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Cirurgia de catarata: o porquê dos excluídos (página 2)

Edméa Rita Temporini

 

4. Materiais e métodos

Procedeu-se ao levantamento de dados relativos à população que compareceu aos postos de atendimento oftalmológico, instalados para as atividades do Projeto Catarata nos municípios de Campinas, São Paulo, Taquaritinga, Bebedouro e Bragança Paulista, no Estado de São Paulo. Autoridades de saúde desses municípios manifestaram interesse na execução do projeto. Os dados foram coletados em 1997 e 1998, conforme cronograma planejado para a execução dos projetos de reabilitação visual.

Para obtenção da amostra estabeleceram-se os seguintes critérios: indivíduos de ambos os sexos, de idade igual ou superior a 50 anos, portadores de deficiência visual por catarata senil (acuidade visual igual ou inferior a 0,2 no olho melhor), que se dispusessem a ser entrevistados. Esses indivíduos conseguem realizar algumas atividades domésticas, mas apresentam dificuldade acentuada na locomoção sem auxílio, na utilização de transporte em veículo coletivo e no exercício de atividade profissional. Compôs-se, portanto, uma amostra não probabilística, prontamente acessível.

A partir de um estudo preliminar, construiu-se um questionário (anexo 1) que forneceu elementos para a elaboração de questões estruturadas. O instrumento foi submetido a teste prévio durante a realização do Projeto Catarata em outro município do Estado de São Paulo, não pertencente à amostra.

Para caracterizar a amostra foram selecionadas as variáveis sexo, idade e município do atendimento oftalmológico. Foram estudados o conhecimento anterior do fato de ser portador de catarata, a percepção da gravidade dessa afecção, o tipo de serviço médico procurado anteriormente e as razões para a ausência de tratamento cirúrgico. O questionário foi aplicado em entrevista por auxiliares de pesquisa previamente treinados para a formulação das questões e registro de respostas. Os dados foram processados em microcomputador, utilizando-se o sistema Epi Info.

5. Resultados

A amostra foi composta por 776 sujeitos de ambos os sexos (47% homens; 53% mulheres), com idade entre 50 e 96 anos. A média de idade foi de 72 anos (desvio padrão de 8,46) e a moda alcançou 70 anos de idade. Este grupo de 776 sujeitos correspondeu à parcela da população atendida nos projetos comunitários de reabilitação visual (Projeto Catarata) realizados em cinco municípios do Estado de São Paulo e que, após exames oftalmológicos, recebeu indicação cirúrgica para tratamento da catarata senil. A amostra distribui-se da seguinte forma entre os municípios que participaram do estudo: Campinas (35%); São Paulo (21%); Taquaritinga (17%); Bebedouro (15%); e Bragança Paulista (10%). No momento da pesquisa, 74% dos sujeitos dispunham de acompanhante.

A maior parcela dos entrevistados apresentava conhecimento anterior do fato de ser portador de catarata (78%) e atribuía gravidade a essa afecção (65%) (Tabela 1). Dentre os entrevistados que haviam procurado consultas oftalmológicas antes do Projeto Catarata (n = 683), a maior parcela havia utilizado o serviço de saúde do sistema público como atendimento único (27%) ou em associação ao sistema previdenciário (4%) e ao consultório oftalmológico particular (3%); 10% haviam procurado o Hospital das Clínicas/UNICAMP (Tabela 2). Além disso, 11% mencionaram outros tipos de serviço (Tabela 2).

A ausência de tratamento cirúrgico da catarata foi explicada pelos sujeitos por dificuldade financeira (69%) e pelo fato de, na ocasião da entrevista, admitirem conservar ainda visão razoável (69%) (Tabela 3).

Embora todos tenham concordado em se submeter à cirurgia ocular, 22% manifestaram receio. Entre as razões mencionadas para esse temor destacou-se a possibilidade de ficar cego em conseqüência da cirurgia (64%). Esta alegação superou a alegação de medo da morte (22%) (Tabela 4).

6. Discussão

A avaliação de obstáculos à cirurgia de pacientes portadores de catarata tem mostrado a importância do desenvolvimento de projetos comunitários que visam a eliminar ou reduzir óbices educacionais, econômicos e logísticos para o provimento da devida assistência (5, 10-12). O atendimento médico ser gratuito não significa gratuidade plena do tratamento para o paciente. O reconhecimento pela população da existência de recursos hospitalares gratuitos na sua região de residência, embora seja importante, não constitui fator suficiente para a busca da cirurgia de catarata. Esse fato tem sido observado em estudos realizados tanto em cidades de médio como de grande porte que dispõem de grandes hospitais de clínicas de atendimento gratuito (5, 13).

O Projeto Zona Livre de Catarata tem o propósito de reduzir o número de cegos por catarata a um nível suportável para a sociedade e passível de manutenção posterior por intermédio de um programa continuado. Este projeto tem demonstrado a exeqüibilidade do tratamento cirúrgico mediante racionalização e otimização de recursos. Além disso, evita a necessidade de múltiplos deslocamentos do paciente aos locais de consulta; na maioria dos hospitais-escola do país, o tratamento é concluído somente após cerca de 10 retornos. Essa dificuldade, associada à dificuldade de locomoção e à necessidade de ter um acompanhante para chegar até o local da consulta, acaba por constituir um obstáculo de difícil transposição para os deficientes visuais de baixa renda (9).

É lícito supor que o retardo ou a ausência de procura por assistência oftalmológica não dependem inteiramente do desconhecimento do indivíduo a respeito de ser portador de catarata ou do tipo de tratamento necessário. Esse fato evidenciou-se nos resultados da Tabela 1, onde os entrevistados reconheciam a presença e a gravidade do seu problema visual. O fator econômico parece assumir importância maior dentre as dificuldades mencionadas para a obtenção de consulta oftalmológica (Tabela 3).

De outro lado, barreiras psicológicas e educacionais parecem ser ultrapassadas por meio da divulgação efetiva a respeito de atendimento oftalmológico próximo ao local de residência do paciente, como em geral é o procedimento preliminar à realização de projeto comunitário de catarata. Esse critério de proximidade reduz consideravelmente a necessidade de gastos por parte do paciente e do acompanhante. Note-se que 74% dos entrevistados dispunham de acompanhante, medida recomendável para superar dificuldades de locomoção em ambientes estranhos, mas que implica em gastos duplos. Quando se realiza o atendimento em fim de semana e na área de residência ou proximidades, elimina-se perda do dia de trabalho do acompanhante e reduz-se o gasto com o transporte de ambos (6). Assim, as razões de falta de dinheiro e de acompanhante citadas pelos respondentes interligam-se, de certa forma, para explicar a ausência de tratamento anterior.

O fato de terem admitido "ainda enxergar bem", ou de terem medo da cirurgia, pode ser interpretado como auto-justificativa na ocasião, tendo em vista que procuraram o atendimento oferecido pelo Projeto Catarata e aceitaram a indicação cirúrgica.

É admissível supor a existência de lacuna entre a procura do atendimento oftalmológico e a resolução efetiva do problema visual. Assim, 88% dos sujeitos referiram busca anterior de serviços oftalmológicos diversos (Tabela 2). Contudo, o fato de terem acorrido ao projeto Catarata mostra que o problema não havia sido solucionado. Pode-se supor que o medo, conformismo ou falta de confiança no resultado cirúrgico possam ter influído; porém, a aceitação da indicação cirúrgica por todos os portadores de catarata atendidos no projeto sugere que os fatores preponderantes para a exclusão anterior à cirurgia foram econômicos ou logísticos. Além disso, é importante ressaltar que, embora a grande maioria dos pacientes (89%) tenha tido acesso à consulta clínica em serviços de saúde públicos e privados, estes pacientes não conseguirem se submeter à cirurgia.

Comparado à América Latina, o Brasil pode ser considerado um país privilegiado no que se refere ao contingente disponível de oftalmologistas. Apesar da má distribuição geográfica desses especialistas, existe número suficiente para resolver o problema da catarata e de muitos outros causadores da cegueira. No Brasil, estima-se a existência de 90 000 casos operáveis de catarata por ano. Se cada oftalmologista realizasse oito cirurgias por mês, todos os indivíduos com indicação cirúrgica seriam operados (10).

Outro fator de dificuldade, contudo, consiste na falta ou insuficiência de facilidades cirúrgicas em muitas cidades ou regiões. A realização de cirurgia de catarata com subvenção do Sistema Único de Saúde (SUS) não é do interesse de grande parte dos oftalmologistas (11). Na maioria das vezes, porém, o real fator limitante diz respeito ao limite do número de cirurgias imposto pelas autoridades de saúde, decorrente da limitação de recursos financeiros destinados à assistência médica. Essa política pode até ser compreensível em virtude dos limitados recursos governamentais, porém torna-se inaceitável no que concerne à cirurgia de catarata. O custo relativamente baixo (cerca de 230 dólares, com implante de lente intra-ocular) desta cirurgia converte-se em extraordinário retorno em relação à qualidade de vida e, mesmo, de cunho econômico para esses pacientes. A erradicação (ou controle) da cegueira por catarata, além de beneficiar o paciente e sua família, constitui também investimento social de alta relação custo/benefício (14). Estima-se que, com o modelo atual de acesso à cirurgia, 90% dos deficientes visuais por catarata não seriam reabilitados. Pesquisas realizadas permitiram estimar em 10% a proporção de indivíduos que se submetem à cirurgia de catarata, dentre os que necessitam ser operados (5, 6, 8, 10, 12).

Admite-se, assim, que a descentralização de serviços hospitalares, por meio da criação de serviços oftalmológicos regionalizados e de postos hospitalares de catarata, ao lado de uma política governamental de livre acesso à cirurgia de catarata, poderá contribuir efetivamente para a ampliação necessária do número de cirurgias de catarata senil na população brasileira.

Enquanto o sistema de saúde não apresentar soluções definitivas para o problema, cabe reforçar o alcance e a importância das campanhas e projetos comunitários de prevenção da cegueira por catarata, reabilitando a visão do indivíduo. Como já foi dito anteriormente, voltar a enxergar significa, para muitos pacientes, uma volta à vida e uma reconquista da dignidade e do respeito próprio (15).

Agradecimentos. Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) o apoio financeiro a este projeto, e às autoridades municipais envolvidas no Projeto Catarata a facilitação de condições para sua execução.

7. Referências

1. Temporini ER, Kara-José N. Níveis de prevenção de problemas oftalmológicos: propostas de investigação. Arq Bras Oftalmol 1995; 58(3):189-192.         [ Lilacs ]

2. Thylefors B. Much blindness is avoidable. World Health Forum 1991;12(1):78-86.         [ Medline ]

3. World Health Organization. Strategies for the prevention of blindness in national programmes: a primary health care approach. Geneva: WHO; 1984.

4. Minassian DC. Epidemiological methods in prevention of blindness. Eye 1998;2(suppl): S3-S12.

5. Kara-José N, Arieta CEL, Temporini ER, Kang KM, Ambrósio LE. Tratamento cirúrgico de catarata senil: óbices para o paciente. Arq Bras Oftalmol 1996;59(6):573-577.

6. Temporini ER, Kara-José N, Kara-José Jr N. Catarata senil: características e percepções de pacientes atendidos em projeto comunitário de reabilitação visual. Arq Bras Oftalmol 1997;60(1):79-83.         [ Lilacs ]

7. Sommer A. Organizing to prevent third world blindness. Am J Ophthalmol 1989;107(5): 544-546.         [ Medline ]

8. Kara-José N, Contreras F, Campos MA, Delgado AM, Mowery RL, Ellwein LB. Screening and surgical intervention results from cataract free zone projects in Campinas, Brazil and Chimbote, Peru. Int Ophthalmol 1990;14(1): 155-164.

9. Delgado MN, Kara-José N. Projetos comunitários em oftalmologia. Em: Kara-José N, org. Prevenção de cegueira por catarata. Campinas: Editora da UNICAMP; 1996. p. 55-70.

10. Kara-José N, org. Prevenção de cegueira por catarata. Campinas: Editora da UNICAMP; 1996.

11. Kara-José N, Arieta CEL, Delgado AN. Exeqüibilidade da cirurgia de catarata em hospital-escola: em busca de um modelo econômico. Rev Assoc Med Bras 1994;40(3):186-188 .

12. Prado Jr J, Silva ALB, Alves MR, Kara-José N, Temporini ER. Tratamento cirúrgico da catarata senil no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo¾aspectos da rotina operacional. Rev Medicina São Paulo 1997;76(3):192-196.

13. Kara-José Jr N, Schellini SA, Silva MRBM, Bruni LF, Almeida AGC. Projeto catarata¾qual a sua importância para a comunidade? Arq Bras Oftalmol 1996;59(6):490-496.

14. Javitt JC. The cost-effectiveness of restoring sight. Arch Ophthalmol 1993;111(12):1615.

15. Kara-José N, Almeida GV, Alves MR, Kikuta HS, Arieta CEL. Campanha nacional de prevenção de cegueira e reabilitação visual do idoso¾1996. Rev Medicina São Paulo 1997; 76(3):293-296.

Newton Kara-José2 e Edméa Rita Temporini2 - ertempor[arroba]usp.br

1 Baseado em projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n° 97/01848-9.

2 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Oftalmologia. Correspondência e pedidos de separatas devem ser enviados a Newton Kara-José no seguinte endereço: Rua Madre Teodora 281, Jardim Paulista, CEP 01428-010, São Paulo, SP, Brasil. Fax: +55-11-816-2287.



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