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Legalidade da medida de indisponibilidade dos bens adquiridos antes da vigência da lei nº 8.429/92, (página 2)

Emerson Garcia

8. Afora as previsões esparsas existentes nos regimes jurídicos de determinadas categorias do funcionalismo público dos diferentes entes da Federação, dois foram os diplomas de caráter genérico que antecederam a atual Lei de Improbidade, ambos editados sob a égide da Constituição de 1946. A Lei nº 3.164, de 1º de junho de 1957, também denominada Lei Pitombo-Godói Ilha, era extremamente lacônica, tendo repetido em seu artigo 1º, quase que ipsis literis, o que constava do artigo 141, § 31, 2ª parte, do texto constitucional então em vigor, sem detalhar o que se deveria entender por "influência ou abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica". Em 21 de dezembro de 1958 foi sancionada a Lei nº 3.502, também denominada Lei Bilac Pinto, a qual regulou "o seqüestro e o perdimento de bens nos casos de enriquecimento ilícito, por influência ou abuso do cargo ou função". Diversamente do diploma anterior, a lei Bilac Pinto melhor sistematizou a matéria, tendo esclarecido o alcance da expressão "servidor público" para fins de identificação do sujeito ativo dos atos que importavam em enriquecimento ilícito (art. 1º); elencado, em numerus apertus8 os casos de enriquecimento ilícito (art. 2º e 4º), havendo inúmeras semelhanças com os atos atualmente previstos no artigo 9º da Lei nº 8.429/92; e equiparado o enriquecimento ilícito aos crimes contra a administração e o patrimônio público (art. 4º). Apesar de não ter previsto a legitimação do Ministério Público e do cidadão para a propositura de medidas judiciais, esta continuava assegurada pela Lei nº 3.164/579 .

9. Com a mesma importância das Leis nº 3.164/57 e 3.502/58, não se pode deixar de mencionar o relevante papel desempenhado pela Lei nº 4.717/65, a qual disciplinou as hipóteses de cabimento e a forma de utilização da ação popular para a anulação ou a declaração de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio público. A exemplo das leis referidas, ela também não estabelece sanções diretas ao agente, mas tão somente a obrigação de recompor o patrimônio no status quo, ressarcindo o dano causado. Apesar disto, não deixava incólumes os ilícitos praticados, máxime por estatuir a legitimidade de qualquer cidadão para a sua propositura. Essa legitimidade ampla é da tradição do direito constitucional pátrio, estando prevista nas Constituições de 1934 (art. 113, nº 38); 1946 (art. 141, § 38); 1967 (art. 150, § 31); 1969 (art. 153, § 31) e 1988 (art. 5º, LXXIII). Promulgada a Constituição de 1967, cuja sistemática foi mantida pela Emenda Constitucional nº 1/69 e previa a hipótese de perdimento de bens por dano ao erário, não houve o necessário aperfeiçoamento da legislação ordinária, a qual se manteve adstrita ao enriquecimento ilícito. Com a promulgação da Constituição de 1988, tinha-se o campo propício ao alargamento da tipologia legal, já que o artigo 37, § 4º, do texto constitucional falava unicamente em "improbidade administrativa", expressão que teria seu sentido e sua extensão integrados pelo legislador ordinário, o que permitiria a criação de eficazes mecanismos de combate á corrupção. Correlata á disciplina específica dos agentes públicos há muito se encontra normatizado o dever de reparar o dano causado a outrem, assim dispondo o artigo 159 do Código Civil: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano."

10. O voto do eminente relator denota que a Lei nº 8.429/92 foi analisada sob duas perspectivas, sendo estabelecidos dois termos iniciais para a aplicabilidade das normas que veicula: a) em razão de seu caráter geral, só alcança os bens adquiridos após sua vigência; b) a indisponibilidade de bens estatuída pelo artigo 7º, parágrafo único, somente atinge aqueles adquiridos após a prática do ato ilícito, pois referido dispositivo "diz claramente que a indisponibilidade só atinge os bens adquiridos ilicitamente, só podendo ser arrestados ou seqüestrados os bens resultantes de enriquecimento ilícito." Ao final, indicou como precedente o Recurso em Mandado de Segurança nº 6.182-DF, sendo relator designado o eminente Ministro Adhemar Maciel, o qual foi julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça em 20.02.97 e publicado no DJ de 1º.12.97.

11. Tal decisão, não obstante o brilho do órgão julgador, caminha em norte contrário a séculos de evolução da ciência jurídica, culminando em afastar o princípio de que o devedor responde com o seu patrimônio pelos atos que praticar10 , importante conquista da humanidade e que afastou a crueldade das sanções corporais preteritamente impostas ao devedor inadimplente. De acordo com este princípio, tanto os bens existentes por ocasião da causação do dano que originou o dever de reparar, como aqueles posteriormente adquiridos, ressalvadas as exceções legais11 , poderão ser penhorados para satisfazer o débito existente. Toda conduta que causar dano a outrem, ainda que o agente público e o Estado figurem nos pólos ativo e passivo da relação obrigacional, importará na aplicação do referido princípio, inexistindo justificativa para que os bens adquiridos anteriormente á investidura sejam excluídos de tal responsabilidade. Ademais, a prevalecer a tese do referido acórdão, ter-se-á a inusitada situação de responsabilizar de forma mais severa aquele que não possui qualquer vínculo com o ente estatal - respondendo por seus atos com todo o seu patrimônio - do que aquele que, valendo-se da confiança em si depositada, lesa o patrimônio do ente público que jurou defender. O dever de reparar o dano causado a outrem preexistia á Lei nº 8.429/92, no mínimo desde o Direito Romano12 , o que afasta o argumento de que, tratando-se de diploma que institui determinada sanção, não estariam sujeitos a ressarcimento os danos anteriores á sua vigência13 .

12. Por idênticos motivos, a indisponibilidade haverá de recair "sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano", consoante estatui o artigo 7º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/92, pois qualquer provimento de natureza cautelar visa á garantia da eficácia da decisão a ser proferida no processo principal, evitando-se a inocuidade desta - o que certamente ocorreria com a dissipação do patrimônio do ímprobo. Não se deve acolher o argumento de que tal medida cautelar somente seria aplicável aos fatos posteriores á Lei nº 8.429/92. O poder geral de cautela, atualmente previsto no artigo 798 do Código de Processo Civil, é inerente á própria função jurisdicional, há muito estando incorporado ao ordenamento jurídico pátrio14 , o que justificava o deferimento de medidas dessa natureza antes mesmo do advento da Lei nº 8.429/92, ainda que estivessem ausentes os requisitos específicos das medidas de arresto e de seqüestro. Em que pese ser claro o acórdão, não é demais lembrar que a pretensão deduzida visava ao ressarcimento de dano ao erário, sendo essa a ótica destes breves comentários. Tratando-se de pretensão que almeje o perdimento de bens resultantes de enriquecimento ilícito, por óbvio, a medida de indisponibilidade dos bens somente poderá atingir aqueles adquiridos após a prática do ato de improbidade, sendo imprescindível a existência de uma relação de causa e efeito entre este e a aquisição daqueles. Como se constata, o artigo 7º da Lei nº 8.429/92 abrange duas situações distintas, ás quais deve ser dispensada interpretação consentânea com a natureza das sanções que as informam. Na primeira, tem-se um bem de origem ilícita, o que acarreta a sanção de perdimento; na outra, o bem tem origem lícita, mas é passível de penhora para a efetivação do ressarcimento integral do dano.

13. No que tange ao precedente indicado no acórdão ora analisado, versava ele sobre a indisponibilidade dos bens de ex-Deputado Federal acusado de integrar a denominada "Máfia do Orçamento" e que apresentara evolução patrimonial incompatível com os seus rendimentos. Tratava-se de nítida hipótese de enriquecimento ilícito (art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/92), o que fez com que a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça desse parcial provimento ao recurso ordinário interposto contra acórdão do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, culminando em excluir do alcance da medida cautelar de indisponibilidade dos bens aqueles adquiridos anteriormente á prática dos atos ilícitos. Constata-se que o precedente indicado não guarda qualquer relação com a pretensão de ressarcimento do dano, logo, não poderia ser utilizado como paradigma.

CONCLUSÕES

14. As sanções cominadas no artigo 12 da Lei nº 8.429/92 têm natureza cível (lato sensu), não excluindo a aplicação de outras de natureza cível, penal e administrativa. Não sendo o dever de reparar o dano causado a outrem inovação da denominada "Lei de Improbidade", estando há muito consagrado no artigo 159 do Código Civil, inexiste qualquer óbice a que tal obrigação recaia sobre o agente que causou danos ao patrimônio público antes do advento daquele diploma legal. Tratando-se de pretensão legítima, o futuro acolhimento desta não pode resultar inócuo, o que torna imperativa a adoção de medidas que busquem conservar a eficácia do provimento jurisdicional. Assim, a medida de indisponibilidade dos bens, de origem lícita ou ilícita, quer tenham sido os bens adquiridos antes ou depois do advento da Lei nº 8.429/92, é instrumento adequado a tal desiderato, estando alicerçada no que dispõem os artigos 7º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/92 e 798 do Código de Processo Civil, este relativo ao poder geral de cautela, ínsito e inseparável da função jurisdicional.

NOTAS DE RODAPÉ CONVERTIDAS

1 STJ, 2ª T., rel. Min. Hélio Mosimann, rel. desig. para o acórdão Min. Adhemar Maciel, j. em 20.02.97, DJ de 1º.12.97.

2 Vide arts. 16 e 20 da Lei 8.429/92. Note-se que as sanções previstas no art. 12 podem ter previsão expressa no estatuto dos servidores públicos, sendo passíveis de aplicação em processo administrativo-disciplinar; isto com exceção da suspensão dos direitos políticos (art. 15 da CR/88), pois, tratando-se de direito fundamental, sua restrição por órgão que não desempenhe atividade jurisdicional dependeria de previsão específica, o que não ocorre (Vide José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo, RT, 7ª ed., 1991, p. 333).

3 No mesmo sentido: STJ, 6ª Turma, REsp. nº 150.329, rel. Min. Vicente Leal, j. em 02.03.99, DJ de 05.04.99. Na doutrina: Fábio Medina Osório, Improbidade Administrativa, Observações sobre a Lei 8.429/92, Síntese, 2ª ed., 1998, pp. 217/224; Marino Pazaglini Filho et alii, Improbidade Administrativa, Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, Atlas, 4ª ed., 1999, p. 135; Marcelo Figueiredo, Probidade Administrativa, Comentários á Lei 8.429/92 e Legislação Complementar, Malheiros, 3ª ed., 1998, p. 87; e José Nilo de Castro, Improbidade Administrativa Municipal, in Caderno de Direito Municipal nº 8/2000, p. 82. Fernando Rodrigues Martins, Controle do Patrimônio Público, RT, 1ª ed., 2000,op. cit., p. 83, entende que as sanções tem natureza civil (ressarcimento, perdimento e multa), administrativa (perda da função e proibição de contratar) e constitucional (suspensão dos direitos políticos). Para Álvaro Lazzarini, in Temas de Direito Administrativo, RT, 1ª ed., 2000, p. 64, tais sanções têm natureza política, com o que não concordamos, ante a natureza do órgão que as aplicará e a necessária fundamentação da decisão a ser proferida (art. 93, IX, da CR/88), o que possibilita seu reexame por outro órgão em havendo irresignação; caracteres estes incompatíveis com uma decisão essencialmente política. Ives Gandra, por sua vez, in Aspectos Procedimentais ..., p. 287, sustenta que as sanções teriam natureza penal. O STJ, por sua 3ª Seção, também entendeu que a Lei nº 8.429/92 dispõe sobre ilícitos penais (MS. nº 6.478, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. em 26.04.00, DJ de 29.05.00).

4 Nos crimes comuns, o Prefeito será julgado perante o Tribunal de Justiça (art. 29, X, da CR/88); os membros do Congresso Nacional perante o Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, "b", da CR/88); o Governador e os membros dos Tribunais Regionais Federais, Regionais do Trabalho e de Justiça perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, "a", da CR/88); etc.

5 STJ, 6ª Turma, RMS nº 6.208, rel. Min. Anselmo Santiago, j. em 10.11.98, DJ de 15.03.99.

6 STJ, Corte Especial, Rec. nº 591, rel. Min. Nílson Naves, j. em 1º.12.99, DJ de 15.05.00.

7 Comentando este dispositivo, já observava Pontes de Miranda que ele representava "arma excelente contra o maior rival dos países sem longa educação da responsabilidade administrativa. O fim do século XIX interrompeu a nascente tradição da honestidade dos homens públicos. A ascensão dos homens públicos que não produzem teve a conseqüência de acirrar o apetite dos desonestos e dos aventureiros. Sem lei que os obrigue - e a todos os funcionários públicos e empregados de entidades autárquicas - a inventariar todos os anos o que têm e o que têm os seus parentes sucessíveis e á publicação dos seus haveres e rendas, anualmente, e sem a actio popularis nos casos do § 31, 2ª parte, com percentagem de prêmio ao denunciante e julgamento pelo júri, é difícil fazer o país voltar áquela nascente tradição." (in Comentários á Constituição de 1946, vol. III, 1ª ed., Henrique Cahen Editor, p. 367).

8 Francisco Bilac Moreira Pinto, Enriquecimento Ilícito dos Agentes Públicos, Forense, p. 137 e ss.

9 Essa legitimidade ampla representava importante instrumento de combate á corrupção, materializando a sabedoria que o jurisconsulto Paulo imortalizara em seu famoso aforismo: "Reipublicae interst quam plurimus ad defendam suam causam" ("importa á República que muitos defendam sua causa"). Com sua aguçada percepção, Rafael Bielsa sentenciava: "ora, como o grau de enervação e de corrupção nunca chega a todas as classes em sua totalidade, e sempre há cidadãos conscientes de sua missão cívica, que têm um claro sentido de legalidade, que sempre defenderam o interesse geral, em todas as atividades e esferas de sua vida, ou tem vocação por esse interesse, torna-se evidente que dotar tais cidadãos de um meio legal capaz de conter ou de reduzir esse discricionarismo é algo inerente á própria forma de governo democrático e exemplar maneira de prescrever as instituições e tornar impossível ou difícil que sejam entronizados a arbitrariedade, o desperdício do erário, a destruição do patrimônio do Estado" (in A ação popular e o poder discricionário da administração, RF nº 157/46).

10 "Il debitore risponde delladempimento delle obligazioni com tutti i sue beni presenti e futuri" (art. 2.740 do Código Civil italiano). "Quiconque sest obligé personellement, est tenu de remplir son engagement sur tous ses biens mobiliers et immobiliers, présents et á venir" (art. 2092 do Código Civil francês).Vide arts. 1076-1.081 do Código Civil argentino; art. 806 da Consolidação de Teixeira de Freitas; art. 1.518 do Código Civil; e arts. 591 e 646 do Código de Processo Civil.

11 Vide Lei 8.009/90; art. 649 do CPC; etc.

12 "Injuriam hic damnum accipiemus culpa datum etiam ab eo qui nocere nolit." (D. 9, 2, fr. 5, § 1º).

13 "Ação civil pública. Improbidade administrativa. Vereadores. 1) Os atos de improbidade administrativa praticados antes da vigência da Lei 8.429/92, embora não sujeitos a penalidades administrativas não previstas anteriormente na legislação, ensejam o nascimento da obrigação de reparar os danos causados ao erário público, seja por força do art. 37, par. 4º, seja por força do art. 159 do CCB, que já continham expressamente esse comando. 2) Despesas com publicidade para promoção pessoal dos Vereadores ou sem a comprovação de sua efetiva publicação; com aquisição de medalhas, troféus e placas sem autorização da Câmara, ou com o aluguel de ginásio esportivo para jogo de futebol de salão de Vereadores constituem atos de improbidade administrativa por violação direta do art. 37, caput, da CF/88. 3) Condenação ao ressarcimento dos prejuízos causados ao tesouro municipal. Sentença de procedência confirmada. Apelação desprovida." (TJRS, 1ª C. de Férias, Apel. nº 599490646, rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, j. em 18.11.99).

14 O art. 675, I e II, do CPC de 1939, assim dispunha: "Além dos casos em que a lei expressamente o autoriza, o juiz poderá determinar providências para acautelar o interesse das partes: quando do estado de fato da lide surgirem fundados receios de rixa ou violência entre os litigantes; quando, antes da decisão, for provável a ocorrência de atos capazes de causar lesões, de difícil e incerta reparação, ao direito de uma das partes".

 

 

Autor:

Emerson Garcia

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