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Rotas do paludismo. Os naturalistas e a introdução de espécies (página 2)

Maria Estela Guedes

Newton mostra que a doença existia em Cabo Verde em finais do século XIX, aliás já ali se conhecia desde séculos antes; em 1507, as caravelas das rotas da Índia tinham recebido ordens para não escalarem nas ilhas, forma de evitar que as pessoas contraíssem a doença (Cambournac et al.,1984). Ora, sendo elas vulcânicas e distantes uns quatrocentros quilómetros de África no ponto em que mais se aproximam do continente, como é que o paludismo as alcançou?

O paludismo, sezonismo ou malária, não é uma doença, sim uma série de estados mórbidos no homem e nos animais, causados por protozoários cujo ciclo de vida se desenrola em hospedeiros de espécies distintas. Parte das fases de desenvolvimento decorrem no aparelho digestivo de algumas espécies de mosquito do género Anopheles, e as fases restantes no sangue do animal infectado pela picada do mosquito. Esses protozoários, se bem que agrupados em um só género (Plasmodium), pertencem a várias espécies e variedades, em geral próprias de cada grupo animal: os Plasmodium que causam a malária humana não causam malária aos macacos, e os plasmódios do macaco não transmitem a malária ao homem. De outra parte, cada espécie produz seu tipo de paludismo, ou infecção mista, se vários agentes se combinam no sangue. As principais são Plasmodium vivax, que desencadeia a febre terçã, benigna ou intermitente simples; Plasmodium malariae, responsável pela febre quartã ou intermitente simples; e Plasmodium falciparum, na origem da febre terçã, maligna ou remitente perniciosa (Poisson, 1953).

Uma das várias hipóteses de dispersão dos animais que colonizam ilhas é a do transporte eólico, aplicável ás de Cabo Verde: mosquitos do continente podem ter sido empurrados pelo vento até as alcançarem. Porém os factores envolvidos na infecção palúdica são demasiado complexos para aceitarmos que a sua chegada ás ilhas tenha sido independente da participação humana. Ovos e larvas também viajam nas vasilhas de água a bordo de navios, aviões e outros meios de transporte. De algum destes modos terá sido introduzido o Anopheles gambiae no Egipto e no nordeste brasileiro. Estas introduções deram lugar a campanhas anti-maláricas de grande vulto. A erradicação do Anopheles do Brasil, para onde terá sido introduzido em 1928-1930, foi o primeiro exemplo da possibilidade de extinção de um anofelino introduzido. O segundo foi o extermínio da mesma espécie no Egipto, em 1945. No Brasil esta operação cobriu 300 mil quilómetros quadrados, área na qual quase 100% dos habitantes tinham estado doentes e 50% das casas haviam sido abandonadas (Cambournac, 1948).

Então os mosquitos podem ser introduzidos em regiões onde não existiam anteriormente. Porém isso não é necessário para que uma zona sã passe a ser palúdica. Estão identificadas mais de trezentas espécies de Anopheles (Ribeiro et al., 1980), distribuídas por grande parte do mundo, se bem que só muito poucas sejam vectores do paludismo - além de Anopheles gambiae, um dos mais importantes vectores em toda a África tropical (Ferreira et al., 1948), mencione-se Anopheles maculipennis atroparvus, responsável pelo paludismo em Portugal. Para relativo sossego nosso, dessas poucas, só as fêmeas picam, só picam de noite, e só quando estão em postura, pois precisam de sangue para amadurecerem os ovos (Hill, 1938).

Os Anopheles, mesmo vectores de malária, podem habitar dada região, sem a transmitirem ao homem, porque o seu organismo está limpo de protozoários. Passam por ser o único vector da doença, porque somos nós o sujeito do olhar: se fossem os mosquitos a apresentar esta comunicação, era o homem o seu principal inimigo. Fora do âmbito das especializações, e até na experiência que muitos conservamos de longas temporadas em regiões fortemente palúdicas, é dos mosquitos que o homem se protege, drenando pântanos, secando vastas áreas, tapando vasilhas, lançando larvicida para as colecções de água, usando mosquiteiros, exterminando-os com insectidas, etc.. Porém, quando um mosquito saudável suga o sangue de alguém infectado, os protozoários são ingeridos, desenvolvem-se no sistema digestivo do insecto, e só então o mosquito os pode transmitir a uma pessoa sã. Aliás há registo de casos em que a doença é transmitida não pelos mosquitos, sim por transfusões de sangue. Em suma, os Anopheles só infectam o homem por terem sido infectados por ele.

Para voltar a Newton, com os seus verdadeiros acesso de paludismo, pois falso é o lugar onde diz que os sofreu, ele transportou os hematozoários nas suas inúmeras viagens entre Portugal, Timor, Macau, São Tomé, Angola e outros pontos da costa africana. Introduziu-os assim no organismo de Anopheles saudáveis, do mesmo modo que introduziu nos museus objectos coligidos em lugares de onde supostamente escreve mas onde não estava.

Na rota do paludismo, já vimos que as quineiras, os protozoários, e ovos e larvas de mosquitos foram transportados e introduzidos pelo homem em geral e pelos naturalistas em particular. Faltam porém outras espécies, as que levantam problemas delicados á biologia, por não se saber quais são. Entre os métodos de combate aos animais nocivos, a introdução de predadores é praticada pelo menos desde o século XVIII, como se lê em Vandelli (3), sem mais pormenores. Aliás, ela é praticada desde que o homem começou a domesticar gatos para comerem ratos. Na literatura consultada para este artigo, mais extensa do que a referida, menciona-se o combate aos Anopheles por este processo, porém os autores só se referem á introdução de predadores, indígenas ou estrangeiros, o que é insuficiente; outros mencionam os peixes, o que continua a ser vago; dentro do grupo vago dos peixes só Cambournac (1949) cede a identificar um género, Gambusia. Finalmente, em só um artigo vimos identificada uma espécie, o que torna oficial a introdução de Gambusia affinis nas ilhas de Cabo Verde pela Missão de Estudo e Combate de Endemias (Ribeiro et al., 1980).

Que outras espécies foram introduzidas ao longo de séculos, de que não aparece rasto na literatura científica, a não ser em discurso cifrado? Para não sairmos de Cabo Verde, com a sua enigmática herpetofauna, não serão sapos, osgas e lagartos, animais insectívoros? E para rematar com esse mesmo Frederico Hopffer que não esperou que as quineiras crescessem tudo quanto podiam para afirmar, com mais zelo maçónico do que matemático, que em Cabo Verde o tamanho máximo das quineiras era de 333 centímetros, então o lagarto gigante, Macroscincus coctei, está ainda mais marcado pelo 3, no apocalíptico 666 da página de descrição original da qual é citado. De resto, é a espécie que conheço cuja literatura mais sobrecarregada está de contradições e ironias. Basta pensar que a sua celebridade se deveu ao gigantismo, metro e meio, segundo Gray, quando as suas dimensões normais eram os doze a quinze centímetros dos seus congéneres.

(1) Cartas de Francisco Newton. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/N-142. Newton fez a exploração de Cabo Verde e Guiné de 1898 a 1902. Sem ano. Deve ser de 1902.

(2) Cartas de Francisco Newton. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/N-126. Sem ano. Deve ser de 1895.

(3) Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V. 1779. Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. azul, Academia das Ciências de Lisboa.

REFERÊNCIAS

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CAMBOURNAC, F.J.C., H. Santa Rita Vieira, M.A. Coutinho, F.A. Soares, A.Brito Soares & G.J, Ganz (1984) - Note sur l'éradication du paludisme dans l'íle de Santiago (République du Cap-Vert). Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, 10 (1-4) 23-34.

FERREIRA, F.S. Cruz, A.R. Pinto & C.L. de Almeida (1948) - Alguns dados sobre a biologia do Anopheles gambiae da cidade de Bissau e arredores (Guiné Portuguesa), em relação com a transmissão da malária e filaríase linfática. Missão de Estudo e Combate da Doença do Sono na Guiné. Anais do Instituto de Medicina Tropical, V: 223-250, fotos, gráficos e planta da cidade de Bissau.

GOMES, Bernardino Antonio (1875) - As arvores da quina em Cabo-Verde. Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Academia Real das Sciencias de Lisboa, V (18): 73-74.

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GUEDES, Maria Estela (1992) - Memórias do lagarto cabo-verdiano. O Escritor, Revista de Cultura da Associação Portuguesa de Escritores, nova Série, nº 1: 83-104.

GUEDES, Maria Estela (1999/-) - Francisco Newton: Cartas da Nova Atlântida (livro que publica as cartas do naturalista existentes no Arquivo histórico do Museu Bocage). E "As gralhas", conjunto de artigos e dossiers sobre a subversão em ciência. Em linha em http://triplov.com/.Citado em Março de 2003.

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LANDEIRO, Fausto (1936) - A quina e seus derivados. Separata do Boletim Geral das Colónias, 127, 62 págs., Agência Geral das Colónias, Lisboa.

POISSON, Raymond (1953) - Famille des Plasmodiidae. In Pierre-P. Grassé, "Traité de Zoologie", T. I, fasc. II - Protozoaires. Masson & Cie. Paris.

RIBEIRO, H., Helena da Cunha Ramos, R. Antunes Capela e C. Alves Pires (1980) - Os mosquitos de Cabo Verde (Diptera : Culicidae). Sistemática, distribuição, bioecologia e importância médica. Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa. Estudos, Ensaios e Documentos, 135, 142 pp.ilustr., fotos e mapas.

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Autor:

Maria Estela Guedes
estela[arroba]triplov.com

TriploV. APE. CICTSUL



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