A crítica da hermenêutica e a hermenêutica da crítica



  1. A hermenêutica das tradições
  2. A crítica das ideologias
  3. A construção da síntese: a tarefa filosófica anunciada por Paul Ricoeur

A hermenêutica e a dialética têm sido o centro do debate sobre método em filosofia da atualidade. A "reviravolta pragmático-lingüística"2 na filosofia marcou profundamente a cultura contemporânea, de tal forma que podemos afirmar a emergência da hermenêutica das tradições, de Hans-Georg Gadamer, e da crítica das ideologias, proposta por Jürgen Habermas, como dois grandes paradigmas de nosso tempo. As duas proposições têm sido consideradas como contraditórias, no momento em que ambas se reivindicam um caráter de universalidade. A grande tarefa dos filósofos contemporâneos, a partir da filosofia da linguagem, situa-se em torno da compreensão das teorias propostas e a possibilidade de atestar suas divergências ou convergências.

Diante da problemática anunciada, buscamos a leitura de um texto que pudesse centrar sua preocupação na reflexão crítica das duas propostas, de Gadamer e Habermas, sem, no entanto, negar suas contribuições ou simplesmente afirmar uma das duas. O desafio maior parece ser a busca da unidade daquilo que é considerado dicotomia, sem para isso recorrer a simplificações ou a um mero ecletismo. Nesse sentido, recorremos ao texto: Interpretação e Ideologias, de Paul Ricouer; organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1983. No referido texto, delimitamos a terceira parte, intitulada "Crítica das Ideologias", por considerarmos sua pertinência no debate atual sobre dialética e hermenêutica.

A reflexão de Paul Ricoeur é bastante original para o debate e procura, num primeiro momento, apresentar a hermenêutica das tradições, de Gadamer, e a crítica das ideologias, de Habermas, como alternativas, para, em seguida, construir uma elaboração na busca de uma síntese crítica ao problema da hermenêutica e um resgate hermenêutico como contribuição à crítica. É sobre essa abordagem que nos propomos a desenvolver essa resenha crítica, visando contribuir para manter muito "vivo entre nós" o referido texto e estimular a continuidade de um debate tão significativo para a humanidade e que, a priori, tem sido reduzido a uma polarização que acaba, por vezes, desmerecendo a riqueza que tanto a dialética como a hermenêutica possuem em termos de potencialidades para o progresso da cultura humana. Ou, como afirma o próprio Paul Ricouer, "se esses interesses se separarem radicalmente, a hermenêutica e a crítica ficarão reduzidas a meras...ideologias"! (RICOEUR, 1983: 146).

1. A hermenêutica das tradições.

A proposta apresentada por Hans-Georg Gadamer situa-se na perspectiva da validação da consciência histórica como referência para a interpretação do conhecimento humano. O homem é marcado pela tradição e a forma de estar no mundo comporta o passado como condição para o desenvolvimento da linguagem, a qual, num constante movimento de reinterpretação, constitui a realidade.

A história do conhecimento se desenvolve à luz da linguagem. É a partir da articulação lingüística que se produzem conceitos acerca da realidade que, em seu conjunto, formam o terreno de qualquer investigação. Para Gadamer: "ser que pode ser compreendido é linguagem", dando a entender que o todo do que existe para os homens, quando estes o percebem, e se percebem a si mesmos, já é a produção de uma linguagem. Seguindo esta lógica, nada pode ser admitido como existente sem a utilização de uma linguagem para identificar e expressar alguma coisa. Portanto, o centro do pensamento está na linguagem e a centralidade de tudo o que é racional funda-se no discurso, na fundamentação teórica. Isso é anterior ao desenvolvimento de qualquer ciência: "A hermenêutica tem uma visada que precede e ultrapassa toda ciência. Essa visada é testemunhada pelo ‘caráter de linguagem universal do comportamento relativo ao mundo". (Idem: 104).

Conforme Gadamer, estamos imersos na história e não é possível nos situarmos fora dela. O que nos resta é a consciência do processo histórico e a interpretação do que nos condiciona como seres no mundo. "De um modo geral podemos dizer que se trata da consciência de estar exposto à história e à sua ação, de tal forma que não podemos objetivar essa ação sobre nós, pois essa eficácia faz parte de seu sentido enquanto fenômeno histórico" (Idem 114).

A partir da idéia de consciência histórica que, para Paul Ricoeur, constitui "o microcosmo de toda a obra e a miniatura do grande debate" de Gadamer, três conceitos aparecem interligados como fundamentais para a hermenêutica das tradições: preconceito, autoridade e tradição. Ambos são apresentados de forma renovada, numa tentativa de atestar os equívocos de seu uso e as deformações que teriam sido protagonizadas a partir do iluminismo. "Gadamer tenta reabilitar conjuntamente preconceito, tradição e autoridade. Tenta extrair uma essência desses três fenômenos que teriam sido obscurecidos pela apreciação pejorativa da Aufklärung3." (Idem: 111).

O preconceito é entendido como parte constitutiva da estrutura de antecipação: é a condição para a compreensão de algo. "O preconceito é o horizonte do presente, é a finitude do próximo em sua abertura para o longínquo. É somente nessa tensão entre o outro e o próprio, entre o texto do passado e o ponto de vista do leitor, que o preconceito se torna operante, constitutivo da historicidade" (Idem: 116).

A pretensão de criticar os preconceitos, por mais ambiciosas que tenham sido as tentativas, são vistas como infundadas por Gadamer que, convicto dos efeitos da história na consciência humana, entende que não há um local isento que pudesse deflagrar a crítica com precisão. A crítica aos preconceitos, portanto, é impossível e precisamos entender a dimensão positiva do preconceito para o conhecimento. Conforme a análise de Paul Ricoeur, Gadamer entende que o preconceito "não é o pólo oposto de uma razão sem pressuposição, mas um componente do compreender, vinculado ao caráter historicamente finito do ser humano. (...) Eis porque os preconceitos do indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica de seu ser" (Idem: 111, 261).

O conceito de autoridade também é apresentado em divergência ao iluminismo. De acordo com Gadamer, a Aufklärung confundiu autoridade com dominação e violência. É assim que se configurou o preconceito contra o preconceito e a rejeição da autoridade como elemento importante da tradição humana. Em sua obra Verdade e Método, Gadamer apresenta o conceito de autoridade relacionado a reconhecimento e dissociado de obediência, com a qual não teria nenhuma relação imediata. "Gadamer orientava inevitavelmente a filosofia hermenêutica para a reabilitação do preconceito e para a apologia da tradição e da autoridade" (Idem: 105).

A autoridade é legitimada pela tradição ou, em outras palavras, a tradição é o fundamento de validade dos conceitos de Gadamer. A partir do elo integrador da tradição, autoridade e razão são aproximadas e constituem o processo de tomada de consciência histórica. "A interpretação propriamente ‘ontológica’ da seqüência preconceito, autoridade e tradição cristaliza-se de certa forma na categoria de consciência da história dos efeitos que marca o ápice da reflexão de Gadamer sobre a fundação das ‘ciências do espírito" (Idem: 113).

A pesquisa científica não ocorre dissociada da consciência histórica da humanidade. Ciência e tradição se fundem pois o conhecimento, sendo histórico, não consegue libertar-se da sua condição histórica. Não há, portanto, como haver ciência livre de preconceitos. A crítica é vista como inoperante e inconveniente: um prejuízo ao processo científico. "Entre a ação da tradição e a investigação histórica forma-se um pacto que nenhuma consciência crítica poderá desfazer, sob pena de tornar insensata a própria pesquisa. A história dos historiadores pois, não faz senão elevar a um mais alto grau de consciência a vida mesma na história". (Idem: 116-117).

Por isso, a contraposição ao movimento do iluminismo, à crítica das ideologias e à toda teoria que preserve como base a subjetividade: "A reabilitação do preconceito, da autoridade, da tradição será, pois, dirigida contra o reino da subjetividade, vale dizer, contra os critérios da reflexividade. A história me precede e antecipa-se à minha reflexão. Pertenço à história antes de me pertencer" (Idem: 108).

Ao se opor ao iluminismo, ao hegelianismo, à crítica das ideologias, a hermenêutica das tradições se apresenta como paradigma que opera a metacrítica, ou seja a crítica da crítica, explicitando sua reivindicação de universalidade. São três as significações de universalidade que Paul Ricoeur percebe na teoria de Gadamer: a) sua pretensão de ciência, fundando sua experiência na historicidade; b) a apresentação de uma universalidade própria, operada pela contestação do distanciamento metodológico e a tese de que há consensos previamente fundados existentes na história; c) a afirmação da linguagem como seu elemento universal e prévio, que abarcaria inclusive a não-compreensão, como um problema de entendimento interno à linguagem.


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