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O zapatismo e o fim da história (página 2)

Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

Deste modo, da mesma forma que fazia há mais de 500 anos, o capitalismo, mesmo no auge do neoliberalismo, deixa sua marca de miséria e morte neste sudeste, que continua exportando matérias-primas e mão de obra barata, e importa em contrapartida, destruição do meio ambiente, alcoolismo, expropriação de terras etc.

A situação de Chiapas hoje não é muito diferente de 11 anos atrás, na chamada "zona de conflito", apenas 1% da população (isto é, 667 pessoas), detêm 15% da terra, enquanto os outros 85% da terra são para serem repartidas por dezenas de milhares de indígenas. Estima-se que existam um soldado para cada três habitantes em toda a região de Chiapas e que se desprende 30% do total das tropas do exército federal nesta região, para "garantir a ordem pública", com um gasto de mais de U$ 200 milhões anuais com esta guerra (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 21-24).

Segundo Coggiola, ao contrário de uma idéia largamente difundida, o levante de 1994 não foi uma "surpresa", pois:

Desde a década de 1980 diversos "programas sociais" do governo mexicano, como o Pronasol, ou dos organismos internacionais, procuravam na verdade desativar o que diversos observadores já chamavam de "bomba chiapaneca, uma "bomba social" de efeito retardado que não demoraria para explodir. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 9).

3. O México e a nafta

O dia de aparição pública do movimento zapatista acontece (não por acaso), na data de entrada em vigor da NAFTA, área de livre comércio entre a América do Norte (Estados Unidos da América, Canadá e México)[4], e como o próprio nome indica, apenas os produtos poderiam trafegar livremente, sem taxações de impostos, mas não os milhares de seres humanos, principalmente os "chicanos"[5], que são presos ou morrem aos montes anualmente, tentando ultrapassar a fronteira com os EUA, como afirma Ariovaldo Umbelino de Oliveira,

O objetivo era formar um mercado comum com diferenças substantivas em relação à União Européia, pois não haveria liberdade para as pessoas, somente para a circulação dos capitais e das mercadorias. Os Estados Unidos reforçaram o policiamento da fronteira com o México e muros foram construídos para impedir a livre circulação das pessoas. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 51).

Uma das condições do pacote de acordos para o México enfim fazer parte do seleto grupo dos países de "primeiro mundo", era a mudança do artigo 27 da Constituição mexicana, fruto e principal conquista da histórica Revolução de 1910-1919, que teve como heróis Emiliano Zapata e Pancho Villa. O artigo 27 abordava a regulamentação agrária da propriedade da terra e o bem-estar dos camponeses e das comunidades indígenas, assim, a mudança visava à destruição da posse coletiva da terra, os ejido[6]Com a modificação deste artigo, se declarou concluída a divisão agrária e o ejido convertido em um bem mercantil alienável, tornando então, possível à venda individual de parcelas da terra. (ZERMEÑO, 1997, p. 89).

Pode-se dizer que as injustiças, misérias e explorações sofridas pelas populações indígenas no México são um fato predominante desde a colonização mexicana, e que as contradições da vida econômica, social e política, estão na raiz do próprio movimento histórico. Pois como afirmam os insurgentes em sua primeira declaração oficial, ao povo mexicano em especial, em 1º de Janeiro de 1994:

Somos produto de 500 anos de luta: primeiro contra a escravidão, na guerra de Independência contra a Espanha encabeçada pelos insurgentes; depois para evitar sermos absorvidos pelo expansionismo norteamericano; em seguida, para promulgar nossa Constituição e expulsar o Império Francês de nosso solo; depois, a ditadura porfirista nos negou a aplicação justa das leis da Reforma e o povo se rebelou criando seus próprios líderes; assim surgiram Villa e Zapata, homens pobres como nós, e quem se negou a preparação mais elementar, para assim utilizar-nos como bucha de canhão e saquear as riquezas de nossa pátria, sem importar que não tenhamos nada, absolutamente nada, nem um teto digno, nem terra, nem trabalho, nem saúde, nem alimentação, nem educação, sem ter direito a eleger livre e democraticamente nossas autoridades, sem independência dos estrangeiros, sem paz nem justiça para nós e nossos filhos. Porém nós hoje dizemos: BASTA!, somos os herdeiros dos verdadeiros forjadores de nossa nacionalidade, os despossuídos somos milhões e chamamos a todos nossos irmãos para que se somem a este chamado como o único caminho para não morrer de fome ante a ambição insaciável de uma ditadura de mais de setenta anos, encabeçada por uma camarilha de traidores que representam os grupos mais conservadores e vende-pátrias. (DI FELICE; MUÑOZ, 1998, p. 39).

4. Origens

Michel Löwy identifica cinco "fios condutores" que deram origem à formação do EZLN. O primeiro deles seria o guevarismo, "o marxismo na sua forma revoluciónaria latino-americana" (LÖWY, 2002), ele realiza esta identificação por perceber no EZLN "a importância da luta armada, a ligação orgânica entre os combatentes e o campesinato, o fuzil como expressão material da desconfiança dos explorados frente a seus opressores, a disposição a arriscar sua vida pela emancipação de seus irmãos". (LOWY, 2002). O segundo fio, seria a herança da Revolução de Emiliano Zapata, caracterizada pela sublevação dos camponeses e índios, a luta pela terra etc. Um terceiro fio, seria a teologia da libertação, pelo menos em princípio, pelo trabalho de conscientização das comunidades indígenas e também a auto-organização com o intuito de lutar pelos próprios direitos, mesmo que esse tipo de trabalho se recuse a qualquer tipo de ação violenta (como uma insurreição armada). Um outro fio, talvez o mais importante na concepção desse sociólogo, é a cultura maia dos indígenas chiapanecos, pela "sua relação mágica com a natureza, sua solidariedade comunitária, sua resistência à modernização neoliberal"[7] (LÖWY, 2002). Um último fio, seria o das exigências democráticas da sociedade civil mexicana, composta por uma imensa rede de partidos de esquerda, sindicatos, ONG"s, ecologistas etc., mas apoiados em uma única bandeira: Democracia, Dignidade e Justiça.

5. Identidade indígena

Somos a dignidade rebelde. Somos o coração esquecido da pátria.

Somos a memória primeira. Somos o moreno sangue que nas montanhas ilumina nossa história. Somos os que lutam e vivem e morrem. Somos os que assim falam: "Para todos tudo, nada para nós". (CCRI-CG)

Uma das questões nevrálgicas colocadas pelos zapatistas é com relação a questão da identidade indígena, e nem poderia ser diferente, tratando-se de um movimento que tem majoritariamente um caráter indígena pluriétnico, Como nos mostra Pedro Casaldaliga,

A revolução zapatista, chegando quando se dogmatizava o fim de toda revolução, desvelou aos olhos do México e aos olhos do mundo um novo antiquíssimo México. País pluriétnicos e pluriculturais, desafio para o México mais oficial ou mais desmemoriado. Desafio também para a maior parte dos países latino-americanos, cuja política indigesta tem sido sempre integracionista e não integradora de alteridades, respeitadas e autônomas. A América, ao longo de sua história com este nome, não tem sabido ser Ameríndia; como não tem sabido ser Afroamérica... (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 68).

Nos deteremos um pouco então, na discussão da identidade indígena, e qual seu significado para a população mexicana e para as comunidades insurgentes. Parte significativa da sociedade mexicana enxerga os indígenas como sujeitos inferiores, eles são alvos de racismo, de gozações e menosprezo. Segundo Cristobal Muñoz,

Quando no México, prestamos atenção ao mundo indígena, subestimamos idiomas, religiões, cultura, direito e ainda a condição humana dos povos índios. [...] quisemos ajudar estes povos a deixarem de ser eles mesmos, porque aberta ou veladamente acreditamos que não devem continuar sendo o que são. Alguns liberais do século XIX propuseram, inclusive, que desaparecesse o termo "índio" e que só falássemos de diferenças entre cidadãos pobres e cidadãos ricos. Hoje elogiamos a cultura pré-hispânica, mas desqualificamos ou desconhecemos as culturas indígenas atuais. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 18).

O preconceito ao indígena no México, pode ser claramente sentido em diversos comunicados dos próprios integrantes do movimento zapatista, assim, denuncia a comandante Esther, (de etnia TZELTAL):

Nós somos mexicanos, falamos nossa língua, temos nossa vestimenta, nossa medicina, nossa forma de rezar e também nossa forma de dançar. Como indígenas homens e mulheres temos nosso modo de trabalhar e de respeitar nossos anciãos, assim como nos ensinaram nossos avós. Desde o tempo deles nos ensinaram a resistir e a nos organizarmos. Não é por sermos indígenas e por falarmos nossa língua e por sermos morenas que vão nos desprezar, nem por isso nem por nada. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 44).

O comandante Filémon (TZELTAL), também retrata este quadro,

Pertencer aos povos indígenas significa a pobreza, a fome e a doença, mas também significa que somos parte desta terra do México. Somos milhões de indígenas em todo o México e agora vai-se ver que todos queremos a mesma coisa, ou seja, o respeito (BRIGE & DI FELICE, 2002, p. 45).

Estas injustiças tendem a ter um fator multiplicador quando, além de ser indígena, se faz parte do gênero feminino, como podemos perceber no discurso da comandante Esther,

[...] nós as mulheres, que somos triplamente exploradas. Uma por sermos mulheres indígenas; porque somos indígenas não sabemos falar e somos desprezadas. Dois, por sermos mulheres dizem que somos bobas, que não sabemos pensar. Três, por ser mulheres pobres. Todos somos pobres porque não temos boa alimentação, moradia digna, educação, não temos boa saúde. Muitas mulheres têm seus filhos mortos em seus braços por doenças curáveis. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 70).

Mas esta situação está mudando deste 1994, graças ao fato de o movimento zapatista ter resgatado e mostrado a todo o México, e mesmo ao mundo, algo nunca perdido, a dignidade indígena, das pessoas da "cor da terra". Como bem enfatizou José Saramago,

Chiapas foi, nestes últimos anos, o lugar onde os mais desprezados, os mais humilhados e os mais ofendidos do México foram capazes de recuperar intactos uma dignidade e uma honra nunca definitivamente perdidas. [...] Levantaram-se com algumas armas na mão, mas levantaram-se sobretudo com a força moral que unicamente a mesma honra e a mesma dignidade são capazes de fazer nascer e alimentar no espírito, ainda quando o corpo esteja padecendo de fome e das misérias de sempre. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 35).

E como afirma o comandante Moisés (também TZELTAL),

Antes de 1994 ser indígena era só desprezo, maus tratos e humilhação; mas agora com nossa luta ser indígena é ver com a cabeça para cima e com orgulho. [...]. Nós os indígenas temos nosso modo de entender o mundo que nos rodeia e por isso resistimos durante quase 509 anos. Por isso hoje ainda temos até nossos instrumentos musicais, nossa língua e nossos costumes, porque não puderam acabar com a gente apesar de todos os esforços. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 46).

Porém em nenhum momento os zapatistas, pregam uma separação étnica, muito pelo contrário, querem se integrar ao México, querem permanecer indígenas e mexicanos, querem "um mundo onde caibam todos os mundos". Deste modo define o subcomandante Marcos o que é ser indígena:

Ser indígena hoje no México significa lutar pelo respeito e a dignidade de todos os que são excluídos e desprezados. Significa lutar pelos indígenas, mas também pelas mulheres, pelos jovens, pelas crianças, pelos homossexuais e lésbicas, pelos deficientes, pelos anciãos, por todos os diferentes (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 51).

E mostra também que não estão separados em sua luta (que é a luta de todos) do restante do país,

Como nossos antepassados resistiremos a guerras de conquista e de extermínio, nós resistimos às guerras de esquecimento. Nossa resistência não terminou, mas já não esta só. Acompanham-nos os corações de milhões no México e nos cinco continentes. Com eles vai junto nosso passo. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 59).

Esta questão, de uma possível restrição da luta zapatista a uma simples luta étnica, como quis por diversas vezes passar o governo mexicano, fica bastante nítida ao analisarmos o seguinte trecho de um comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI-CG) do EZLN:

Por isso queremos a autonomia indígena. Não para nos separar do país e acrescentar outra nação pobre às que existem em abundância. Não para voltar a um passado do qual sequer pudemos sair. Nós a queremos para cuidar com sabedoria da terra. Para fazê-la rica e próspera para nós e para todo o país. Para evitar que a saqueiem e a destruam e a matem. Para poder trabalhá-la no individual e no coletivo, mas sempre cuidando que o benefício de um não seja o prejuízo de outros. [...] Para que o ser governo seja uma responsabilidade e um trabalho frente ao coletivo e não uma forma de se enriquecer à custa dos governados. Para que as mulheres indígenas não mudem sua condição de marginalizadas pelo fato de ser indígenas e ser mulheres, e sim a mudem pela condição de ser mulheres sem importar se são ou não indígenas. Para que deixe de ser crime ser indígena, viver como indígena, pensar como indígena, ter a cor do indígena. Para que a medida do êxito político ou econômico deixe de ser esmagar aquele que é diferente e obrigá-lo a deixar de ser o que é. Não para que todos sejam como nós. Mas para sermos nós, respeitando e sendo respeitados pelo outro que é diferente de nós. (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 76).

6. Inovações e objetivos

Os zapatistas inseridos em um novo contexto internacional, desde os primórdios do conflito se diferenciam[8]das clássicas guerrilhas latino-americanas de orientação marxista dos anos 60 e 70, tanto pelos objetivos quanto pelas estratégias. Isto se deve graças à mescla, ao sincretismo ocorrido entre duas visões diferentes de mundo (o marxismo-leninista e a maia), assim, o zapatismo é fruto deste amálgama, como afirma o subcomandante Marcos,

Nós chegamos à selva como uma clássica elite revolucionária em busca desse sujeito, o proletariado, no caso da revolução marxista-leninista. Mas essa proposta inicial entrou em choque com as propostas das comunidades indígenas, que têm outro substrato, uma complexa pré-história de emergências e insubmissões. Nós modificamos nossa proposta interativamente. O EZLN não nasce de propostas urbanas, mas tampouco de propostas vindas exclusivamente das comunidades indígenas. Nasce dessa mescla, desse coquetel molotov, desse choque que produz um novo discurso. O que dissemos é que a transformação histórica não deve ser feita à custa da exclusão de setores da sociedade. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 42).

Os zapatistas conseguiram assim, integrar com maestria as reivindicações étnicas com as da sociedade mexicana em único projeto. Contudo, eles não pretendem se transformar em um novo dogmatismo ou em um paradigma a ser seguido, preferindo se classificar como um sintoma de algo maior[9]que está acontecendo,

O zapatismo não é uma nova doutrina ou ideologia, nem uma bandeira que substitua o comunismo, o capitalismo ou a social-democracia. Nem chega a ter corpo teórico acabado. Somos escorregadios para definições. Escapamos dos esquemas. O zapatismo é um sintoma do que está ocorrendo no mundo, algo maior e mais geral, que em cada continente aparece de uma forma. Em cada lugar essa rebeldia apresenta formas e reivindicações próprias. Por isso dizemos que as rebeliões pelo mundo afora têm muito do zapatismo. (ORTIZ, 1996, p.41).

Ao respeitar a própria prática política indígena de uma democracia direta, enfocando o lema "mandar obedecendo", eles não estão apenas retomando mais de 500 anos de tradição, mas resistindo à certos preceitos capitalistas, pois como afirma o próprio subcomandante Marcos, apontando paradoxalmente para uma nova forma de fazer política:

O trabalho coletivo, o pensamento democrático, a aceitação das decisões da maioria, são algo mais que uma tradição nas áreas indígenas, tem sido a única possibilidade de sobrevivência, de resistência, de dignidade e de rebeldia. (MARCOS, 1992, não paginado).

Uma das características dos zapatistas é o fato de não visarem à tomada do poder[10]mas sim construí-lo, em conjunto com toda a sociedade (através de ONG"S, movimentos populares e mesmo cada indivíduo, graças ao avanço tecnológico dos meios de comunicação). Na verdade o que os neozapatistas defendem é uma clara recusa a forma de política enfocada no poder estadocêntrico.

Deste modo, eles modificam o paradigma que entendia a conquista estatal como condição sine qua non para uma mudança radical da sociedade, que prevaleceu no pensamento da esquerda por mais de um século, de novo nas palavras do sub,

O que seria um êxito para uma organização político –militar das décadas de 1960-70, que surgiu com os movimentos de libertação nacional, para nós seria um fracasso. Vimos que essas vitórias eram derrotas ocultas por trás de sua própria máscara (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 13).

Assim, eles buscam uma nova sociedade, multicultural (porém, não caindo em um simples naufrágio pós-moderno, sem perspectivas de mudanças para além da sociedade capitalista), onde imperem novas relações sociais, baseadas e alicerçadas pela "Democracia, Li berdade e Justiça", não apenas formal ou jurídica, como nas sociedades burguesas, mas a real Democracia, Liberdade e Justiça, exercida na prática, no dia-a-dia. Logo, a transformação do mundo é uma tarefa diária (e não uma meta final), não se devendo esperar as condições objetivas para se realizar a revolução e a partir daí, gerar uma subjetividade correspondente, uma forma diferente de nos relacionarmos e nos organizarmos, essa é uma tarefa diária, para construirmos essa nova sociedade. Como afirmou Ana Esther Ceceña no II Fórum Social Mundial, "Os princípios zapatistas consideram que a revolução é o caminho – e não o ponto de chegada – para se construir um mundo novo, e temos que começar a partir de hoje." (CECEÑA, 2002). Porém neste novo caminho a ser trilhado para a mudança social, para a revolução, não existem certezas, a não ser que é o próprio caminhar que se constitui em revolução. Para os zapatistas,

[...] a criação de uma sociedade baseada na dignidade pode ser conseguida somente por meio do desenvolvimento de práticas sociais baseadas no reconhecimento mútuo dessa dignidade [...]. Aqui não pode ser questão de "primeiro a revolução, depois a dignidade: a própria dignidade é o movimento da revolução (HOLLOWAY, 2002, p. 7).

Outro grande diferencial é que eles utilizam os avanços tecnológicos dos meios de comunicação (principalmente a internet), para realizarem um conflito comunicativo e midiático "[...] que supera as categorias políticas tradicionais, abrangendo o nível cultural e a concepção da sociedade de forma geral". (DI FELICE; MUÑOZ , 1998, p. 20), através de redes de informática, intervenções político midiáticas[11]publicação dos comunicados em livros, jornais, revistas etc. Intervenções que não estão restritas apenas a Chiapas ou ao México, mas abrangem o mundo inteiro, conseguindo ultrapassar os limites geográficos de sua ação política, atingindo o local, o nacional e o global.

Assim, apesar do conflito militar tradicional estar circunspecto à Chiapas, os zapatistas conseguiram ultrapassar fronteiras e estender seu alcance político por todo o território mexicano e ao redor do mundo, graças aos avanços tecnológicos dos meios de comunicação, tecendo um "novo sistema de luta" (CLEAVER , 1998). Conseguindo assim, na ótica de Löwy, atuar de forma eficiente contra o capitalismo,

Para lutar de maneira eficaz contra o sistema é preciso agir simultaneamente em três níveis: o local, o nacional e o mundial. O movimento zapatista é um bom exemplo desta dialética: profundamente enraizado nas comunidades indígenas de Chiapas e sua exigência de autonomia, ele luta ao mesmo tempo contra a dominação imperialista sobre a nação mexicana e contra a hegemonia mundial do neoliberalismo (LÖWY, 2001, não paginado).

criando também, desta maneira, laços com a sociedade civil mundial[12]que passa a se sentir e fazer parte do próprio movimento.

Desta forma, com o avanço tecnológico dos meios de comunicação, a relação do movimento social com a sociedade civil se modifica, esta ao invés de se constituir simplesmente como interlocutora estratégica, passa a fazer parte integrante do movimento, graças ao fato dele dialogar com a base a sua estratégia, ao contrário das antigas vanguardas revolucionárias.

Com esta "guerrilha informacional", eles conseguem transpor o abismo que separa o mundo branco do indígena, realizando um amálgama entre a selva e a cidade, mundos que se identificam na exploração e miséria imposta pelo mundo do mercado e propõem "um mundo onde caibam todos os mundos", contestando a lógica inerente à nova ordem global. Resgatando dessa forma, a história, que para muitos havia chegado a seu termo,

Quando propomos resgatar a memória, lutamos contra a unidimensionalidade do presente e do predeterminado, que interessa aos que nos dizem: esqueçam que somos os ladrões e criminosos de ontem, esqueçam que a promessa de ontem é a que estamos repetindo hoje e que não a cumprimos. Sobre a utopia eu pergunto: que transformação social na história do mundo não foi utopia na véspera? Nenhuma. (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 68).

E para aqueles que acreditam que não há razão para lutar, que o conformismo, a reforma, o capitalismo de mercado triunfaram definitivamente, a revolta zapatista pôs em movimento uma nova onda, repleta de esperança e energia entre aqueles que, em todo o mundo, estão engajados na luta pela liberdade e dignidade. Marcos em seu comunicado de 1992 explicita:

Porém nem todos prestam atenção às vozes que propagandeiam a falta de esperança e o conformismo. Nem todos se deixam levar pelo rio do desânimo. A maioria, os milhões de pessoas que continuam sem escutar a voz do poderoso e do frouxo, não conseguem ouvi-la porque estão ensurdecidos pelo choro e pelo sangue que a morte e a miséria gritam aos seus ouvidos. Porém, quando tem um momento de descanso, ouvem outra voz, não a que vem de cima, e sim a que é trazida pelo vento debaixo, que nasce do coração indígena das montanhas, a que lhes fala de justiça e liberdade. E os mais velhos entre os velhos das comunidades contam que teve um tal de Zapata que se levantou em armas pelos seus e que, mais que gritar, a sua voz cantava: Terra e Liberdade! E estes anciãos dizem que ele não morreu e que Zapata voltará. (MARCOS, 1992, não paginado).

Para Löwy, o zapatismo aparece como portador de um reencantamento do mundo, por considerá-lo um movimento repleto de utopias, magias, poesia, romantismo, ironia, esperanças loucas etc., sendo estes elementos de extrema importância para podermos construir uma nova sociedade, pois como ele pergunta, "[...] como quebrar, sem o martelo encantado do romantismo revolucionário, as barras da jaula de aço onde nos fechou a modernidade capitalista?" (LÖWY, 2002).

REFERÊNCIA

ANDERSON, P. O Fim da História: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

ARELLANO, A. B.; OLIVEIRA, A. U. (Org.). Chiapas: construindo a esperança. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

CASTANEDA, J.G. Utopia Desarmada. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CECEÑA, A. E. Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária. Forum Social Mundial, 2002. Disponível em: . Acesso em: 11 de maio de 2002.

CLEAVER, H. Os Zapatistas e a teia eletrônica da luta. Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia, Nepcom, Rio de Janeiro, n. 4, p.139-163, jan/abr. 1998.

DI FELICE, M.; BRIGE, M. F. (Org.). Votán-Zapata: A marcha indígena e a sublevação temporária. São Paulo: Xamã, 2002.

DI FELICE, M.; BRIGE, M. F.; MUÑOZ, C. (Org.). A revolução invencível: Subcomandante Marcos e Exército Zapatista de Libertação Nacional – Cartas e Comunicados. São Paulo: Boitempo, 1998.

FUKUYAMA, F. O Fim da História e o Último Homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

HOLLOWAY, J. O Zapatismo es as Ciências Sociais na América Latina, Revista Novos Rumos, ano 17, n. 36, 2002.

LÖWY, M. A luta contra o capital global não tem fronteiras. Galizalivre.org, 2001. Disponível em: Acesso em: 11 de maio de 2002.

LÖWY, M. Michel Löwy procura explicar o zapatismo. Disponível em: . . Acesso em 16 de outubro de 2002 retirado do jornal "Em tempo" -emtempo[arroba]ax.apc.org.

MARCOS,.Subcomandante. Chiapas: o sudeste entre dois ventos, uma tempestade e uma profecia, 1992. Disponível em: . Acesso em:19 de maio de 2002.

ORTIZ, P. Ya Basta!. Atenção, ano 2, n. 8, Página Aberta, São Paulo, 1996.

REVISTA MTV, São Paulo, n. 24, p. 131, abr. 2003.

ZERMEÑO, S. O levante zapatista. Praga – Revista de estudos marxistas, Boitempo, São Paulo, n. 2, p.87-108, jun. 1997.

ARTIGO RECEBIDO EM 2003.

Uma versão resumida deste trabalho foi apresentada no X Simpósio Internacional de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo (USP) em 2002.

 

Autor:

Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho

a.hilsenbeck[arroba]gmail.com

Bacharelando no 4º ano de Ciências Sociais, bolsista do PET/SESu/MEC, orientado pela Drª Mirian Cláudia Lourenção Simonetti, Departamento de Ciências Políticas e Econômicas. Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, CEP 17525-900, Marília, São Paulo – Brasil.


[1] A idéia de "fim das utopias", "fim das ideologias" e "fim da história" e suas variantes, começam já em 1955 no pensamento da esquerda, mas a encontramos já em Hegel no séc. XVIII, passando por diversos autores, com novas reformulações, no decorrer dos tempos. Esta teoria ganhou maior expressividade no final do séc. XX, com o trabalho de um funcionário dos Estados Unidos, Francis Fukuyama e sua obra "O Fim da História", de uma forma geral, ela prega a falência de outras formas de organização societal (como o comunismo, socialismo, anarquismo etc.) e a vitória da democracia ocidental burguesa, que seria o modelo ideal de organização social. Para saber mais sobre o assunto, procure "O fim da história: de Hegel a Fukuyama" de Perry Anderson de cunho crítico a estas teo rias, "Utopia desarmada" de Jorge Castañeda, "O fim da história", do próprio Fukuyama, bastante otimistas quanto a este assunto.

[2] No caso mexicano, realmente, os conflitos atuais são baseados em "vestígios do passado", de mais de 500 anos, de um passado que atormenta e envolve o povo indígena e a população pobre nos dias atuais, que são obrigados a viver em um passado de exploração e miséria, sem acesso as descobertas da vida moderna.

[3] Esta resignação pode ser percebida em uma grande parcela da esquerda mundial e de movimentos que contestam esta forma de globalização, que passaram a ter como norte a "humanização do capitalismo", sem contudo, colocarem em questão a mudança desta forma de sistema.

[4] "O México na aventura de se tornar país do centro do capit alismo passou a implantar a política neoliberal. Reduziu o papel do Estado através da eliminação de programas sociais pondo fim assim a sua política assistencialista. A economia passou a conhecer novas regras para atrair investimentos estrangeiros: política recessiva baseada em taxas de juros altos; abertura para as importações; privatização de estatais; indústrias implantadas nas proximidades da fronteira com os Estados Unidos passaram a maquiar seus produtos; etc." (ARELLANO; OLIVEIRA, 2002, p. 51).

[5] "Chicano" é como são denominados os latino -americanos nos EUA, que apesar de toda a discriminação e ilegalidade com que são tratados, são de fundamental importância para a economia estadunidense (com seus trabalhos informais e baratos) e também mexicana (com os dólares que enviam as suas famílias), criando assim um jogo vicioso de interesse entre os chefes de estado, em detrimento da classe trabalhadora e carente. "Na fronteira do México com os Estados Unidos, desde a Califórnia, no oceano pacífico, até o sul do Texas, no Golfo do México, calcula-se que 8.000 pessoas tentam cruzá-la ilegalmente todos os dias. Dos aproximadamente 8,5 milhões de estrangeiros que vivem hoje clandestinamente nos Estados Unidos, a grande maioria é de mexicano, que entram no país pelo deserto das mais variadas maneiras" (Revista MTV: 2003, p. 131).

[6] "O ejido é uma forma pré-hispánica de propriedade coletiva da terra ressuscitada pela Revolução Mexicana no artigo 27 da constituição de 1917. O objetivo dos revolucionários era manter a exploração coletiva da terra e sua peculiaridade estava em que os proprietários não podiam alienar nem vender suas propriedades, mas apenas transferi-la como herança" (ZERMEÑO, 1997, p. 89).

[7] Acreditamos que se faz necessário neste ponto, se abrir um parêntese para não cairmos em uma análise equivocada da relação do movimento com a cultura indígena, para não pensarmos que esta se dá de uma forma idílica, de uma volta ao passado, que, aliás, não parece ser a interpretação dada por Löwy, mas sim que esta é uma nova forma de se enxergar e relacionar com o mundo. E como afirma o subcomandante Marcos em um de seus discursos, "O poderoso não pensa, mas tem dinheiro para comprar quem pense por ele. E então esses pensamentos comprados dizem: 'Os indígenas querem voltar ao passado, querem trocar o trator pelo arado, o conhecimento científico pela magia, o trabalho livre remunerado pela escravidão, promover a compra e venda de mulheres, as eleições livres pelo caciquismo'". Não, não queremos voltar ao passado. Que não se cansem muito pensando esses pensamentos comprados. No passado vivemos. Temos arados, não tratores. Não temos escolas nem universidades para fechá-las estrangulando seu orçamento ou com a polícia federal preventiva. Nossas mulheres estão lutando por seus direitos de gênero e não é de agora. A escravidão temos e o poderoso é o amo. Não queremos voltar ao passado. Mas tampouco queremos continuar vivendo e morrendo nele. Queremos a ciência e a técnica, mas não para matar a terra e o bom pensamento, mas para fazê-los melhores e mais ricos. Queremos nos libertar da escravidão á qual o poderoso nos submete, mas não para nos tornarmos iguais a ele, ou seja, tontos e perversos. Queremos viver no presente e construir com todos um futuro." (BRIGE; DI FELICE, 2002, p. 18). Assim, esperamos se desfazer também uma outra ilusão, a de que os índios são como peças de museus, ou seja, que eles estejam estagnados no tempo e assim devam permanecer.

[8] Não nos deteremos muito neste amplo debate que se refere especificamente as inovações que o neozapatismo trazem á esquerda, pois é um debate bastante fecundo, mas não possível de se realizar neste pequeno resumo. Abordaremos, de uma forma um tanto quanto genérica, alguns pontos destas inovações.

[9] O EZLN foi o primeiro movimento a atuar de forma global contra a mercantilização mundial, ao realizar o I Encontro Intergaláctico pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, em 1996.

[10] Ao tentarmos entender o que é o neozapatismo, "[...]temos verdadeiramente que enfrentar o medo de cai r no ridículo, ridículo não apenas por parte dos cientistas sociais ortodoxos, mas também por parte dos marxistas ortodoxos" (HOLLOWAY: 2002, p.7), isto porque, "o núcleo do novo zapatismo é o projeto de mudar o mundo sem tomar o poder (...) que ridículo! que absurdo!" (HOLLOWAY, 2002, p.7) .

[11] Os zapatistas realizam diversas intervenções político midiáticas, com o intuito de conquistar o "coração e a mente" das pessoas de todo mundo, dando assim, visibilidade á sua luta e seus ideais, como a Marcha indígena á capital do México visando o reconhecimento das leis e direitos indígenas; as Convenções Nacionais Democráticas, as 'Aguacalientes', o julgamento em praça pública do ex -governador de Chiapas etc.

[12] Como a criação da Frente Zapatista de Libertação Nacional, uma organização política não militar de apoio ao zapatismo, presente nos cinco continentes do globo. Convenção Nacional Democrática em agosto de 1994 etc.



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