem, até as atitudes, dizem respeito às expectativas do sujeito, suas experiências e bagagem cultural. Helman12 defende o argumento de que cada cultura tem a própria linguagem para representar a dor, sendo vários os exemplos de como a sociedade pode a ela reagir, aduzindo, ainda, o fato de que, em algumas culturas, a exposição pública da dor refere significados sociais. Ele compara culturas onde pessoas são mais expansivas e outras mais contidas, sendo que as primeiras tendem a dramatizar a dor ao passo que a outra se inclina a negá-la.

Desde os anos 1980, pesquisadores como Good2, Kleinman10 e Nations13, da Universidade de Harvard - Escola de Medicina, argumentam que a saúde e a doença, inclusive a dor, são culturalmente elaboradas, interpretadas e vivenciadas, requerendo, assim, investigações antropológicas para compreender os seus significados e impacto no cuidado clínico. Recentemente, Czeresnia et al.14 reafirmaram que a saúde e a doença correspondem a experiências singulares e subjetivas e, portanto, existe uma desigualdade de práticas e conhecimentos entre as pessoas, o que torna relevantes uma reflexão e uma interação dos saberes do senso comum com o científico, para que se providenciem instrumentos para o enfrentamento e solução destas dificuldades. Vasconcelos7 acrescenta que a percepção do processo saúde-doença é influenciada pela posição social e pela cultura em diferentes épocas da sociedade de referência dos indivíduos.

É importante que o profissional de saúde descubra, sob o prisma antropológico, os signos e significados da doença, a experiência vivida pelo doente e como lida com ela, reconhecendo que a partilha de experiências conduz à feitura de um modelo de cuidado da saúde no qual todos os atores sejam envolvidos, em discussão, planejamento, educação e na resolução dos problemas7,9,10,15,16. É comum observar que as ações dos indivíduos e definições populares da doença não são consideradas nos sistemas de serviços de saúde e no modelo biomédico, resultando freqüentemente em revoltas e resistências populares às intervenções17.

Tentando compreender como as pessoas percebem a dor na coluna e se comportam diante dela, procuramos analisar os modos de enfrentamento empregados para minimizar o problema de saúde vivenciado, na opinião de mulheres que participavam de um grupo de apoio à saúde de mulheres no climatério numa instituição de ensino em Fortaleza, Ceará, Brasil. Estamos cientes de que as respostas desta pesquisa podem nos guiar para condutas terapêuticas mais eficazes.

Métodos

Empregamos uma abordagem antropológica e a narrativa da enfermidade10,18 para descobrir e compreender a experiência vivida por mulheres que têm dores na coluna.

As participantes foram selecionadas a partir de um grupo de apoio à saúde da mulher que existia numa instituição de ensino superior em Fortaleza, Ceará, Brasil, do qual participavam 40 mulheres. Durante uma das reuniões do grupo, discutimos sobre dores nas costas e 29 mulheres que referiram tê-la responderam a uma escala visual analógica de 0 a 10 com objetivo de quantificar o grau da dor. Após este procedimento, selecionamos 23 delas, que demonstraram um grau de dor igual ou superior a 4 (quatro). A partir desta classificação, a dor é considerada como de intensidade moderada e que incomoda, tornando mais insuportável e incapacitante à medida que aumenta o grau. Da mesma forma, na opinião das mulheres, era uma dor que causava desconforto e prejudicava o desenvolvimento das atividades do dia-a-dia. Das 23 convidadas a continuar na pesquisa, apenas nove compareceram à entrevista que foi realizada de forma semi-estruturada, na qual exploramos em profundidade um roteiro de três (03) questionamentos: 1) quais as causas e as conseqüências da dor na coluna nessas mulheres? 2) Quais as estratégias utilizadas para enfrentar a dor? 3) Qual a noção de qualidade de vida experimentada por elas? Todas aceitaram prontamente participar da entrevista, a qual foi gravada e as observações livres foram registradas num diário de campo. A pesquisa foi realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2005, fundamentada nos princípios éticos, conforme a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.

Os dados foram agrupados, codificados e analisados de acordo com o modelo de sinais, significados e ações19, que possibilitou a interpretação da percepção e explicação do problema, das reações e ações desencadeadas pela dor. Analisamos os depoimentos convergentes e divergentes, enfatizando os significados no contexto pessoal, social e cultural das mulheres.

Resultados e discussão

As mulheres tinham idades entre 45 e 58 anos e queixavam-se de dores na coluna num tempo médio de mais de dois anos. A maioria (5) estudou até o ensino fundamental, três eram analfabetas e apenas uma estudou até o ensino médio. Todas eram donas de casa e, destas, três tinham outro emprego. A renda familiar média entre as mulheres era de um salário mínimo, com as condições de moradia desfavoráveis e situação financeira e social precárias. Esta circunstância de vida poderá proporcionar ambientes inadequados, estilos de vida insatisfatórios, alimentação incorreta e dificuldades de acesso à assistência à saúde, e, assim, esses elementos podem ser considerados significativos no agravo da dor. Portanto, estas mulheres identificam e buscam diferentes formas de cuidados de acordo com o próprio conhecimento cultural.

Na opinião das participantes do ensaio, as causas das dores, ou seja, a etnoetiologia, decorrem das "posições erradas" e "trabalho pesado" e também são conseqüências da idade. Outra causa revelada foi de anestesia que tomaram em cirurgias anteriores ou problemas de ordem anatômica. As mulheres sabem a causa da dor por haver sido esta referida pelo médico ou por experiências pessoais, de membros familiares ou amigos. Alguns depoimentos apontam para este conhecimento:

"[...] depois que eu aumentei de peso e que estou mais barriguda, eu sinto aquele peso na espinha, pois antes quando eu era fininha eu não sentia!"

"O médico disse que tenho artrose, mas não sei o que é [...]"

"[...] o problema é mais a idade, pois quando eu era nova, não tinha essa dor na coluna. É... tem hora que os ossos vão ficando fracos".

"[...] eu já fiz muitas cirurgias que precisei de anestesia e a dor começou depois disso. Então eu acho que foi da anestesia, tem muita gente que diz isso".

Segundo Almeida et al.20, as algias da coluna vertebral também podem advir de sobrecargas, em conseqüência de má postura, disfunção dos tecidos moles e articulações, um processo traumático ou patológico ou uma combinação destes. A maneira como são entendidas as causas das dores na coluna exprime a visão do modelo biomédico já imposto, embora não seja compreendida de forma coerente pelas pessoas.

Observamos que outras atividades relatadas trazem como conseqüência dores na coluna - como carregar baldes de água, dormir na rede - que são costumes vistos na região Nordeste e por isso podem ser traduzidos como atividades de risco cultural:

"[...] tem redes que são muito ruins que também dá dores, as fundas que são piores [...]"

"[...] quando eu durmo de rede eu fico toda entrevada".

"Eu sinto muita dor quando tenho que buscar água, às vezes longe da minha casa. Eu tenho que estar todo tempo enchendo o balde e carregando e por isso tenho que várias vezes levantar peso."

"[...] e u tomo banho de cuia."

Com efeito, verificamos que a experiência de vida também facilita a identificação da causa da dor e do porquê de seu aumento, ou seja, pela posição do corpo adotada na rede enquanto dorme, o tipo de rede, a condição e a forma de tomar banho ou buscar água para uso doméstico. Estas ações têm relação com o baixo nível socioeconômico e podem dificultar nas decisões de dormir melhor e no abastecimento de água em sua residência. O termo "entrevada" é comumente usado pelas pessoas com dores nas costas, que significa rigidez das articulações e aumento da tensão muscular e pode ser simbolizado pelo movimento corporal prejudicado causado pela dor.

As perturbações em conseqüência da dor

Na visão das mulheres, a dor traz desajustes de impacto pessoal e social. As perturbações relacionavam-se às pessoas com dores na coluna que as mulheres diziam conhecer, independentemente da faixa etária, sexo ou classe social, e podem ser apresentadas de várias formas:

"Tenho uma amiga que já está idosa e está se curvando".

"Conheço um rapaz que tinha dor na coluna e não podia nem andar direito se escorando nos cantos".

"Tem uma senhora perto da minha casa que tem dor na coluna e passa 2 a 3 dias arriada numa cama".

As palavras "se curvando", "se escorando" e "arriada" podem significar o grau da dor e como essas mulheres reagem a esta condição.

A idéia popular de cronicidade da sintomatologia foi relatada em todas as entrevistas, e constatamos que "melhora, mas não fico boa" e "me acostumei com a dor" são relatos sempre registrados por pessoas que se queixam de dores na coluna. Nos depoimentos, podemos identificar a falta de esperança de cura, exigindo dos indivíduos que exerçam medidas da própria vivência e até mesmo se determinar a conviver com a dor, como podemos constatar nas falas:

"Vou ao médico 3 em 3 meses devido as marcações feitas no posto de saúde que freqüento, mas toda vez que vou, sempre estou sentindo dor. Aí melhoro, mas não fico boa".

"Um dia eu estou melhor, outro dia estou pior e assim vou levando a vida. Acho que nunca mais vou ficar boa devido à minha idade, minha doença é antiga".

Nestes depoimentos, podemos questionar o que falta no serviço para que essas mulheres possam melhorar da dor? Será que a associação de tratamentos medicamentosos com a conscientização de melhores posturas corporais no cotidiano pode permitir a melhora ou cura deste estado de dolor? Percebe-se que uma assistência multiprofissional no manejo da dor na coluna pode favorecer um tratamento contínuo e adequado, possibilitando um melhor controle da sensação dolorosa.

Conforme depoimentos, a dor causou limitações sociais, psicológicas e físicas, interferindo com maior intensidade no trabalho e nas atividades do cotidiano:

"[...] quando estou com dor me sinto incomodada e chateada, pois me impede de ir para algum lugar, não agüento andar muito, sentar, pegar um peso, carregar água ou fazer um trabalho, pois de todo jeito a dor aparece".

"[...] não posso pegar peso, subir em alguma coisa, arrumar a casa, tenho que mandar alguém fazer e isso é muito ruim, a vida vai ficando mais complicada, pois eu não gosto de depender dos outros".

"Eu gosto de arrumar minha casa, puxar as coisas do canto, tirar as coisas do lugar, passar pano, agora eu não posso mais fazer. Aí é muito ruim. Queria ser o que eu era, fazer tudo".

O grau de dependência causada pela dor limita a satisfação pessoal e de vida quando as mulheres referem incômodo, chateação, complicação e dificuldade de realizar tarefas de sua competência.

Desta forma, a dor traz vários problemas com dimensões políticas, econômicas e socioculturais6. No estudo sobre Modelos de Crenças em Saúde aplicado a funcionários públicos com dores na coluna, Knoplich21 observa que fatores demográficos e sociopsicológicos, assim como condições adequadas da estrutura médico-sanitarista, podem alterar a percepção do indivíduo em relação a sua saúde, influenciando no comportamento das pessoas.

Notamos nas falas que a presença de dor reflete socialmente na vida pessoal mediante rótulos, quando referem que a pessoa é "inutilizada". Existem denominações classificatórias, ou seja, graus de taxinomia que podem ser de menor estigmatização até a graduação mais elevada, sendo menos ofensiva quando chamada de "dengosa", até a mais alta prerrogativa "aleijado", "inutilizado". Assim, é fácil perceber que há uma identificação cultural com a palavra "descadeirado" que se traduz como lombalgia. Este rótulo cultural pode relacionar-se a um desajuste e a um preconceito pessoal, no trabalho e na sociedade, e, às vezes, as depoentes são desacreditadas nas suas colocações em relação à dor. Como exemplo, temos as seguintes verbalizações:

"[...] a minha filha é toda torta e meu irmão está inutilizado devido à hérnia de disco".

"Ás vezes fico toda descadeirada que não posso nem me abaixar".

"[...] uma vez minha irmã perguntou o que eu tinha e me chamou de dengosa. Outra vez eu estava com uma dor tão grande que fiquei sem respirar e minha filha disse que eu era muito mole".

A percepção de medo também foi encontrada, podendo ser uma sensação que resulta em resistências e obstáculos que as impede de ter uma vida normal. Segundo Lima et al. 22, pessoas com dor crônica têm a crença de que não a podem controlar e fazem tudo para evitá-la, entrando na decisão de aceitar a dor e de reorganizar o seu mundo de vida e isto podemos encontrar na fala:

"Tenho medo de fazer algum trabalho que exija maior esforço ou aquele que me cause a dor".

Na perspectiva de Neto23, por medo, passamos a não viver novas experiências, estacionando e dificultando situações de vida, produzindo insegurança, tabus, irrealidades, superstições, conceitos errôneos e preconceituosos, o que assimilamos de forma verbal ou em gestos. O medo pode significar a preocupação de que, no futuro, a dor cause perdas físicas e até mesmo sociais, o que pode ser exemplificado na fala:

"[...] tenho medo de ficar aleijada".

A dor, quando se torna crônica, compromete o lazer, sono, apetite, atividade sexual e profissional, resultando no estresse, na diminuição da resposta imunológica, podendo causar depressão e, conseqüentemente, perdendo boa parte de sua qualidade de vida. Como parte da definição de qualidade de vida, uma das entrevistadas reportou-se ao fato de que não consegue dormir e, conforme todas elas não agüentam trabalhar em conseqüência das dores.

"Minha coluna dói à noite e por isso não consigo dormir direito, pois acordo muito com dor e passando mal sem conseguir me virar da cama".

"A dor me impede de pegar peso, subir em alguma coisa, arrumar a casa e por isso tenho que mandar alguém fazer e isto é muito ruim".

A dor pode resultar na exteriorização de outros sentimentos psíquicos, como depressão, irritabilidade, baixa da auto-estima, ansiedade, insegurança. Dahlke24 explica, mediante os mecanismos psicossomáticos, que a doença apresenta características simbólicas e sugere que a dor nas costas pode significar um grito de socorro por apoio de alguém, desgosto e carga existencial. Desta forma, a origem e as conseqüências da doença devem ser investigadas em todas as suas dimensões para que o processo de cura seja desenvolvido de uma forma mais completa. Estes sentimentos podem ser observados em uma das falas que comenta como a dor interfere na sua vida:

"Só que quando estou doente, com dor, dor na coluna a minha vida piora muito, pois não posso nem me levantar, não quero falar com ninguém, fico triste, deprimida e passo o dia deitada".

Qualidade de vida e condições para atingi-la

Viver bem envolve aspectos socioculturais e do bem-estar físico e espiritual. A definição de bem-estar aludida por Briceño-León25 envolve as condições históricas e o contexto dos saberes de cada sociedade, da maneira como esta imagina o próprio bem-estar, os produtos e a tecnologia disponível e a atenção médica. Com efeito, o bem-estar é o modo como cada sociedade estabelece seus ideais, as aspirações que pretende materializar e os meios disponíveis para fazê-lo. Identificamos na fala seguinte a idéia das respondentes de que:

"Ter uma vida boa não é só conforto, vaidade, é primeiramente ter Deus em nossa vida, segundo, é ter paz, união, amor com a nossa família, filhos, marido, amigos, vizinhos, porque se você não tem paz, união e amor como é que vai ser? Porque nós não podemos viver sem um amigo, sem apoio, viver de mal com o outro".

O discurso apresentado exprime certa conformidade, pois indica a noção de que, mesmo com dor ou situação de vida difícil em que vivem, a segurança obtida diante da fé, da presença e do apoio da família e amigos pode amenizar qualquer tipo de problema.

Os saberes e práticas das entrevistadas também podem ser influenciados por experiências de vida adquiridas em situações anteriores. Fatores como a dieta e o estilo de vida também podem ser incluídos como melhora do estado de saúde, segundo o relato:

"Se eu quiser melhorar preciso ter um repouso, tomar uma medicação e se não tiver uma boa alimentação não tem jeito de melhorar".

Kleinman9,10 informa que o Modelo Explicativo Popular traduz o conjunto articulado de explicações sobre a doença e o tratamento, ou seja, que a interpretação das ações desenvolvidas para lidar com as suas aflições parte de uma lógica explicativa, característica de um determinado modelo de conhecimento científico. Neste sentido, acreditamos que as entrevistadas organizam e interpretam a explicação de sua sintomatologia e a racionalizam, de acordo com sua experiência, dando subsídios para suas condutas e decisões quanto ao tratamento.

As barreiras que impedem melhor qualidade de vida vão do nível do macrossistema, incluindo o sistema de governo, as instituições e o sistema econômico, até o plano do microssistema, como pessoal, íntimo, cultural e força pessoal. O tipo de assistência médica pode ser um dos fatores que impedem a melhora de seu quadro clínico e da qualidade de vida e a continuação dos seus sintomas. Comprovamos que, apesar da busca pela melhora da qualidade de vida, problemas físicos, persistentes e dolorosos - como a dor na coluna podem se tornar uma procura frustrante e impossível, no que se refere à falta de recursos e à dificuldade de uma vida melhor.

"A gente não pode, não tem condição de plano de saúde. A gente tem dificuldade e agora está pior, a gente vai pro posto de saúde não tem médico pra atender na hora, tem que agendar e a gente vai deixando e acaba não indo ao médico".

"Vida boa é ter minha saúde e ter um emprego pra trabalhar pra ter dinheiro pra pagar as dívidas".

Para alcançar boa qualidade de vida, é também necessário ter apoio social, político e ético. As mulheres, de modo geral, sabem do que precisam e do que seria melhor para sua qualidade de vida e saúde.

A Organização Mundial de Saúde26 contempla aspectos de promoção, prevenção, cura e reabilitação da saúde, com um apoio significativo do governo e da população, atendendo às políticas. Com este perfil, devem ser determinadas intervenções necessárias para a assistência médica, para melhorar conhecimentos, atitudes, habilidades, reduzir custos governamentais - à medida que diminuem as filas nos postos de saúde - melhorar a prestação de cuidados, reorientar os serviços de saúde, no sentido de prestarem cuidados de qualidade, acessíveis, adequados, oportunos e que respondam às necessidades específicas da população.

Infelizmente, o sistema de saúde brasileiro continua ainda dando ênfase à assistência médico-hospitalar, nos serviços de apoio diagnóstico e terapêutico e ao modelo assistencial sanitarista (campanhas, mutirões, programas especiais e ações de vigilância epidemiológica e sanitária), mas iniciativas de redirecionamento de suas ações em promoção, prevenção, recuperação e reabilitação no plano primário de atenção em Medicina Social, seja nas dimensões individual ou coletiva, indo além da exclusividade médica, já podem ser vistas14.

Além disso, Ferreira11 também cita a dificuldade de alguém buscar auxílio médico, uma vez que pode implicar a falta ao trabalho, fazendo com que continue a realizar suas atividades mesmo com dor, procurando assim recursos alternativos, como a medicina caseira e outros. Esse autor compreende, então, que a percepção da dor e sua tolerância fazem com que o indivíduo se contente em tomar um remédio no lugar de procurar um médico.

Nos discursos, foi mencionado que os níveis de conscientização podem ser uma das barreiras para a manutenção do tratamento e um dos fatores que impedem a melhora:

"[...] a gente lembra de fazer a coisa certa quando está com dor, sem dor ninguém lembra de fazer não! Eu me cuido quando eu estou com dor, quando estou sem sentir nada, nem me lembro".

Alves et al.27,28 argumentam que a pessoa só procura tratamento quando atribui relevância a algum distúrbio biológico que afete sua interpretação da normalidade, ou quando não consegue mais desempenhar normalmente as tarefas cotidianas. O comportamento do enfermo relaciona-se aos seus valores culturais, estruturas familiares, gênero e idade, de sorte que a escolha do tratamento está fortemente relacionada às necessidades e condições financeiras da família:

"[...] vou ao médico somente quando estou sentindo muitas dores na coluna".

Formas de enfrentamento para melhora da dor nas costas

As formas de enfrentamento do problema são de vários jaezes, desde atitudes físicas, educacionais e psicossociais até alimentação. As estratégias variam de acordo com as condições de cada um nos aspectos sociais, nível de conhecimento em relação à sua patologia e educacional. É sensível o fato de que, quanto maior o conhecimento, mais formas de enfretamento foram observadas, indicando que, quanto maior a informação, maiores e melhores eram as atitudes de melhor qualidade de vida e tentativa de cura, como pode ser visto nos depoimentos de quem apresenta dor lombar:

"[...] quando a rede é muito funda eu pego o travesseiro e coloco debaixo da coluna e melhora".

"Para melhorar da dor me deito no chão".

As atitudes comportamentais variam de acordo com o nível de vida que desenvolvem. A condição de deitar no chão é feita por muitas pessoas por acreditarem que desta forma possa diminuir a dor.

O uso de automedicação, de géis e automassagens são os recursos mais utilizados e isto pode decorrer da dificuldade da assistência, cópias das receitas anteriores ou de experiências vividas da doença de outras pessoas de seu convívio social. Em estudo de Mandu et al 29, também foi encontrado o uso constante desta prática pelos participantes da pesquisa e que é favorecido pela facilidade de adquirir o produto e proximidade com pessoas de mesma identidade cultural e social, tornando mais rápido o acesso à resposta desejada. Na compreensão de Ferreira30, o doente seleciona os medicamentos mediante o auxílio de membros familiares, vizinhos e balconistas de farmácia e, por esta automedicação, passa a controlar o desenvolvimento de sua cura à medida que decide o quanto e quando tomar. Nos desabafos essa atitude aparece:

"[...] quando estou sentindo muita dor nas costas, eu tomo um comprimido de Butazona, mas só quando estou sentindo muita dor mesmo, aí eu tomo 1 a 2 comprimidos e aí melhoro".

"[...] lá tem o pessoal que vende um gel, aí eu passei e aliviou mais".

Géis e medicamentos populares, que se dizem "milagrosos", podem ser vistos sendo vendidos de forma ilegal na comunidade, sem comprovação científica, mas que, pela experiência popular, têm resultados satisfatórios e até conduzem à cura.

Segundo as mulheres, a fé em Deus e confiar nele é o primeiro passo para que possam viver bem, o que pode ser visto como um dos caminhos para se chegar à cura, conforme é simples identificar nas falas:

"Para mim, ter uma boa vida é a pessoa estar em paz consigo mesma, e todo dia agradecer a Deus, por tudo o que ele faz e o que nós temos, por ainda estar viva mesmo se arrastando e gemendo!"

"Eu acho boa a minha vida, pois confio muito em Deus, por maior que seja a atribulação, coloco Deus na frente. Não fico me mal dizendo [...]"

O papel da fé na terapêutica é disposto, seja na crença ou nas técnicas para consegui-la. Para minimizar a dor, as pessoas do povo incorporam uma espécie de conformidade. Segundo Rabelo31, a fé transforma uma situação insuportável em uma experiência aceitável e com a qual é mais fácil de lidar, no sentido em que o doente redireciona sua atenção a novos aspectos ou à percepção de sua sintomatologia. As mais recentes pesquisas evidenciam a ligação entre a saúde, crenças e práticas espirituais, incluindo a prece, o comparecimento a serviços religiosos e a fé em Deus. A crença e a religião podem prevenir doenças, promover a saúde e bem-estar, no momento em que influenciam comportamentos saudáveis, orientação para melhor lidar com a dor, maior compreensão e aceitação frente a este estado, propiciando o otimismo e a esperança, estimulando reações curativas do corpo.

Neste sentido, vislumbramos a importância e a compreensão das pessoas quanto aos aspectos preventivos e do autocuidado. A referência de se fazer uma orientação mais adequada em pessoas que podem ser multiplicadoras de ações e saberes pode ser essencial para atingir estes objetivos. Assim, apesar de terem, na sua maioria, baixa escolaridade, as informantes apresentam visão holística de saúde, valores pessoais e comunitários que devem ser acionados, a cada momento, para manterem-se saudáveis e continuarem a vida com melhor qualidade.

Diante destes relatos, notamos a importância de avaliar o significado da doença e da dor, para compreender as dimensões que atingem a qualidade de vida e, desta forma, guiar-nos quanto a atitudes e terapêuticas mais eficazes. Desconhecer a realidade do doente e suas ações individuais pode ser uma das barreiras para maior interação terapêutica.

Conclusão e sugestões

Compreendemos que a dor na coluna, por não ser considerada uma doença grave, convive com as mulheres participantes do estudo, deixando-as em situação de cronicidade e, portanto, limitando suas condições de vida, fato que é extensivo aos demais componentes das comunidades a que pertencem.

Não adianta resolver apenas a queixa principal das pessoas com dores na coluna, por intermédio do modelo biomédico, e fazer com que retornem às suas atividades. É preciso rever todo o quadro educacional e sociocultural, econômico e ambiental, situando o paciente no âmbito de vida, no processo saúde-doença, além do conhecimento de estímulos que predispõem para a manutenção do tratamento, conhecendo que fatores auxiliam e impedem sua melhora, e, se possível, tentar mudar situações extremas impeditivas da melhora da qualidade de vida destas pessoas, mediante recuperação e controle da recidiva do quadro álgico.

O pensamento e a ação daqueles que padecem de dores de coluna são mencionados de forma relevante, para que possamos alcançar as necessidades mais básicas de saúde como forma de solução também nas políticas sociais.

Esta investigação aponta a necessidade de um modelo de assistência educativa, com ações promotoras de saúde e alternativa de intervenção para pessoas portadoras de dores na coluna vertebral, sugerindo uma orientação quanto ao procedimento do autocuidado, à prevenção da má postura e ao ensino de atividades específicas que podem favorecer a melhoria da qualidade de vida e da saúde.

Colaboradores

GN Arcanjo, MK Nations, RM Silva são responsáveis igualmente pela definição do objeto de estudo, das abordagens metodológicas, pesquisa bibliográfica, elaboração e aplicação dos instrumentos, análise dos dados, redação, revisão do artigo e da aprovação quanto à publicação.

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31. Rabelo MCM. Religião, ritual e cura. In: Alves PC, Minayo MC de S, organizadores. Saúde e doença um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. p.47-56.      

  

 

Giselle Notini ArcanjoI;

gnotini@hotmail.com
Raimunda M. da SilvaI;

Marilyn K. NationsII

IUNIFOR. Av. Washington Soares 1321/bl. S/sala 01, Edson Queiroz. 60811-905 Fortaleza Ceará. IIUNIFOR e Universidade de Harvard, EUA

Ciência& Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007



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