O naturalista como criador: o enigma da mensagem na garrafa



Ao propor-me desenvolver o tema do homem como Criador*, esperava encontrar autores em que me apoiar. Tanto quanto apurei, entretanto, nenhum sistema de ideias aceita que o homem o seja, a não ser talvez o dos frequentadores do palácio de Satã, que não investiguei. Para as religiões convencionais, o Criador é um só, tenha embora muitos nomes - Deus, Ente Supremo, Grande Arquitecto do Universo, etc.. Para a ciência, na origem do universo e da vida está o acaso. Se nos colocarmos numa perspectiva ateísta, não haverá objecções a que se diga que Deus é uma criação humana, mas isto é um comentário, não uma teoria. Já sem polémica se aceita o homem como criador minúsculo, em todos os domínios - desde a procriação á pecuária e á agricultura, desde a arte ao infantário. Só neste pacífico relvado posso então pôr o naturalista a desafiar o Criador.

No âmbito do projecto Ciência extraordinária: espécies criticas (1), vou apresentar dois exemplos de discurso bifurcado, nos quais vemos mais propósitos além de descrever objectivamente a natureza - o mapa de Alexander (2) de Fernando Pó (Bioko), e uma mensagem que se diz ter sido encontrada dentro de uma garrafa, no cume do Pico de Clarence ou de Santa Isabel. é a epígrafe : "Hoy, 3 de abril de 1860 - Julian Pellón y Rodg. - Punto de ebullición, 195,5. Temperatura, 70º fah." Demonstram mais uma vez que o naturalista é um criador, como o poeta, o pintor ou o alquimista.

Os exemplos fazem parte da literatura relativa ás explorações geográficas, botânicas e zoológicas em Fernando Pó. A ilha localiza-se no Atlântico Norte, portanto a norte do Equador, perto de São Tomé e frente aos Camarões. Nestas ilhas vulcânicas há altas montanhas. O ponto mais elevado de Fernando Pó, que rondará os 3300 metros, é o Pico de Clarence.

Se repararmos no mapa do tenente Boyd Alexander, um dos naturalistas que escalaram o Pico, verificamos que ele situa a ilha no South Atlantic Ocean. O seu catálogo das aves fernandinas, ilustrado com este mapa, foi publicado na Ibis. A Ibis ainda hoje é a mais importante revista de ornitologia do mundo. Mas a deslocação da ilha para o hemisfério sul não é a única atitude criadora do mapa - algumas localidades são imaginárias. Porque é que o cientista publicou esta obra criadora e porque é que na Ibis lhe aceitaram o artigo? No seu catálogo, descreve trinta e quatro espécies de aves exclusivas de Fernando Pó, dezanove delas coligidas em Bakaki. Um tal número de endemismos, concentrados numa aldeia, e descobertos depois de outros naturalistas terem explorado a ilha, em especial o português Francisco Newton, que não dão conta de terem observado tais espécies, é impossível á luz do senso comum. Para deslindar o mistério deste aviário, primeiro é preciso saber quem é o autor da obra e que ciência é a sua, pois não é só a normal.

A obra dos naturalistas, como da ciência em geral, é colectiva. Nenhum texto faz sentido isolado dos que tratam do mesmo assunto. é preciso comparar uns textos com os outros, se quisermos detectar o registo da criação. Por exemplo, até hoje, que saiba, ainda ninguém comentou o mapa de Boyd Alexander. Agora, que acabei de dizer que Fernando Pó se situa no Atlântico Norte, já o facto de ele a ter situado no Atlântico Sul acende a luz do sentido. Da confrontação de saberes ressalta um problema: ou bem que o mapa está errado ou então errada estou eu. Nenhum de nós está enganado, simplesmente eu, que sou uma criadora, refiro-me apenas á geografia da Terra; Boyd Alexander, um cientista, fez o mapa de uma ilha utópica, além de real. Fernando Pó, como São Tomé, Maurícia, etc., não é só obra de Deus ou do acaso, ela é também obra do naturalista enquanto criador.

O discurso da ilha simultaneamente real e imaginária foi tecido á imagem da Cidade do Sol de Campanella, da Atlântida de Platão, da Utopia de S. Tomás More, do Erewhon de Samuel Butler, etc., e muito em especial da Nova Atlântida de Francis Bacon. O que liga estas utopias aos naturalistas é o projecto comum de criarem um Estado perfeito, a República transportada para a Atlântida por Platão. A Atlântida, espelho da República, é uma palavra de passe destes homens, em geral republicanos, alguns mesmo carbonários, desde o século XVIII. Os naturalistas não são utópicos nem platónicos, pelo contrário - o seu lema é materialista. Têm é dispositivos para se identificarem uns aos outros e para marcarem certos objectos da sua investigação.

Marcarem como quem carimba o que é seu, como quem anilha aves para seguir o seu destino.

Utopia não quer dizer efabulação, nem objecto de desejo inatingível, sim nenhures, título também de Butler. Erewhon é anagrama de nowhere. As utopias são programas de governo, falam de regimes que já conhecemos, como a que deu nome ao género literário. Tomás More começa logo por abolir a propriedade privada, instaurando uma sociedade comunista no seu lugar nenhum. Mas o lugar nenhum é todos os lugares, a vocação destes filósofos é universalista:

Um dos topónimos imaginários de Alexander, Banterbari, explica-se a si mesmo como linguagem, a avisar que o mapa é utópico, pois banterbari, em inglês, significa país das maravilhas da linguagem, jogos verbais. Outro topónimo imaginário é Balbeki. Remete não só para a Civitas Solis de Campanella, como sobretudo para Baalbeck ou Heliópolis. Como o nome indica, nestas cidades adorava-se a Luz. Alguns utopianos de Morus também adoram um deus solar, Mitra. Alexander criou em Fernando Pó a terceira cidade das Luzes, e estas Luzes já as transpus para o movimento iluminado. Quer dizer, não me refiro apenas ao período iluminista, mas também ao intemporal esoterismo.


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