As espécies Bayoni sob o signo da prisão

Enviado por Maria Estela Guedes


Comunicação apresentada ao XXI Congresso de História das Ciências. Cidade do México, Julho de 2001.
Viagem subsidiada pela Fundação Calouste Gulbenkian.

A respeito de Francisco António Pinheiro Bayão, que eu saiba, não se publicou nenhum artigo, nem sequer nas enciclopédias. O seu nome figura apenas em catálogos de fauna e em descrições de novas espécies angolanas, como colector. Há ainda um campo literário a explorar, decerto de carácter político, na imprensa da época, pois reclama numa carta que na qualidade de jornalista sempre afrontara "cara a cara o despotismo, defendendo pobres vítimas, sob o risco de uma perseguição atroz". Segue com uma descrição de Angola, feita sob o signo ainda de homem da comunicação pública: "Vinha a propósito dizer-lhe o quanto esta terra está longe de ser um país civilizado, e como é que aqui triunfa a mais torpe imoralidade. Basta pensar que aqui não há imprensa, não há opinião pública, não há nada do que é indispensável manter numa sociedade em certo grau de civilização." (Bayão, 1864).

Como naturalista, a sua história dura três anos. Como oficial do Exército de Portugal, é dramática. Para a contar, recorro a manuscritos conservados no Arquivo histórico do Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural, Lisboa). Este museu, então chamado Museu de Lisboa, acabava de ser fundado por José Vicente Barboza du Bocage á data em que Bayão enviava para ele colecções de animais de Angola.

Desde pelo menos o século XVIII, a actividade do naturalista é indissociável da militar, e aliás também da religiosa. Exemplo desta estreita familiaridade é precisamente Bayão, militar a quem se deve parte das mais remotas referências sobre a fauna do norte do Quanza. Em meados do século XIX, a ciência começava a conhecer África, na sequência do seu envolvimento na luta das potências europeias pela partilha do continente negro. Era o caso de Duque de Bragança, zona para a qual Bayão fora destacado em 1863 como comandante militar. As notícias mais antigas que conheço sobre a presença de certas espécies no Duque de Bragança, Dondo e Pungo Andongo, locais de colheita de Bayão, devem-se ao botânico Frederico Welwitsch, que por ali passara em 1858, no curso da sua exploração de Angola. Bayão é o seu sucessor directo, e o sucessor directo de Bayão será José de Anchieta.

Pungo Andongo era outrora conhecido pelo nome de Pedras Negras, por ali haver um formidável conjunto de rochas que dá sobre precipícios, o que faz dele uma prisão natural. A sua conquista aos negros, no século XVII, foi muito difícil. Na sequência destas campanhas ali se estabeleceu um presidio de fama terrível. Quando Pinheiro Bayão foi destacado para Duque de Bragança, onde existia outro presídio, nas Pedras Negras tinha acabado de se construir uma povoação, elevada a concelho. Provavelmente, antes de transferido para o presídio do Penedo, a que ele chama "Bastilha" (Bayão, 1864), esteve preso no de Duque de Bragança, cujo comando lhe pertencia.

Foi Welwitsch quem revelou o motivo pelo qual as Pedras Negras eram negras: nas águas represadas nos rochedos cresciam algas filamentosas que lhe davam ou dão ainda aquela cor. Welwitsch e Bayão conheciam-se, tal como este manifesta a Bocage, ao remeter para o Museu de Lisboa as suas cinco primeiras caixas, contendo insectos, moluscos, répteis, um pénis de jacaré, aranhas, uma pele de quadrúpede e outra de réptil. Eis o que ele solicita a Bocage: "Vão também helicóides, mas peço eu que sejam enviados ao Ilº Dr. Welwitsch, [que] primeiro mos tinha pedido. Como vão exemplares repetidos, rogo a V. Exª se sirva de lhe mandar de todos." (Bayão, 1863a). De caminho vai informando que o serviço como oficial o tem torturado, e que não tenciona reclamar pagamento pelas despesas com a colecção, a menos que revelem algum mérito. Apesar de a carreira de Bayão como naturalista ter sido breve, foram criadas dezenas de novas espécies a partir de exemplares coligidos por ele, como mostra a lista que forneço em anexo.

Ora, quando Bayão foi preso, Bocage, que, além de zoólogo português mais notável do século XIX, era também político influente, várias vezes ministro, tomou o oficial sob a sua protecção, tendo até pensado encarregá-lo da exploração zoológica de Angola, quando o ministério lhe pediu que traçasse as bases do plano das explorações ultramarinas. (Bocage, 1865 c, d) (Lima, 1865 a,b). Bayão recusou a proposta de Bocage, alegando que era tarde para empreender estudos sérios, e além disso os seus problemas tinham-no inutilizado para a vida pública: "Dois anos no cárcere ou pervertem um homem ou aniquilam-no". Informa na mesma carta que acabava de chegar a Luanda José de Anchieta, que estava a morar com ele na fortaleza do Penedo (Bayão, 1865b). Bocage sugere então o nome de Anchieta, que virá a ser o mais exaustivo colector da época, tendo remetido número incalculável de exemplares para a Europa, ao longo dos mais de trinta anos que passou em Angola.


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