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Estado de Necessidade e a apreciação de suas inúmeras possibilidades na exclusão da ilicitude penal (página 2)

Suzana J. de Oliveira Carmo

E, dentro deste contexto, o Estado de Necessidade mostra-se oscilante, pois, evidentemente, o que é extremamente necessário sob determinada ótica, pode ser de índole comum, se sua observância se der por um outro prisma e sob um diferente foco. Segundo o filósofo e teólogo Leonardo Boff, em sua metáfora da condição humana, há uma profunda distinção entre seres, tanto quanto são diferenciadas as suas formas de interpretação e compreensão do mundo:

"Todo ponto de vista é a vista de um ponto. (...) A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. (...)Sendo assim, cada um compreende e interpreta a partir do mundo que habita".3

Sublinhados todos estes aspectos, trataremos agora de conceituar o que é ou pode ser caracterizado como "necessário". Comecemos por dizer que, necessidade é o resultado de um nível elevado de carência, e, por conseqüência, necessário é a ação que visa suprir uma necessidade. Considerando sempre que, a carência se transforma em necessidade dependendo da resistência de cada indivíduo ou de suas experiências quanto á satisfação ou não de determinadas necessidades. As necessidades são múltiplas; são também inerentes ao indivíduo, existentes em cada um de nós, ainda que não se tenha destinado nenhum bem específico a satisfazê-las. As necessidades não são criadas, tampouco, extirpadas pela cultura, todavia, podem ser modificadas por ela; porque estão condicionadas pelo meio social.

Desta forma, qualquer necessidade possui essência biológica, por isto, quaisquer delas, pode ser caracterizada como uma carência vivenciada pelo cérebro (estímulo que alcança a Zona Consciente e responde ao que comumente chamamos de vontade. E, ainda que esta vontade possa expressar-se somente de forma inconsciente, constitui sempre uma resposta a uma obrigação ou necessidade), ou seja, são vontades e desejos extremados que estimulam de modo impositivo o "agir" do indivíduo, no sentido de supri-los.

Armand Cuvillier descreve necessidade como uma privação de uma coisa necessária á vida orgânica, e, psicologicamente designa um estado de "consciência" que acompanha a privação do que é necessário, e neste aspecto pode estar relacionado á vida orgânica, mas também, ao campo emocional e afetivo. De tal maneira, Cuvillier nos remete á escala das carências existenciais, ou melhor, á demonstração hierárquica das necessidades humanas apontadas pela Teoria de Maslow, em que estão dispostas em uma estrutura piramidal, partindo-se da base para o ápice, e com movimento ascendente, as necessidades figuram na seguinte ordem: Fisiológicas (sobrevivência); de Segurança (proteção); Sociais (participação e amor); de Status e Estima (aprovação social); de auto-realização (desenvolvimento do próprio potencial).4

Portanto, evidencia-se, que as necessidades vão além do aspecto orgânico, abrangem todas as carências, se perfazem das mais singelas privações. Psicologicamente, segundo Henri Piéron:

"necessidade é uma manifestação natural de sensibilidade interna, que desperta uma tendência a realizar um ato ou a procurar um determinado objeto, sempre com o intuito de suprir uma determinada carência".5

Todavia, o Estado de Necessidade alcançado pela tutela jurídica requer impreterivelmente o uso de um princípio básico do bom senso, noutras palavras, sua invocação e tutela ensejam "razoabilidade". Até porque, o Direito positivo dispõe dos mecanismos primazes á ordem pública e a paz social, e a concessão desmedida de algumas benesses, acabam por gerar desigualdade, fulmina a isonomia, e, acaba por descumprir com a finalidade objetiva das normas, que é a de organizar a vida dos seres em sociedade.

A psicologia estabelece que a necessidade é um estímulo ao comportamento; e esta motivação que impulsiona o indivíduo possui aspectos vetoriais: força positiva ou negativa. Estão no âmbito do vetor positivo: onde se localizam as necessidades propriamente ditas, os desejos e as privações, pois impelem o indivíduo a buscar determinados objetos ou condições; enquanto no âmbito do vetor negativo estão: as aversões e os temores, que, assim, repelem para longe do indivíduo determinados objetos ou condições. Todavia, ambos aspectos são comuns sob um mesmo ponto de vista, o de que estas forças originam um comportamento específico.

Desta forma, necessidade pode ser uma palavra apta a designar sempre uma força propulsora, e, circunstancialmente, pouco importa se esta força tem representatividade positiva ou negativa, quando o que deve ser considerado é o comportamento que ela origina e o resultado que a ação sob seu estímulo alcança. E afirmam Krech, Crutchfield e Ballachey:

"[...] as necessidades do indivíduo integram e organizam todas as suas atividades psicológicas, ao dirigir e manter a ação na direção de um objetivo. [...] as necessidades que impelem o indivíduo e os objetivos que procura atingir. Tudo no comportamento do indivíduo, seus pensamentos e suas ações, reflete suas necessidades e objetivos".6

Portanto, a priori, convém dissertar sobre a subjetividade que circunda o tema, posto que, a avaliação do grau ou valor daquilo que é ou não necessário é variável de indivíduo para indivíduo, ou seja, a valoração da circunstância que enseja a invocação do Estado de Necessidade em favor do agente, parece-nos ser sempre de ordem relativa, pois, está imbuída por situações que estão sujeitas a uma inclinação psicológica, e, isto é o que torna qualquer avaliação intelectual valorativa, indubitavelmente variável.

Nesse sentido, segundo Risieri Frondizi, a valoração é variável não só pela percepção subjetiva do sujeito em face ao objeto, é variável também ante o grau do valor que possui cada objeto na vida do sujeito que procede a sua avaliação. E com muita propriedade, explica-nos:

"Convém distinguir, desde já, entre valores e bens. Os bens equivalem ás coisas valiosas, isto é, as coisas mais o valor que a elas se incorporaram"7 (tradução nossa).

Sendo, portanto, não só oportuna como também muito válida a afirmativa de Rafael Mantovani: "O cognoscível é obtido através da interpretação, logo, tudo não é senão um ponto de vista".

Juridicamente falando, Estado de Necessidade ou Direito de Necessidade (jus necessitatis), foi descrito por Kant também como um instituto revestido pelo subjetivismo, como uma faculdade moral de defender interesse próprio ou de outrem, mesmo contra alguém que não nos causou dano. Sendo para ele, uma circunstância que põe em evidencia um conflito do direito consigo mesmo, trata-se, por conseguinte, de uma ação lícita mesmo diante de uma proibição mantida pelo direito positivo. Acrescenta Kant, "essa asserção não deve ser entendida objetivamente, segundo o mandato de uma lei, mas, sim, somente no sentido subjetivo". Por fim, reporta-nos a uma máxima do Direito, o que não exclui de sua apreciação do Estado de Necessidade: "A necessidade carece de lei; e, todavia, não pode haver necessidade que torne a injustiça legal".8

Daí porque, as afirmações de Kant nos fazem retroceder ao marco inicial, donde, todas as necessidades humanas, sob ponto de vista jurídico ou não, estão decididamente envoltas pelo subjetivismo humano. E isto, não só pela análise da ação empreendedora daquele que age pelo estímulo motivador de uma necessidade, mas, também, ante a análise da percepção ou observação daquele que irá julgar como legítimo ou não, esse agir. Portanto, será também impregnado pelo subjetivismo do julgador, o critério de apreciação, com o qual será observado o ato, acolhendo como válido ou não o meio utilizado para a satisfação de determinada necessidade, bem como, apurando com variável firmeza jurídica, se o percurso entre os pólos: ação e resultado; foi trilhado com a moderação, ou seja, asseverando se o agente não exorbitou a mensuração do justo e do aceitável.

Por vir á análise estas questões, é que se mostra pertinente citar Maslow:

"Se todas as necessidades estão insatisfeitas e o organismo é dominado pelas necessidades fisiológicas, quaisquer outras poderão tornar-se inexistentes ou latentes. Podemos então caracterizar o organismo como simplesmente faminto, pois a consciência fica quase inteiramente dominada pela fome. Todas as capacidades do organismo servirão para satisfazer a fome...".9

Decerto, seguros de que, os processos de derivação e hierarquia das necessidades, possuem raízes culturais, por isto, tais processos podem ser diferenciados de sociedade para sociedade, pois se firmam sob a égide de aspectos e valores econômicos, cognitivos, religiosos, legais, educacionais e artísticos, pois, estes aspectos e valores norteiam ou influenciam o cerne das necessidades primárias. Conseqüentemente, exercem igual força de manipulação sobre as necessidades derivadas. De sorte, para cada necessidade basilar encontramos uma resposta cultural, vejamos: Metabolismo - Aprovisionamento; Reprodução - Parentesco; Confortos corporais - Abrigo; Segurança - Proteção; Movimento - Atividades; Crescimento - Treinamento; Saúde - Higiene. Assim, nesta ordem, ou nesta órbita, sendo a cultura traduzida como a ação do homem sobre a natureza, com fito de criar artifícios capazes de suprir necessidades e tornar mais fácil a adaptabilidade humana ao meio ambiente, temos que, o homem torna-se dependente de sua cultura, passa ser condição necessária para sua sobrevivência.

Concluímos, nosso trabalho, citando Malinowski:

"[...] até atividades altamente derivadas, tais como: aprendizagem e pesquisa,arte e religião,direito e ética, relacionadas como são com desempenho organizado, com tecnologia, e com exatidão de comunicação, são também definitivamente relacionadas,se bem que em diferentes graus, á necessidade de sobreviver dos seres humanos".10

De sorte, qualquer que seja a necessidade, qualquer que seja o estado (situação ou condição), sua satisfação através da realização do agir (ato necessário) em busca do objetivo, descortina sempre o instinto humano de preservação e sobrevivência, ainda que, seja em prol de outrem. Porque, com certeza, este "outrem" está ligado ao agente por relações de afeto, parentesco ou amor, o que nada mais é, senão, a representação de mais uma das inúmeras necessidades humanas, a social.

Notas de rodapé convertidas

1 LéVY, Pierre. "O que é o virtual?". São Paulo: Ed. 34. 1996. p.16.
2 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. O Fenómeno Humano. Tradução Portuguesa de Leon Bourdon e José Terra. Coleção Filosofia e Religião, 16° Volume, Porto-Portugal: Tavares Martins, 1970. p. 282-289.
3 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Uma metáfora da condição humana. Petrópolis,RJ, Vozes, 1997. p. 9.
4 CUVILLIER, Armand. Pequeno Vocabulário da Língua Filosófica. Vol. 82, Tradução e adaptação de: Lólio Lourenço de Oliveira e J.B. Damasco Penna, São Paulo: Nacional. (Atualidades Pedagógicas), 1961.p. 108.
5 PIéRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Tradução e Notas: Dora de Barros, Porto Alegre: Globo, 1966. p.290.
6 KRECH, David; CRUTCHFIELD, Richard S.; BALLACHEY, Egerton L. O Indivíduo na Sociedade - Um manual de Psicologia Social, Vol. I, Tradução: Dante Moreira Leite e Miriam L. Moreira Leite, 3ª ed., São Paulo: Pioneira, 1975. p. 82.
7 FRONDIZI, Risieri.¿Qué son los valores? Introducción a la axiología. 3ª ed., México: Fondo de Cultura Económica-FCE, 1972. p.14-15.
8 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. 2ª ed., Tradução: Edson Bini, São Paulo: Ícone, 1993. (Coleção Fundamentos do Direito). p. 52-53.
9 MASLOW, A. H. Uma teoria da motivação humana. In: BALCÃO, Y. F.; CORDEIRO, L.L. O comportamento humano na empresa: uma antologia. Rio de Janeiro: FGV, 1975. p. 342.
10 MALINOWSKI, Bronislaw. Uma Teoria Científica da Cultura. 3ª ed, Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p.118.

Revista Jus Vigilantibus, Quinta-feira, 27 de setembro de 2007

 

 

Autor:

Suzana J. de Oliveira Carmo

suzanajm[arroba]hotmail.com



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