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Deus não é descartável (página 2)

Maria Estela Guedes

De que modo são as religiões cúmplices e co-autoras da paródia? Muitos naturalistas são sacerdotes, por isso estão envolvidos neste contexto, muito amplo no tempo e no espaço geográfico. Do século XVIII para cá, o seu número terá vindo a diminuir, mas não é raro encontrá-los. é o caso de René de Naurois, dos cientistas que melhor conhecem a ornitologia das ilhas do Golfo da Guiné e de Cabo Verde. Os textos nos quais compilei bom número de falsidades vieram da sua bibliografia. O mesmo poderia aliás dizer do herpetologista Eduardo Crespo, em cuja bibliografia vem grande parte das falsidades que encontrei sobre répteis e anfíbios. Padre René de Naurois sabe assim muito mais do que eu, e de muito mais longa data, e pelo mesmo motivo o mesmo posso declarar de Eduardo Crespo. Como é hábito, ele poderá ser desautorizado pelos seus colegas mais novos, tal como os mais novos virão daqui a vinte anos a ser desqualificados pelos seguintes.  Em seu abono direi assim algo que pertence a outra História: além de sacerdote católico, Padre Naurois, que conheço pessoalmente, e com quem trabalhei, foi condecorado por Charles de Gaulle por actos de heroísmo cometidos no curso da Segunda Grande Guerra. Não é um insignificante. 

O mínimo de que o posso acusar é de silêncio, e por conseguinte de cumplicidade. De co-autoria acuso sacerdotes que já morreram, envolvidos nos casos que geram as falsidades sobre a fauna das ilhas do Golfo da Guiné: Padre Sanz e Padre Coll. Em abono de Padre Coll, direi que era um dos directores da Sociedade Geográfica de Madrid. A geografia está adstrita á mineralogia, á botânica e á zoologia, quanto á distribuição geográfica dos produtos naturais. Por isso é nos boletins das sociedades de Geografia que encontramos bom número de textos sobre flora e fauna. Padre Sanz é o autor de um dos mirabolantes relatos da ascensão ao Pico de Clarence realizado por Francisco Newton, segundo Padre Coll. é ele ou um dos seus colegas da Missão Católica do Sagrado Coração de Maria, sediada em Santa Isabel (Malabo), em Fernando Pó (Bioko), o autor de um outro relato segundo o qual existiriam hipopótamos no Lago Loreto. A questão de existirem ou não hipopótamos num lago de altitude, numa ilha vulcânica, pertence á esfera da zoogeografia. é qualquer coisa da mesma ordem de eu não saber, sendo licenciada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que "Os Lusíadas" não são uma novela de Bernardim Ribeiro.

Padre Duparquet e Padre Manuel Maria Antunes, missionários espiritanos, são cúmplices e co-autores do falso currículo atribuído a Francisco Newton, quanto ás colheitas de plantas em Angola. Padre Brenha, conhecido sobretudo como arqueólogo, é o responsável por a região de Chaves ser riquíssima em variedade de espécies de répteis e anfíbios, parte das quais o herpetologista Eduardo Crespo, a despeito de esforços que certamente desenvolveu nesse sentido, ainda não conseguiu encontrar nas brenhas de Chaves. Note-se: não digo que elas lá não estejam, digo que ainda não foram redescobertas. 

A principal co-autoria e cumplicidade dos membros do clero vem porém de outro lado: a Igreja sabe, desde pelo menos a encíclica Humanum genus, de Leão XIII, que o naturalismo é uma doutrina que exclui o sobrenatural, ao pôr como princípios os de que tudo quanto existe é natural e explicável pela razão. Os objectos de discurso de uma doutrina destas não deviam ter passado da ciência para o público como factos verdadeiros, e a Igreja contribuiu para que tivessem passado. O darwinismo age como se Deus não existisse, quando Deus não é descartável pela humanidade que actualmente habita a Terra. Só com outra humanidade, dotada de outro cérebro, pelo qual nunca tenha passado a suspeita da existência de um Deus, é possível trabalhar em ciência sobre o princípio de que o universo é composto exclusivamente de matéria compreensível pelo Homem. 

A nossa humanidade assenta nas estruturas culturais de um edifício ao divino. Deus é um referente em qualquer cultura, não podemos descartar-nos dele. Essa humanidade que não existe, com outra cultura, pela qual nunca tenha passado a sombra de Deus, poderá afirmar como facto, ainda que seja falso, que tudo o que existe é natural e explicável pela ciência. Mas nós não somos essa humanidade, por isso, antes de afirmarmos que a Criação se deve ao acaso, e que é o acaso que está por detrás da selecção natural, teremos de provar que Deus não existe. Como é que a ciência sabe que a selecção é natural e não sobrenatural ou humana?

O darwinismo apresenta duas hipóteses de origem das espécies, ambas por selecção: a natural é aquela em que não houve interferência do homem. A artificial é aquela em que houve selecção humana, caso dos pombos, dos burros, dos cavalos, dos canários e de milhares de espécies animais e vegetais. O que diz respeito á agricultura e á piscicultura, por exemplo, é fruto de selecção humana. Ninguém tem dúvidas nestes casos, mas quando se trata de borboletas, por suposição, a ciência trata as espécies como se fossem fruto de selecção natural, sem o poder provar. As espécies ditas oriundas de selecção natural tanto podem ser fruto de selecção humana como divina. Podem algumas delas vir a cair sob a alçada do humano, mas as que não cairem estão sob a alçada do metafísico, uma vez que, não sendo Deus descartável, natural e sobrenatural pertencem á mesma esfera do não verificável. Os cientistas presentes neste colóquio dirão que o natural, em ciência, é uma convenção. Mas em cima da convenção constroem-se edifícios ficcionais sem categoria literária, que passam para o público como se fossem factos reais e verificados, e é esta a maior burla intelectual.

A Igreja melhor do que eu poderia dizer á ciência que Deus não é descartável, mas colabora, através do sacerdócio que faz ciência, no "vamos fazer de conta que Deus não existe". Eu não estou a dizer que Deus existe, não sei se existe. Também não estou a dizer que Deus não existe, continuo a não saber. Declaro, isso sim, que o epíteto natural colado á expressão História Natural, selecção natural, etc., é uma fraude intelectual enquanto não for demonstrado que Deus não existe. Infelizmente para os naturalistas, Deus é um tropeço no seu caminho de que não se podem descartar. Tudo o que diz respeito ao naturalismo assenta neste natural, isto é, neste "vamos fazer de conta". Ora o fazer de conta, todos o sabem, é um princípio da ficção.

 Remato de forma tão desataviada e directa como principiei. Se me perguntarem agora por que motivos a ciência, com a co-autoria de sacerdotes, levou a cabo tão vasta paródia, direi que há vários. Mas apresento uma só conclusão do meu trabalho de vários anos a este religioso auditório de crentes e ateus, deixando claro que a conclusão é uma exegese e não um facto: a ciência levou a cabo esta burla para obrigar a Igreja Católica Apostólica e Romana a ajoelhar diante do filho do macaco.

(1) As "Alquimias" foram absorvidas pelo TriploV, bem como os livros : "Carbonários - Operação Salamandra" e "Francisco Newton - Cartas da Nova Atlântida". Também pode ler os textos de "Ciência e subversão". Nos do Zoo Ilógico encontra mais paródias de Gray e Sclater sobre macacos. A do Macacus rhesus é comentada em "Dar ao público a imagem científica" - Zoo Ilógico. 

BIBLIOGRAFIA

ALMAÇA, Carlos (1995) - Fish species and varieties introduced into Portuguese inland waters. Publicações avulsas do Museu Bocage, Lisboa. História / Pisces. 

CRESPO, E.G. (1971) - Anfíbios de Portugal continental das colecções do Museu Bocage. Arquivos do Museu Bocage, III (8): 203-304.

CRESPO, E.G. (1972) - Répteis de Portugal continental das colecções do Museu Bocage. Arquivos do Museu Bocage, III (17): 447-612. 

GUEDES, Maria Estela & PEIRIÇO, Nuno Marques (1998) -  Carbonários - Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864. Contraponto, Palmela. Reedição aumentada com documentos inéditos, online no TriploV e em http://hybris.no.sapo.pt/

GUEDES, Maria Estela & PEIRIÇO, Nuno Marques (1998) - Ficções da Ciência. Comunicação apresentada á Reunión Científica Internacional Ciencia y sanidad en España y America Latina, RIHECQB. Facultad de Farmacia, Universidad Complutense de Madrid, 14 de Julho. Boca do Inferno, Cascais, 3: 187-191.

GUEDES, Maria Estela (1999) - Do Dodó á Fénix - Parte III: Transmutação no discurso científico. Comunicação apresentada ao Colóquio Discursos e Práticas Alquímicas. CICTSUL. Biblioteca D. Dinis, Odivelas, 16-17 de Julho de 1999. Actas em publicação.  

GUEDES, Maria Estela (1999) - O naturalista como criador - o enigma da mensagem na garrafa. Atalaia, Lisboa, (5): 31-42.  

GUEDES, Maria Estela (1999) - Natura ou Cultura? Exposição CulturaNatura, Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Folheto oferecido ao público, relativo ao bloco de cobre.

GUEDES, Maria Estela & PEIRIÇO, Nuno Marques Peiriço (2000) - O gaio método. Actas do Congresso Luso-Brasileiro "Portugal-Brasil: Memórias e Imaginários", Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Vol. II:  489-50.

GUEDES, Maria Estela (2000) - A ciência como arma de guerra. Asclepio, Vol. LII (1). Madrid. 

GUEDES, Maria Estela (2000) - Francisco Newton: Cartas da Nova Atlântida. Com a colaboração de Andrés Galera, Alexandra Escudeiro e Nuno Marques Peiriço. Online no TriploV e em http://hybris.no.sapo.pt/

GUEDES, Maria Estela (2000) - Martinho de Mello e Castro e as riquezas naturais. Comunicação apresentada ao (II) Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas. CICTSUL, Biblioteca D. Dinis, Odivelas, Junho de 2000. E muita documentação sobre a "Pedra de Cobre", online no TriploV.

GUEDES, Maria Estela (2001) - Dar ao público a imagem científica. Online em www.triplov.com (Zoo Ilógico).

OSORIO, Balthazar (1896) - Peixes de Mattosinhos (Terceiro appendice ao catalogo dos peixes de Portugal de Felix Capello). Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Segunda Série, IV (15): 131-159.

GUEDES, Maria Estela (2002) - Ciência e Subversão - Baltasar Osório. Online em www.triplov.com

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes

estela[arroba]triplov.com

TriploV. APE. CICTSUL



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