Pesquisas Em vs. Pesquisas Com Seres Humanos



De fato, os esforços para a regulamentação de princípios éticos na prática de pesquisa têm suscitado questões polêmicas ainda pouco discutidas entre nós. Vou procurar tratar de pelo menos três ou quatro questões importantes e complexas no campo da ética na antropologia para dar início ao debate. Em primeiro lugar, gostaria de dizer que a resolução 196, que foi instituída pela Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde para regular a ética em pesquisa com seres humanos em geral, comete alguns equívocos graves. Ao regular toda e qualquer pesquisa com seres humanos a resolução sugere um certo exagero ou uma certa extrapolação de domínios. Neste sentido, me parece que a resolução 196 expressa o que gostaria de caracterizar como um certo "áreacentrismo" ou "biocentrismo" na visão sobre a ética, com implicações muito similares ao que nós na antropologia freqüentemente nos referimos através da noção de etnocentrismo e que um antropólogo como o Dumont, por exemplo, chama de sóciocentrismo para falar na dificuldade que os ocidentais têm em entender a sociedade de castas na Índia.

Tal dificuldade se traduz, no caso em pauta, não só em distorções do ponto de vista cognitivo, mas numa atitude que também não deixa de ter conseqüências normativas, na medida em que impõe (arbitrariamente) uma visão local (biomédica) sobre a prática de pesquisa, ou sobre a ética na prática de pesquisa, como se fosse universal. Isto é, como se representasse, adequadamente, a relação do pesquisador com os sujeitos da pesquisa em todas as áreas do conhecimento. Além de revelar uma má compreensão do caráter desta relação nas ciências sociais (ou nas humanidades), creio que a imposição do modelo biomédico desrespeita direitos e, assim, teria implicações normativas. Uma distinção central na relação com os sujeitos da pesquisa, invisibilizada pelo que estou chamando de áreacentrismo, seria a diferença entre pesquisas em seres humanos, como no caso da área biomédica, e pesquisas com seres humanos, que caracterizaria a situação da antropologia, especialmente da antropologia social ou cultural, que congrega a grande maioria dos pesquisadores no Brasil.

No caso da pesquisa em seres humanos, a relação com os sujeitos, objeto da pesquisa, tem como paradigma uma situação de intervenção, na qual esses seres humanos são colocados na condição de cobaias e, por tratar-se de uma cobaia de tipo diferente, é necessário que esta condição de cobaia seja relativizada. É neste contexto que o consentimento informado se constitui em uma exigência não só legitima, mas da maior importância. Já no caso da pesquisa com seres humanos, diferentemente da pesquisa em seres humanos, o sujeito da pesquisa deixa a condição de cobaia (ou de objeto de intervenção) para assumir o papel de ator (ou de sujeito de interlocução). Na antropologia, que tem no trabalho de campo o principal símbolo de suas atividades de pesquisa, o próprio objeto da pesquisa é negociado: tanto no plano da interação com os atores, como no plano da construção ou da definição do problema pesquisado pelo antropólogo.

Então, o consentimento informado me parece pouco produtivo para o trabalho do antropólogo. Quando o antropólogo faz a pesquisa de campo ele tem que negociar sua identidade e sua inserção na comunidade, fazendo com que sua permanência no campo e seus diálogos com os atores sejam, por definição, consentidos. Entretanto, o antropólogo sempre tem mais de uma identidade no campo. Pois, só um pesquisador com graves problemas psicológicos, talvez só mesmo um pervertido desses que existem apenas no mundo ficcional poderia se relacionar com os atores apenas como sujeito de conhecimento durante todo o tempo. Uma vez no campo, o antropólogo também se relaciona com os nativos enquanto ator, e freqüentemente participa do modo de vida do grupo estudado ou compartilha experiências com seus interlocutores. A implicação disto é que, assim como nós temos uma identidade dominante na nossa sociedade, mas às vezes acionamos ou privilegiamos dimensões menos abrangentes dessa identidade em nossas interações cotidianas, nas interações que desenvolvemos no campo também assumimos mais de um papel e atualizamos mais de uma identidade. No contexto das sociedades ditas simples, um autor como Gluckman falava em relações multiplex para caracterizar este padrão de interações que envolve vários tipos de relacionamentos e de identidades. Neste sentido, o consentimento informado é pouco produtivo para a antropologia porque, do ponto de vista da disciplina, é interessante que o antropólogo, no futuro, possa resgatar pelo menos algumas dimensões de sua experiência existencial no campo para a produção de interpretações e de reflexões sobre as quais não havia pensado enquanto fazia a pesquisa em contato direto com os atores. Deste modo, não é possível nem seria desejável que o antropólogo pudesse definir ou prever com precisão todos os seus interesses (presentes e futuros) de pesquisa, no momento recomendado pela resolução 196 para a obtenção do consentimento informado.

Aliás, outro aspecto importante da pesquisa antropológica é que, freqüentemente, o objeto teórico da pesquisa é redefinido após a pesquisa de campo, quando cessa a interação com os sujeitos da pesquisa, o que traz novas dificuldades para as regras de solicitação do consentimento informado, assim como estabelecidas na resolução 196 do CONEP. Pois, segundo a resolução, os sujeitos da pesquisa têm que ser informados não apenas sobre exatamente a que intervenções eles estarão sujeitos, mas também sobre o assunto ou sobre do que se trata a pesquisa. A satisfação destes dois aspectos do consentimento informado seria a condição para a legitimação da pesquisa, assim como para a divulgação de seus resultados.

Gostaria de chamar atenção aqui que, no caso da antropologia, é normalmente raro ou pelo menos difícil que o pesquisador tenha uma definição clara e definitiva do seu objeto de pesquisa, — ou do problema que irá abordar no livro ou no artigo a ser publicado no futuro — no momento em que ele está tendo a interação com os sujeitos da pesquisa. Gostaria de argumentar ainda que, não só essa ausência de definição precisa, no momento da interação no campo, não tem as implicações ético-morais que poderiam caracterizar a situação similar no caso da pesquisa biomédica, mas insistiria que não seria nem mesmo desejável, do ponto de vista da produção antropológica, que uma definição bem amarrada e conclusiva fosse formulada no início da pesquisa. Este seria então um primeiro problema para a implementação da resolução 196 no caso da pesquisa antropológica, e que chama a atenção para a importância da diferença entre pesquisas em e pesquisas com seres humanos. Como mencionei acima, enquanto no plano cognitivo a concepção do consentimento informado previsto na resolução impõe limitações, mal fundamentadas e ilegítimas, à investigação do antropólogo ou à sua compreensão do objeto, no plano normativo estas limitações assumiriam um caráter autoritário, na medida em não encontrariam o mesmo suporte ético-moral que respalda as exigências estabelecidas para a pesquisa na área biomédica. No caso da antropologia, a negociação da pesquisa e/ou do objeto é parte constitutiva do empreendimento: primeiro no campo e depois no escritório quando o trabalho é redigido, ainda que no segundo momento trate-se de um diálogo simulado.

Não obstante isso me parece que o antropólogo se defronta com questões de ordem ético-moral em outras circunstâncias, não necessariamente restritas ao momento da negociação da situação de pesquisa no campo, junto aos atores. Claro está que o antropólogo se defronta com problemas ético-morais de base, na medida em que tem que estabelecer uma relação dialógica com os sujeitos da pesquisa, e, portanto procurar ouvi-los de fato, não só para que a interação transcorra de maneira adequada, mas também para que compreenda bem o que está estudando. Nesse contexto, acho que os problemas ético-morais do antropólogo podem ser particularmente dramáticos em dois momentos: (1) quando da negociação da identidade do pesquisador no campo, o que pode ser bastante complicado, e (2) no momento da divulgação dos resultados da pesquisa, quando o antropólogo não pode se abster da responsabilidade sobre o conteúdo do material publicado, assim como sobre as implicações previsíveis de sua divulgação.


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