Interpretando a tradição musical: da transcrição à execução

Enviado por Manuel Pedro Ferreira


RESUMO:

A partir da experiência do conferencista enquanto músico, investigador e director do grupo Vozes Alfonsinas, traça-se aqui uma panorâmica das modalidades interpretativas supostas na abordagem contemporânea de diversas tradições musicais, evidenciando o papel mediador desempenhado pela experimentação, assim como a existência de um continuum intelectual entre a tarefa do musicólogo e aquela do "intérprete".

Começarei, se não se importam, por uma recordação pessoal. Quando era criança não havia piano em minha casa, nem em casa de parentes próximos, nem de vizinhos. Havia um no Jardim-Escola que frequentava, á Estrela, e também no Lar Educativo João de Deus, onde passei os anos finais da escola primária; mas esses pianos " o primeiro, de cauda, que só se ouvia em dias de festa; o outro, vertical, para acompanhar o canto coral " eram instrumentos de professor, não se lhes podia tocar. Havia um colega, o Emiliano, que tinha piano em casa, e o tocava. Que admiração nisso ele me causava! Mas sendo naturalmente tímido, o respeito que devia ao teclado sobrepôs-se á minha curiosidade de o experimentar. Aliás, sendo manualmente desajeitado, ou assim me sentindo, não tinha ensejo de o tornar óbvio aos ouvidos de toda a gente.

Foi já no início da adolescência que me interessei mais seriamente pela música; mas o piano continuava-me estranho. Quando, numa classe de Educação Musical no Conservatório Nacional, a professora me pediu para ir ao instrumento tocar o Lá central, eu, aflito, não o consegui identificar entre as oito  eclas cujo nome é Lá. Talvez tenha sido aí que me tenha decidido a aprender uns rudimentos de piano... Mas experimentá-lo, como tantos miúdos e graúdos fazem alegremente, só o fiz mais tarde, enquanto compositor que apalpa sonoridades, procura acabar ideias ou achá-las de improviso, ou verifica o resultado de abstractas concatenações.

De facto, o piano tem sido um instrumento privilegiado para a experimentação, desde Beethoven, que destruiu uns tantos á força de os martelar, a Stravinsky, que punha os vizinhos em sobressalto com as suas percutividades. A qualidade exploratória do pianismo público de Chopin deriva da dimensão experimental das suas improvisações privadas. Mas as limitações que o instrumento faz pesar sobre o pensamento artístico que nele se concretiza levaram a vanguarda do pós-guerra a demonizar o seu uso convencional e a cultivar a imagem do compositor que trabalha exclusivamente sobre a mesa, longe de qualquer apoio instrumental, ficando assim livre para a especulação criativa. A superioridade do compositor medir-se-ia em parte pela sua distância em relação ao uso do piano. Na verdade, este não foi banido, mas o seu papel e o seu prestígio viram-se drasticamente diminuídos.

Nos anos sessenta e setenta do século XX, foi ainda o próprio compositor erudito que se viu posto em causa enquanto figura que determina até ao ínfimo pormenor o desenrolar de uma obra musical, ocupando por esse facto o lugar cimeiro na hierarquia artística. A reformulação do seu papel no sentido de um maior equalitarismo social, ou seja, uma situação em que maiores responsabilidades criativas são confiadas ao executante, passou pela exploração do aleatório na escrita musical e pelo ressurgimento da improvisação em moldes colectivos. Esta última linha de experimentação levou, por seu lado, á revalorização da memória musical, sem a qual não é concebível a espontaneidade improvisatória. E da revalorização da memória musical passouse, pouco a pouco, á reintegração da tradição musical erudita no novo discurso composicional, primeiro como alusão, citação ou material destinado a montagem, e de seguida, já em pleno pós-modernismo, como possibilidade de linguagem.

Da posição do compositor actual face á experimentação não irei falar, já que outro conferencista, Paulo Maria Rodrigues, se ocupou esta manhã do tema (aliás, de forma fascinante), e já que eu, comparativamente, sou um bota-deelástico encalhado na pré-história da criação artística, ou seja, no tempo-deantes-dos-computadores...

No entanto reencontrei e afinei o gosto pela experimentação num outro domínio de actividade musical, o da exumação e apresentação da música antiga, de antes do barroco; coisa que, se quiserem uma imagem com ligação á literatura, corresponderá simultaneamente ás tarefas de editor, tradutor, encenador e actor de um drama grego ou de um auto renascentista.

De facto, na música de antes de 1600, não é possível conceber a leitura de um documento musical senão como uma tarefa interpretativa; uma interpretação que supõe rigor paleográfico e um grande esforço de contextualização histórica e estilística, mas não se detém aí, sob pena de a peça permanecer esteticamente inacessível, não vivenciável, condenada á obscuridade.

A realização sonora da música antiga, ainda que não vá além da esfera privada, como a de alguém que canta e toca ao piano (ou, continuando o paralelo com o teatro, alguém que empresta solitariamente a voz aos vários personagens vicentinos), é fundamental para que lhe possamos encontrar um sentido. Que esse sentido tem um eco social, atestam-no o sucesso dos concertos ao vivo e a boa recepção das gravações discográficas correspondentes. Ora, essa realização sonora implica muitas vezes uma experimentação, quer ao nível das soluções de transcrição, quer ao nível das possibilidades de execução musical.

Comecemos pelo fim, ou seja, pela execução musical, por ser mais facilmente compreensível. é sabido que um cantor, devido aos seus hábitos ou á sua escola, pode imprimir um estilo particular a uma canção. é também sabido que a forma como o cantor aprende uma música condiciona a sua apreensão e influencia a sua exteriorização. Ora, há estilos mais ou menos adequados, e métodos de aprendizagem mais ou menos próximos de uma realidade histórica particular. Na Idade Média, aprendia-se sobretudo de ouvido, e a voz devia ser clara, lisa e flexível, harmonicamente suave. Por isso, quando há vinte anos procurei um intérprete para gravar as cantigas d"amigo de Martin Codax, quis encontrar alguém, preferivelmente um homem (pois os jograis galegos eram homens), que tivesse habituado a aprender de ouvido, tivesse boa voz, mas fosse alheio aos tiques operáticos do Conservatório, para que pudesse ter a clareza de emissão e entoação supostas pela música medieval.


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