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Aristóteles para biólogos (página 2)

Profa Luzia Marta Bellini

 

Aristóteles: um classificador incansável.

Aristóteles foi discípulo de Platão. No mundo grego entre 384 a 322 a.C.

Aristóteles foi o mais famoso discípulo de Platão e dele se diferenciou, como dissemos, por estabelecer uma teoria do conhecimento que não separa o grau primeiro – a sensação – do conhecimento intelectual.

Enquanto Platão "inclinou-se preferencialmente por fazer desenhos de construções sociais imaginárias, utópicas, por projeções sobre qual o melhor futuro da humanidade" (Castro, 2004) Aristóteles estudou política, ética, linguagem e retórica, física, biologia fundamentando-se em uma minuciosa observação da organização das cidades, da sociedade, dos homens, sua linguagem, da natureza, classificando as coisas do mundo segundo suas semelhanças e diferenças, formando conjuntos de acordo com perguntas bem simples: "Como é esta coisa? (o gênero). O que é que a difere de outras que lhe são semelhantes? (a diferença). Construiu hierarquia das coisas, de uma forma tão ordenada que até então nunca ninguém conseguira fazer". (Fontes, 2004). Escreveu Chauí (1999, p.113): A distinção dos campos de conhecimento verdadeiro, sistematizados por Aristóteles em três ramos: teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética, política e economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho humano, que pode interferir no curso da Natureza, criar instrumentos ou artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia, retórica etc) Aristóteles elaborou o primeiro sistema lógico que permitiu estabelecer um conjunto de princípios e regras formais por meio para diferenciar os argumentos corretos dos falsos. Escreveu a Política que apresenta uma instigante discussão "sobre os diferentes modelos políticos que existiam no seu tempo. Enumerou um total de 158 constituições de cidades ou países diferentes. Partindo da sua diversidade procurou depois as suas semelhanças e diferenças, pondo em evidência o que constituía a natureza de cada regime. Evitou, quanto pode, mostrar as suas preferências por um ou outro regime político". (Fontes, 2004) Na física, não propriamente a física como a concebemos hoje, buscava "a chave da natureza das coisas, não apenas da forma como se comportavam no presente, mas também no que potencialmente viriam a transformar-se" (Piaget; Garcia, 1987). Podemos falar em doutrina aristotélica do movimento. No caso da física de Aristóteles ela se reduz a um determinado número de observações sobre o movimento das coisas do mundo. Há os movimentos naturais e os forçados ou violentos. Os movimentos forçados são os contrários à sua natureza, pois são gerados, por exemplo, quando atiramos uma pedra. Uma segunda característica da teoria do movimento diz respeito à natureza dos corpos materiais. No mundo sublunar havia os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Neste mundo "cada corpo ocupa o seu lugar e quando está fora de seu lugar que lhe pertence, é dotado de um movimento natural que o incita a ocupar o seu próprio lugar. Um tal movimento é retilíneo e vai a direção do centro para baixo". (Piaget; Garcia, 1987). Exemplificamos: a terra e água para baixo e o ar e o fogo para cima.

É, por isso, que a água e aterra são "pesadas" e o ar e o fogo "leves". A Terra nesse apresenta nenhum papel nesse movimento. Para classificar os movimentos sua teoria necessita da idéia de motor. O movimento natural apresenta uma causa intrínseca, o motor interno, já os movimentos violentos necessitam de uma causa externa, motor externo, ou seja, a força.

Já os movimentos naturais dividem-se em retilíneos e circulares; o circular é perfeito e a reta como não tem limite nem fim, não pode ser perfeita. "Os corpos celestes, com exceção da terra, eram constituídos por um quinto elemento puro e incorruptível. O universo é concebido de forma hierarquizada, tendo no centro a terra, girando à sua volta todos os corpos celestes". (Fontes, 2004) Poderíamos continuar a descrever a classificação dos movimentos e dela tirar muitas questões, mas pelo problema exposto no início, vamos nos deter na base da fundamentação de sua teoria: sua metodologia reduziu-se a poucas observações e mais, as suas posições epistêmicas – dada a ausência experimental – ficaram asseguradas em um sistema dedutivo que Piaget e Garcia (1987) designaram de pseudonecessidades. Em outras palavras, por falta de experimentação, embora os conceitos estejam organizados em uma lógica impecável, Aristóteles descreveu situações que não passa da observação geral para uma premissa igualmente geral. Esta posição de pensamento de Aristóteles está presente nas hipóteses das crianças pequenas quando dizem que a água dos rios descem para o lago ou quando afirmam que a lua não ilumina o dia porque não é ela quem manda, ou quando elas afirmam que jogando uma pedra em um buraco feito no meio da Terra ela cai do outro lado, mas não cai se jogarmos em outro sentido (leste/oeste). Isso significa que a criança não consegue imaginar outros possíveis para além daquele observável.

Aristóteles era um empirista, não podemos criticá-lo por não ter observado a natureza (Piaget; Garcia), os seus erros como físico "estavam ligados aos pressupostos epistemológicos introduzidos nas suas leituras de sua experiência e, por conseqüência, ao uso que ele faz da observação".

Nos últimos 12 anos de sua vida, distanciando ainda mais de Platão, Aristóteles, tomou como tarefa a classificação das formas do mundo material e partiu para a observação sistemática dos seres vivos. Estudou a forma e o comportamento de cerca de 500 classes diferentes de animais, dissecando aproximadamente 50 tipos. Foi o primeiro que dividiu o mundo animal entre vertebrados e invertebrados; sabia que a baleia não era um peixe e que o morcego não era um pássaro, mas que ambos eram mamíferos. (Fontes, 2004).

As clássicas definições que ainda vemos em livros didáticos são provenientes de Aristóteles como, por exemplo, a divisão da colméia em abelhas rainhas, escravas e os zangões. Como os gregos eram hábeis apicultores, Aristóteles teve como fonte de suas observações as abelhas.

Habilmente dissecou abelhas descobrindo que as "abelhas escravas" tinham apenas os ovários vestigiais. A própria classificação da colméia em rainha, escravas e zangões. Estudou os caracóis, descrevendo, inclusive, a rádula (rastelo), minúscula parte do aparelho bucal do caracol de jardim, na função de alimentação.

Aristóteles produziu vasta obra, chegaram até os dias de hoje, dez livros considerados autênticos conhecidos por "Historia animalum" demonstrando um grande esforço em classificar os animais, em descrever suas características tais como estrutura e fisiologia, em descrever hábitos de procriação e mesmo processos embriológicos. Segundo Martins (1990) é impossível que estas obras tenham sido escritas por uma única pessoa, acredita-se que Aristóteles fez este trabalho em conjunto supervisionando e orientando.

Nesse trabalho Aristóteles aplicou o mesmo método da sua Física. Por meio de observações Aristóteles dividiu os animais em os de sangue quente e frio. Os de sangue quente são os mais perfeitos, possuem mais calor. Na escala de perfeição dos animais está a hierarquia baseada nos modos de reprodução: os mais perfeitos são os vivíparos (filhotes nascem iguais aos pais), depois temos os ovovivíparos e os ovíparos. Estes últimos são distinguidos em dois: os ovos perfeitos e os imperfeitos (que são o que apresentam lagartas e precisam passar por metamorfose). Os animais mais inferiores são os que se assemelham a plantas.

Apoiado nessa classificação, ele segue para outras diferenciações entre os animais, incríveis para uma época sem recursos como a lupa, microscópio: - Preocupa-se em descrever a anatomia de um animal, mas também compreender a função das partes do corpo. Apresentou estudos de mamíferos, peixes, insetos muito minuciosos. Foi capaz de descrever pequenos detalhes dos corpos de grilos, borboletas, abelhas entre outros pequenos animais. Estudou o comportamento de uma enguia que se reproduzia na água salgada e vivia em água doce. Como não a via no período de sua reprodução na água dos rios, indagou-se sobre a reprodução da espécie, sugerindo que esta poderia surgir por geração espontânea. Somente no inicio do século XX, descobriu-se que esta enguia migra para a água salgada para a maturação de suas gônadas e reprodução e depois os filhotes retornam aos rios de água doce.

- Preocupou-se estudar como os corpos mantêm o equilíbrio do calor orgânico, pois como exímio observador ele conhece que as variações de temperatura eram indicações de problemas. Com esta noção de equilíbrio Aristóteles identificou a respiração animal como um processo de refrigeração dos animais sanguíneos terrestres.

Identificou os pulmões como os órgãos de refrigeração dos animais terrestres e no peixe, as guelras como os órgãos de respiração e refrigeração.

- O calor interno foi tomado por Aristóteles como um dado empírico e fornecem a vida; sem o calor temos a morte. Todos os animais possuem calor. A fonte natural de calor é sempre matéria fluida e sólida (Martins, 1990, p. 171). O calor vem do sol para as plantas terem seus frutos maduros e o calor do fogo torna a alimentação adequada para os animais.

- O calor está no coração nos animais sanguíneos. A alma (causa imaterial ou formal) está aí alocada. O sangue é o nutriente e o coração é a alma nutritiva e sensitiva.

- Há necessidade de controlar o calor interno, daí o mecanismo de respiração ou de refrigeração. O cérebro possui também papel refrigerador, pois é frio e comanda os pulmões e as guelras.Como os pulmões são esponjosos e cheios de tubos eles têm resfriamento rápido, assim o ar "facilmente os preenche". No caso do peixe o processo de respiração é feito por meio da água.

- Animais sem sangue – insetos e moluscos – são os mais frios, na escala da perfeição. Eles não precisam de órgãos internos, bastam os externos.

- Quanto aos insetos como não possuem pulmões nem um órgão correspondente a aeração é produzida pelo pneuma, o que produz vários fenômenos vitais, inclusive a refrigeração. O pneuma produz as vibrações das membranas existentes em insetos o que leva ao som dos cantos dos insetos.

 

Empirismo e explicação teórica

Nesse caminho, Aristóteles construiu uma classe de objetos que são, sob o ponto de vista lógico (Martins, idem, p.197) uma generalização das observações singulares que, como afirmaram Piaget e Garcia, foram muito rigorosas, porém seus erros, como "biólogo", se é que podemos assim afirmar, deveram-se aos pressupostos teóricos com os quais fez as leituras de suas observações. Ou seja, à riqueza de suas observações, Aristóteles fundiu sua teoria sobre as formas, a hierarquia dessas formas, sua teoria de calor vital e de pneuma. Isso não significa dizer que Aristóteles fugiu aos problemas observados. Ele procurou pela observação e pela experiência conhecer os processos de vida dos animais: função, estrutura, comportamento, respiração; essa busca foi exemplar e ele só poderia fazê- la por meio de que chamamos de empirismo. Todavia, muitas de suas generalizações constaram-se falsas, mas outras foram corretas.

Há muitas questões postas a nós que gostamos de pensar as teorias da ecologia. Um problema é o do campo de conhecimento da biologia: não podemos prescindir da observação, da experimentação, da "coleta" de informações, mas esta dimensão por si só não nos leva à constituição do conhecimento biológico. O papel da experiência na biologia é grande e o papel da dedução não; no entanto, colecionar "dados" (via observação ou experimentais) para, daí, gerar uma teoria, nos tornaria um "peru" indutivista como o da anedota de Bertrand Russel iii .

Quais lições nós podemos tirar do empirismo de Aristóteles em relação à constituição ao pensamento da biologia? Para elaborar explicações biológicas temos que recorrer à empiria, é inegável o papel do empirismo na biologia, mas, repito, em si mesma ela é capaz de fornecer o conhecimento biológico? Ou como Aristóteles, estamos condenados a coletar informações pela observação e experiência e depois anexar uma teoria tecendo, as vezes, generalizações falsas?

 

Referências:

  • CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1999.
  • CHALMERS, Alan. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • FONTES, Carlos. http://afilosofia.no.sapo.pt/Aristoteles.htm. Acesso em: 30/6/04. http://www.infohouse.com.br/usuarios/zhilton/Aristoteles.html. Acesso em: 30/6/04.
  • CASTRO, Roberto. As causas da primeira existência. Jornal da USP. Disponível em: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2002/jusp603/pag1011.htm. Acesso em 30/6/04.
  • MARTINS, Roberto de Andrade. A teoria aristotélica da respiração. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas, série 2, 2(2), p. 165-212, JUL-DEZ., 1990 PIAGET, Jean; GARCIA, Rolando. Psicogênese e História das Ciências. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.

 

Notas

i. Palestra apresentada aos estudantes de biologia, mestrandos e doutorandos do Curso de Ecologia da Universidade Estadual de Maringá em 1 de julho de 2004.

ii. Sei que interessa aos biólogos a noção de essência, pois muitos ecólogos usam o termo essencialismo quando abordam teorias ecológicas. Cito um fragmento do Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagno (, p.340): "Os fundamentos que expusemos foram estabelecidos pela primeira vez por Aristóteles, que é o fundador da teoria da Essência como é o fundador da teoria da substância. É verdade que a Aristóteles encontrava os precedentes dessa teoria em Platão, que por sua vez reportava a Sócrates". "Entende-se, em geral, por este termo toda resposta à pergunta: o quê? Por exemplo, nas seguintes expressões: O que foi Sócrates? Um filósofo. O que é o açúcar? Uma coisa branca e doce. O que é o homem? Um animal racional, as palavras `um filósofó, `uma coisa branca e docé, `um animal racional, exprimem a E. das coisas a que se faz referência nas perguntas respectivas". Chamo a atenção aqui para o uso do termo no debate entre os ecólogos.

iii. Chalmers (1989) descreve a anedota atribuída a Bertrand Russel. Conto de uma forma mais livre: "Era uma vez um peru que acreditava que a ciência era resultado de uma coleção de dados. Ele fora transferido de uma fazenda de perus para outra. Logo no primeiro dia, ele vestiu seu avental branco, tomou uma prancheta, fez tabelas para anotar as variáveis que compunham seu dia na nova moradia. Neste dia ele foi alimentado as 9h e chovia. Anotou na sua tabela. No segundo dia, fazia calor, mas as 9h ele foi alimentado. No terceiro dia, fazia frio, mas as 9h foi alimentado. No quarto dia, estava muito frio, mas as 9h foi alimentado. E, assim, passaram meses, sempre as 9h ele era alimentado, independe das variações de temperatura. Após 360 dias, ele tinha uma imensa tabela com uma coleção de dados que indicavam a que a temperatura variava, mas a hora não.

Quando escrevia sua conclusão: "faça frio, calor ou...as 9h sou alimentado (mini-teoria)", entrou o tratador de animais e degolou o peru. Era véspera de natal.

 

Profa Luzia Marta Bellini
martabellini[arroba]uol.com.br



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