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Reflexões acerca da relação entre turismo e cultura (página 2)

Mariana Elias Gomes

No que se refere aos impactos gerados na cultura local, é preciso observar quais são os limites para a utilização turística dos seus bens culturais, ao se constatar que às vezes são manipulados sentimentos e tradições, a fim destes serem mais rentáveis, ou na tentativa de encontrar (ou forjar) a "alma" de um lugar, para servirem como um atrativo turístico com diferencial no mercado que se apresenta tão competitivo.

A partir do momento em que se busca a utilização, através do turismo, de determinada manifestação cultural, não se deve permitir a construção de uma vivência oca, ou seja, sem sentido, tanto para os visitantes e principalmente para os moradores. Uma manifestação cultural, como seu próprio nome indica, é uma forma de determinado grupo de pessoas se manifestarem, viverem naquele momento uma experiência cultural que significa muito mais do que um simples show turístico.

Turismo cultural: cultura vendida enquanto mercadoria?

Dentre todas as motivações que geram os deslocamentos turísticos, uma classificação específica tem obtido altos índices de desenvolvimento, graças ao aumento de demandas interessadas por conhecer "o outro" [1]. O chamado turismo cultural se caracteriza pelo interesse na obtenção de novas informações, conhecimentos, o encontro com outras pessoas, comunidades e lugares, a fim de se conhecerem os costumes, tradições, enfim, a identidade cultural do local visitado. Graças a seu caráter histórico, este segmento proporciona um elo entre o passado e o presente, o contato e a convivência com a cultura local, através de cada particularidade do lugar.

Destarte, a prática citada compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura local. Pode ser compreendida como uma forma de turismo alternativo que pressupõe o consumo da cultura, que se encarna na realidade empírica da existência cotidiana através dos seus bens.

O ICOMOS (1976) define o turismo cultural como sendo um movimento de pessoas motivadas essencialmente por algum interesse cultural, como representações artísticas, festivais e outros eventos culturais, visitas a lugares e monumentos históricos, viagem de estudos, folclore, arte ou peregrinação. Ao se optar pelo desenvolvimento deste tipo de turismo nota-se o intuito de, através da cultura local e do seu patrimônio, promover também o desenvolvimento social e econômico do município.

Para Dias (2005: 71), esta é uma das modalidades de turismo alternativo que apresenta uma das maiores possibilidades de crescimento, "dada à diversidade de conteúdos que podem ser explorados, tornando-se excelente complemento a qualquer outra forma de turismo".

Entretanto, é preciso destacar que o turismo cultural deva ser desenvolvido com parcimônia, uma vez que a atividade pode ser caracterizada na definição apresentada por Guatarri (1996: 19), ou seja, as chamadas "cultura-mercadoria", através do ato de se produzir e difundir mercadorias culturais, em princípio sem levar em consideração os sistemas de valor que abarcam as culturas.

Este tipo de cultura não é visto de forma original, mas sim de maneira produzida, reproduzida, que se modifica constantemente, de acordo com cada interesse (neste caso, o interesse turístico). A comercialização de eventos da cultura tradicional pode levar à criação de uma pseudo-cultura, um folclore artificial para o turista, sem valor cultural algum para a população local nem para os visitantes (Lickorish, 2000: 108).

Desta maneira, uma manifestação cultural, seja uma festa religiosa, rituais, danças, ou até mesmo conhecimentos técnicos ou culinários, deve buscar manter a sua dinâmica independente da atividade turística, para que não sejam simplesmente vendidas como entradas para concertos musicais, ou com uma refeição num restaurante típico. Evita-se assim que estas percam a sua característica pessoal enquanto manifestação repleta de sentido dentro de um contexto social, para se tornarem apenas objetos de consumo.

Deve-se criar condições para que uma manifestação possa ser apreciada por um turista, mas não se pode conceber uma manifestação local reproduzida exclusivamente para o turista. Por isso, antes de se desenvolverem projetos turísticos, principalmente os voltados para o turismo cultural, são necessárias reflexões sobre o significado e o valor que se dão, em nossa sociedade, a estas relações estabelecidas entre os seres humanos e o meio ambiente onde estes estão inseridos.

Reflexões Finais

A prática do turismo cultural se desenvolve assim a partir de uma tênue divisão entre os benefícios que podem ser gerados e entre os aspectos negativos que perpassam o desenvolvimento desta atividade. Neste contexto, a conscientização da população local sobre a importância de suas expectativas, desejos, necessidades, é primordial para que estas pessoas não sejam apenas fantoches de um sistema capitalista que busca o ócio sem qualquer tipo de preocupação social.

Tal como ressalta Santana Talavera (1998, in BANDUCCI, 2003), o uso turístico do patrimônio, ou dos bens culturais, ainda que mantenha os seus componentes simbólicos, poderá contradizer o seu potencial identitário na medida em que, recriando e espetacularizando permanentemente o patrimônio, transformando-o em mercadoria, este passa a servir aos interesses do mercado e não aos da comunidade que o detém. 

Barretto (2003) contrapõe esta afirmação ao questionar se a transformação de um patrimônio em bem de consumo não é preferível ao processo de deterioração ou destruição a que normalmente o bem cultural está submetido em decorrência do descaso, da especulação imobiliária e das políticas de modernização, empreendimentos da administração pública com objetivos distantes da preservação dos patrimônios. No que se refere aos patrimônios imateriais, falta de incentivo à manutenção de folclores típicos, descaso à preservação das tradições orais e artísticas, carência de meios financeiros para conservá-los, etc.

Martins (1995 in BANDUCCI, 2001: 37) analisa ainda que o turismo, com sua gama de personagens e interesses, apesar de poder desestabilizar processos de socialização característicos do lugar ao mesmo tempo "implementa algumas situações sociais coletivas que permitem aos nativos assegurarem alguns elementos identitários de sua cultura", ou seja, a cultura nativa resguarda-se na medida em que reinventa uma ordem que pode estar sob constante ameaça.

Buscando-se alcançar um ponto de consenso entre os dois posicionamentos, a partir do momento em que a atividade turística considerar os anseios dos moradores locais – correndo o risco destes optarem por não desenvolver o turismo no local – a cultura poderá ser mais respeitada, valorizada, e, assim, com possibilidades de ser preservada e assumir sua função de construir identidade, pertencimento e sentido aos indivíduos que a compõem. Com esta base identitária bem fundamentada, os impactos negativos da atividade turística serão minimizados, e a cultura local valorizada.

Outra importante ferramenta a ser utilizada a favor da manutenção de tradições e patrimônios culturais é a Educação Patrimonial, através da qual os patrimônios ou bens culturais deixam de ser objetos de mera contemplação e passam a ser um meio de conhecimento e valorização da sua própria cultura e identidade.

Educar os moradores sobre tais valores não é tarefa fácil, mas torna-se de extrema importância – seja em aulas nas próprias escolas, mini-cursos, oficinas ou através de brincadeiras – para que a cultura se torne um elemento ainda mais intrínseco na vida da comunidade, um bem que venha a ser ainda mais preservado, com manutenção e divulgação que respeite a sua própria dinâmica. Como afirma Yázigi (1999: 178), "a população esclarecida será sempre a melhor guardiã de seus bens".

Finalmente, deve-se apreender o turismo como um grande intercâmbio de pessoas, destacando-se a necessidade de serem planejados os níveis de satisfação humana, e não apenas as necessidades econômicas, já que uma cultura é o bem que dá sentido a determinado grupo de pessoas, e não simplesmente, como foi destacado acima, uma simples mercadoria comercial. À população local pertence a herança cultural que, portanto, merece proteção.

Buscar equilíbrio entre a mercantilização e a conservação. Não apenas inserindo o patrimônio no sistema comercial, com um produto a mais, mas tido de tal forma que não perca seu significado para os nativos, sem se descontextualizar ou estereotipar, e que sirva realmente de encontro entre culturas, fazendo partícipes a ambas as partes, turistas e anfitriãs, de uma visão resgatada das culturas (VILLA, 2006).

Assim, o turismo pode auxiliar o desenvolvimento de determinado local, e apresentar todos os benefícios que foram acima citados. Para que isso ocorra de uma maneira mais sustentável e com qualidade de vida para a população local, a dinâmica social e as relações estabelecidas com determinada prática cultural não devem ter sua dinâmica atrelada à atividade, para que assim não percam sua essência e possam ser preservadas pelos próprios moradores.

Referências

BANDUCCI, Álvaro Jr. Turismo e identidade local: uma visão antropológica. Campinas: Papirus, 2001.

______________. Turismo Cultural e patrimônio: a memória pantaneira no curso do Rio Paraguai. Revista Horizontes Antropológicos, ano 9, n. 20. Porto Alegre: 2003.

BARRETTO, Margarita. Turismo e legado cultural: as possibilidades do planejamento. 4ª Edição. Campinas: Papirus, 2003.

DIAS, Reinaldo. Introdução ao turismo. São Paulo: Atlas, 2005.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.

GUATARRI, Felix. In: Cartografias do Desejo. Felix Guatarri e Suely Rolnik. Petrópolis: Vozes, 1996.

FORTE, Ana Maria Siems. Turismo Cultural no Rio de Janeiro: um ponto de vista a partir do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 2006.

ICOMOS. Carta de Turismo Cultural - 1976. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=248>Acesso em 27/11/06.

LICKORISH, Leonard John. Introdução ao turismo. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

SAHLINS, Marshall. O "pessimismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um "objeto" em via de extinção. Rio de Janeiro:Mana v.3 n.1, 1997.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

SWARBROOKE, John. Turismo Sustentável: turismo cultural, ecoturismo e ética. Volume 5. São Paulo: Aleph, 2000. 

VILLA, Aurora Daniel. El turismo cultural o la mercantilización de la cultura. Ciudad Virtual de Antropología y Arqueología. Acesso em 20/10/06.

WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Tradução de Luís Filipe Sarmento. Editorial Notícias.

YÁZIGI, Eduardo. Turismo: uma esperança condicional. 2ª Ed. São Paulo: Global, 1999.

NOTA

[1] Este aumento de demanda pode ser explicado através do amadurecimento da população mundial nos países que possuem renda para a realização do deslocamento, tanto nacional quanto internacional; o aumento do índice educativo, que desperta o interesse em conhecer outras manifestações culturais e outros lugares; bem como ao fato de quanto mais o ser humano é exposto ao novo (novas culturas, novas paisagens, novos idiomas), mais este quer vivenciar novas experiências (PIRES, 2002; PADILLA, 1997; NASBITT, 1994 in FORTE, 2006, p. 18).

 

Autor:

Mariana Elias Gomes

marianaeliasgomes[arroba]yahoo.com.br

Bacharel em Turismo pelo Unicentro Newton Paiva (Belo Horizonte, MG); Mestranda em Cultura e Turismo pela UESC – Ilhéus, BA. Bolsista da Fapesb.

Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº 73, Junho de 2007



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