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Pesquisas em vs. pesquisas com seres humanos. (página 2)

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

 

No que concerne à negociação da identidade do antropólogo, acho que seria absolutamente legítimo que a ABA e/ou os antropólogos se preocupassem, por exemplo, com a importância do pesquisador não enganar os nativos ou os sujeitos da pesquisa em relação à sua própria identidade. Há casos registrados na literatura em que pesquisadores na área de ciências sociais, antropólogos ou sociólogos, assumem um papel nativo e evitam revelar a sua identidade de pesquisador, o que pode ter implicações ético-morais graves. Há, por exemplo, o estudo famoso de Foote-Whyte sobre "Street Corner Society",1 no qual o pesquisador assume o papel de participante total — para utilizar uma expressão de Cicourel2 — e finge papéis para se integrar plenamente ao grupo. Embora não deixe de revelar sua identidade de pesquisador em alguns momentos, ainda que apresentando seus interesses de pesquisa de forma dissimulada,3 a estratégia de representar papéis como se fosse nativo não deixa de ser problemática, pois motivada para viabilizar o acesso a informações que, de outra maneira, provavelmente lhe seriam negadas. Se a idéia de participação total e a estratégia de fingir papéis tinham uma apelo inovador em 1937, ano em que a pesquisa de Foote-Whyte foi realizada, são de difícil legitimação na atualidade, quando é grande a preocupação com os direitos dos sujeitos da pesquisa e com a dimensão ética das relações estabelecidas pelo pesquisador no campo.

Entretanto, há outras circunstâncias mais complexas, como por exemplo, no caso da minha própria pesquisa de campo para tese de doutorado nos Estados Unidos,4 nas quais a assunção de uma identidade nativa não parece ter as mesmas implicações.

Durante a pesquisa, procurei combinar a identidade tradicional de antropólogo, em relação à qual não faço nenhuma restrição, com a assunção de uma posição social nativa. No primeiro caso, como normalmente se faz, identificava-me como um pesquisador que queria estudar aquela comunidade e que depois iria escrever sobre ela.

Como quer que esta identificação venha a ser compreendida e interpretada pelos atores, e isso pode variar muito, o interesse em aprender sobre a comunidade passa a ser pelo menos uma das dimensões importantes desta identidade. Por outro lado, devido a meus interesses em questões relativas à validade da interpretação antropológica e às características do dado antropológico, resolvi conduzir uma parte da pesquisa a partir de uma posição social nativa, para estabelecer um outro tipo de relação com os atores, o que me permitiria, em princípio, o acesso a outro tipo de dado. Neste sentido, trabalhei um período como conselheiro leigo para pequenas causas — um serviço prestado por voluntários a litigantes (reais ou virtuais) através do telefone —, e atuei também, no final da minha pesquisa, como mediador de disputas no Juizado, uma posição exercida por membros da comunidade também em caráter voluntário. Tanto num caso como no outro era sabido que todos os prestadores desses serviços tinham outra atividade principal, e minha "dupla" identidade no campo não envolvia qualquer tentativa de dissimulação.

Apesar, de quase todos os outros mediadores serem estudantes de direito, esta era uma atividade idealizada para voluntários leigos, como eu. No Juizado, estava claro para todo mundo que eu era um estudante de antropologia fazendo uma pesquisa para escrever uma tese de doutorado e, nesta condição, consegui um espaço para no final da pesquisa atuar como mediador de disputas. Antes disso, porém, assisti a muitas disputas mediadas por mediadores experientes na prestação deste serviço ao Juizado. Enquanto observador, sempre me identificava como antropólogo e tinha que pedir permissão às partes para gravar as sessões de mediação, o que nunca me foi negado. Como tinha que utilizar terno e gravata — traje típico de advogados — para não chamar muita atenção nem ter que dar muitas explicações sobre minhas atividades no Juizado, os litigantes tinham dificuldade de acreditar que eu era antropólogo quando me identificava como tal no início das sessões de mediação e, ao final, às vezes chegavam a me dizer que sabiam que eu era advogado. A rigor esta não é uma situação tão excepcional quanto pode parecer, pois muitas vezes o antropólogo tenta comunicar sua identidade da maneira mais fidedigna possível, mas tem dificuldade de transmiti-la adequadamente, e acaba prevalecendo uma identidade diferente à revelia do pesquisador. Naturalmente, este caso não tem as mesmas implicações éticas do primeiro, quando o pesquisador esconde sua identidade de antropólogo para realizar o trabalho e, de certa forma, engana os sujeitos da pesquisa.

Ainda sobre este tema, gostaria de mencionar um exemplo complexo e bastante interessante. Penso no caso de uma antropóloga francesa de origem árabe, chamada Favret-Saada, que fez uma pesquisa sobre bruxaria na região de Bocage na França.5

Favret-Saada vai para Bocage com o objetivo de estudar práticas de bruxaria, sobre as quais até então só havia relatos impressionistas de folcloristas, mas, após alguns meses no campo não tinha tido ainda qualquer sinal de bruxaria, e quando falava com as pessoas sobre o assunto todos diziam: aqui não existe bruxaria, isso é coisa de parisiense achar que nós acreditamos nessas crendices, etc. Ela já estava desistindo da pesquisa quando foi confundida com uma pessoa que quebra encantos ou com um "desenfeitiçador" (désorceleur ou désenvoûteur), um papel ou posição social local e, pela primeira vez, é exposta às práticas de bruxaria. As antenas se levantaram e ela embarcou na conversa. Quando entendeu que estava sendo identificada como uma pessoa que quebra encantos, ela já estava atuando como tal. Isto é, como uma "desenfeitiçadora", e ela acaba assumindo esse papel no campo. Aparentemente passa a ser uma "desenfeitiçadora" ou quebradora de encantos com muito prestígio na região, muito procurada pelos atores e, de fato, ela é bem sucedida nessa prática.

A experiência de Favret-Saada traz novas questões porque é diferente dos dois primeiros casos. Pois, ao mesmo tempo, que ela não está se disfarçando, ela também não está procurando afirmar sua identidade de antropóloga, em oposição à dessa pessoa que desenfeitiça ou que quebra encantos, como foi identificada localmente. Por outro lado, acho que ela dá todos os indícios de que assume esse papel nativo com todo respeito às práticas culturais locais e levando a sério seus "informantes"/interlocutores.

Da minha perspectiva, como problema para nossa discussão, acho que nesse terceiro caso seria difícil recriminá-la do ponto de vista ético-moral, se é verdade que ao assumir essa posição, ela não o faz enganando as pessoas, mas levando-as a sério. Creio que sua atuação deveria ser vista de maneira mais crítica se, ao assumir a posição de desenfeitiçadora, sua atitude fosse de incredulidade frente a visões de mundo tidas como sem sentido e fruto da ignorância. Isto é, se ela pensasse que a população de Bocage fosse muito ignorante mesmo, para acreditar em tais loucuras, e que tivesse resolvido dizer duas ou três crendices para os nativos, fingindo curar as pessoas, apenas para obter as informações que lhe interessavam. Mas, não foi isso que aconteceu. Pois, ela não apenas demonstra ter internalizado a prática de "desenfeitiçadora", mas atua nela com uma certa competência.

De fato, tratar pesquisas com seres humanos como se fossem pesquisas em seres humanos representa uma tentativa de colonização da antropologia ou das humanidades pelo áreacentrismo biomédico, o qual, como indiquei há pouco, tem implicações não só cognitivas mas também normativas. Neste sentido, me parece que os problemas de ordem ético-moral do antropólogo estariam mais presentes não apenas no momento da definição de sua identidade de pesquisador — na medida em que não seria possível justificar uma identidade disfarçada —, mas também num segundo momento, quando o pesquisador tem que se preocupar com a divulgação ou com a repercussão dos resultados.6

Para mencionar rapidamente um caso, gostaria de refletir sobre aspectos da repercussão do livro de Patrick Tierney, jornalista que escreveu um livro contendo acusações muito graves sobre os trabalhos de pesquisa de Neel e Chagnon entre os Yanomami. A professora Alcida Ramos, minha colega na Universidade de Brasília e renomada por suas publicações sobre os Yanomami, acaba de fazer uma resenha sobre o livro para a Current Anthropology,7 na qual reforça algumas acusações e não deixa de criticar o próprio Tierney. Tomando apenas um ponto enfatizado por Alcida em sua resenha, mas que diz respeito direto ao que nós estamos discutindo aqui, ela aponta problemas sérios sobre a falta de responsabilidade de Chagnon em relação aos resultados de suas pesquisas. Chagnon desenvolve uma teoria sobre os Yanomami na qual acentua muito a importância das brigas internas e do caráter violento do grupo, onde as pessoas se matariam com freqüência, construindo uma visão exótica dos Yanomami, caracterizado por ele como "The Fierce People" ou "O Povo Feroz", idéia que dá título a sua monografia. Ainda que Alcida faça críticas bem fundamentadas a esta visão, gostaria de deixar de lado, no momento, a discussão sobre a validade desta interpretação do ponto de vista cognitivo, para enfocar o problema da (falta de) responsabilidade de Chagnon sobre a utilização de sua interpretação. Apesar de ter trabalhado com os Yanomami da Venezuela, a interpretação do Chagnon foi utilizada aqui, no Brasil, durante as discussões sobre a demarcação da terra Yanomami. Isto é, foi utilizada por aqueles que defendiam que a terra dos Yanomami fosse distribuída em ilhas, com o argumento, inspirado no trabalho do Chagnon, de que a distribuição dos Yanomami em ilhas seria, inclusive, uma maneira de protegê-los contra eles mesmos, porque tratar-se-ia de um povo que quando se junta se mata! Parece-me que, mesmo mantendo uma convicção inabalada sobre sua interpretação original do grupo como "povo feroz", Chagnon poderia ter vindo a público manifestar seu eventual repúdio à manipulação de suas idéias por autoridades e grupos de interesse com o objetivo de reduzir a área Yanomami. Como se sabe, Chagnon nunca se mobilizou para atacar o problema, e creio que tal (falta de) atitude poderia ser legitimamente cobrada dele com base em princípios éticos que norteiam a relação entre pesquisador e sujeitos pesquisados na antropologia (veja resenha de Ramos). O exemplo é interessante porque traz à tona uma dimensão da responsabilidade ética do antropólogo cuja importância ou implicações só aparecem pós-fato, depois da pesquisa feita e de seus resultados divulgados, e passa ao largo das preocupações/diretrizes definidas na resolução 196 do CONEP.

Outra questão da maior importância e bastante complexa, no que concerne ao trabalho do antropólogo, são os laudos. É claro que não teria possibilidades de abordar aqui todas as implicações de ordem ética envolvidas na produção dos laudos. Não só porque não haveria tempo, mas porque trata-se de uma experiência relativamente recente, cuja complexidade parece ainda não ter vindo inteiramente à tona, visto que quanto mais se fala sobre o que está envolvido nos laudos, maiores são os problemas associados a eles.

Gostaria de começar chamando a atenção para uma dificuldade a qual parece estar cada vez mais presente com a aceleração do processo de institucionalização e generalização dos laudos, mas que não tem recebido a atenção que merece em nossa comunidade. Trata-se da dificuldade que os antropólogos têm demonstrado para lidar com a idéia do contra-laudo. Idéia cuja contestação não encontra muita receptividade em ambientes democráticos ou onde as ideologias da democracia e do individualismo são dominantes. Pois não é fácil dissociar a negação do contra-laudo da percepção de negação de um direito básico de cidadania. Por outro lado, acho também que negar o contra-laudo tem implicações negativas para o próprio status cognitivo do laudo do antropólogo, porque não há como justificar um laudo que não possa estar sujeito a questionamentos, ou que possa ser identificado como um ato partidário, quem sabe mesmo passional, diriam alguns, em relação à população indígena. Do ponto de vista do judiciário, que solicita e/ou que avalia os laudos para tomar decisões sobre direitos, a efetividade do laudo antropológico está no seu caráter técnico-científico, na medida em que pretende traduzir melhor a realidade que está sendo tematizada no caso examinado pelo juiz. Se o antropólogo abre mão da defesa dessa dimensão, ele perde a sua força argumentativa no contexto jurídico, que se orienta exatamente por essa preocupação.

Neste quadro, tal atitude pode ser absolutamente fatal. Acho muito difícil a ABA tomar uma posição que não seja favorável à possibilidade de confrontação de laudos e, ao mesmo tempo, defender a observação ou respeito aos laudos que tem apoiado.

Naturalmente, tomar uma posição favorável à possibilidade de eventual realização de um contra-laudo, não significa abrir mão da crítica aos laudos escusos, como no exemplo do antropólogo que vai trabalhar para o fazendeiro, ganhando rios de dinheiro, e maqueia o laudo para atender aos interesses espúrios do fazendeiro. Pelo contrário, a possibilidade de contestar laudos pode se constituir num importante instrumento de defesa dos interesses das populações estudadas por antropólogos.

Nesta linha, é possível tematizar este diálogo com o direito, associado ao exemplo da relação entre os papéis de antropólogo e de advogado. Tendo como referência a visão da relação entre o advogado e o cliente nos Estados Unidos, seria importante trazer à luz, em primeiro lugar, o fato de que essa relação, — na qual o advogado deve utilizar todos os instrumentos jurídicos ao seu alcance para que seu cliente ganhe a causa —, é plenamente justificável do ponto de vista ético-moral no contexto americano. Pois, trata-se de um sistema jurídico adversarial onde a sustentação moral que legitima a defesa do direito de todos os envolvidos depende dos advogados das duas partes atuarem da melhor maneira possível para defender os interesses específicos dos seus clientes. Neste contexto, em tese, os advogados vão estar fazendo isso sob o controle do juiz, que deverá coibir os eventuais abusos de parte a parte, freqüentemente a partir das objeções suscitadas pelo oponente daquele que tem a palavra no momento. Já vimos muitos filmes sobre o sistema jurídico americano, o qual provavelmente por isto conhecemos melhor que o brasileiro, e é fácil lembrar que os advogados sempre estão solicitando a intervenção do juiz para inibir excessos nas perguntas ou comentários que seus oponentes dirigem às testemunhas quando estas estão depondo. Então, há uma justificativa ético-moral para defender e enfatizar a importância do empenho do advogado na sustentação do ponto de vista de seu cliente.

Pois, a outra parte terá os mesmos direitos na apresentação de seu ponto de vista, ou do contra-laudo nos termos de nossa discussão.

Para finalizar, queria chamar atenção para um aspecto presente em todo e qualquer laudo antropológico, e não apenas naqueles que envolvem a delimitação de terra indígena ou de quilombo, o qual diz respeito à dimensão técnico-científica do laudo, que não pode deixar de ter compromissos com a elucidação da verdade dos fatos que examina. Na mesma direção, assim como há uma dimensão ético-científica e outra ético-jurídica na elaboração ou na confrontação de laudos, também há uma dimensão ético-política que ainda não tive oportunidade de abordar. Devemos ter clareza que uma dimensão não se esgota na outra e que, por exemplo, questões de cunho político não podem ser adequadamente resolvidas de forma técnica, ainda que esta possa se constituir num subsídio importante para aquela. Há várias circunstâncias em que não seria legítimo ao técnico, ao advogado ou ao antropólogo tomar decisões que possam passar por cima dos interesses e da visão dos concernidos. Isto é, daqueles que estão envolvidos nos processos sociais em pauta e que arcarão com as conseqüências da decisão que vier a ser tomada. Pois, ainda que um cientista qualquer possa ter boas razões para achar que uma determinada opção é melhor para aquela população, porque, para dar um exemplo radical, viabilizaria uma ampliação da expectativa de vida do grupo, esta pode não ter a preferência da comunidade, que se sente mais atraída por opções que não permitirão o mesmo patamar de longevidade. Se a comunidade achar que pode viver mais feliz com a outra opção, seria legítimo que a visão científica se impusesse para que as pessoas pudessem viver mais tempo?8

Esta dimensão ético-política, que também está sempre presente no trabalho do antropólogo, legitimaria a perspectiva que eu gostaria de identificar aqui como de assessor ou de assessoria, em oposição à perspectiva do porta-voz, que pretende falar em nome do grupo. Com exceção de casos muito circunscritos e pontuais, onde o antropólogo tem boas razões para dizer que aqueles que vão sofrer uma determinada ação — como as populações indígenas em muitas circunstâncias (especialmente no passado) — não tem condições de se manifestar ou de entender as conseqüências dos processos a que estão submetidos, é muito difícil sustentar a posição de porta-voz. Mas, como um padrão, seria absolutamente inadequado ao antropólogo assumir o lugar do ator e/ou do grupo que está assessorando e dizer o que deve ser feito. Um último ponto, diz respeito à idéia de uma antropologia de compromisso, ou de uma antropologia engajada, que sempre teve um espaço entre nós, mas que tem aparecido e com muita ênfase nos Estados Unidos de alguns anos para cá. Queria só manifestar aqui que não tenho nenhuma simpatia pelo que alguns autores como Nancy Scheper-Hughes, antropóloga americana, tem definido como antropologia militante.9 Pois, trata-se de um tipo de militância que me parece ter implicações ético-normativas negativas, na medida em que sugere uma atitude excessivamente seletiva em relação ao ponto de vista nativo, que se transforma num apêndice das boas idéias e soluções apresentadas pelo antropólogo iluminado.

Em relação à questão da neutralidade, acho que, inclusive por causa desse diálogo com o judiciário, mas não só por causa dele, deveríamos fazer uma diferença entre neutralidade e imparcialidade. O Clifford Geertz tem um artigo, que provavelmente a maior parte de vocês já leu, com o título "Do Ponto de Vista dos Nativos…", o qual é introduzido com uma frase que serve de mote para o argumento ali desenvolvido: "o que acontece com verstehen (a compreensão) quando einfühlen (a empatia) desaparece".10 A questão é motivada pela reação à publicação dos diários de Malinowski, editados postumamente, quando descobre-se que Malinowski pensava coisas incríveis dos nativos, e que dizia cobras e lagartos sobre eles.11 Neste contexto, cai por terra o mito da integração absoluta do antropólogo na comunidade estudada e do acesso direto ao ponto de vista nativo através da empatia. Geertz então argumenta que o acesso direto ou neutro ao ponto de vista nativo é inviável, pois o antropólogo não pode se abster de suas pré-concepções, e que a compreensão se daria através da articulação entre conceitos distantes (os dos nativos) e conceitos próximos (os do antropólogo). Isto é, o acesso ao ponto de vista nativo dependeria da mediação das representações do antropólogo na medida em que estas viabilizassem conexões elucidativas com as noções (conceitos distantes) dos nativos.

Agora, a impossibilidade de realizar uma interpretação neutra não significa que o antropólogo tenha que abrir mão de pretensões de validade e/ou da preocupação com a imparcialidade de suas interpretações. Tanto no caso da dimensão estritamente cognitiva da interpretação, como em relação às suas implicações normativas — e aqui retomamos o diálogo com o judiciário — me parece que a pretensão de imparcialidade pode ser resgatada. Isto é, se a neutralidade é inviável porque o antropólogo não pode abrir mão de sua condição de ator, a imparcialidade pode ser vislumbrada desde que o pesquisador se preocupe em se expor às diversas versões dos fatos a serem interpretados, e não tome posições que não possa defender argumentativamente. Se tal procedimento não garante interpretações definitivas ou absolutas, pelo menos exclui aquelas que seriam arbitrárias. No contexto do diálogo com o judiciário a questão da imparcialidade é importante porque exclui a possibilidade de legitimação de interpretações ou de versões unilaterais. Assim, se o laudo antropológico é um parecer técnico, este se desqualificaria como tal se só pudesse ser articulado na defesa dos interesses de um determinado grupo ou segmento social, independentemente de qualquer dado ou argumento. Seria difícil para a ABA justificar que seus associados não deveriam, por princípio, fazer laudos para certos segmentos sociais, cuja inserção na sociedade mais ampla não pudesse ser considerada ilegítima. Entretanto, isto não significa que para ser imparcial o laudo tenha que ser neutro. Significa apenas que o antropólogo tem que estar preocupado em discutir critérios que permitam uma avaliação não arbitrária da situação, e que sua interpretação não tenha como implicação a agressão a direitos legítimos ou a manipulação dos dados para beneficiar um parecer préconcebido.

Quando eu era estudante de pós-graduação nos EUA tinha um colega de economia, das Filipinas, que certa vez foi conversar com seu orientador sobre problemas que estava encontrando com dados estatísticos que pareciam não viabilizar a análise que ele estava propondo. O professor teria lhe dito então que em casos como o dele o pesquisador teria que massagear os números (ou os dados) para levar adiante o trabalho. Qualquer que tenha sido a intenção do professor, creio que esta não é uma expressão feliz, e que o antropólogo não deve e não pode massagear os dados quando estes não dão suporte a sua análise ou não apoiam seu ponto de vista. A impossibilidade de ser neutro não deve permitir que o antropólogo massageie seus dados e que, neste sentido, seja parcial.

Referências

Cardoso de Oliveira, Luís R. (1989). Fairness and Communication in Small Claims Courts. (Ph.D dissertation, Harvard University), Ann Arbor: University Microfilms International (order # 8923299).

Cicourel, Aaron (1975). "Teoria e método em pesquisa de campo", in A. Zaluar (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., pp. 87-121).

Favret-Saada, Jeanne (1977). Les mots, la mort, les sorts. Paris: Éditions Gallimard.

Foote-Whyte, William (1943). Street Corner Society. The University of Chicago Press.

Foote-Whyte, William (1975). "Treinando a observação participante", in A. Zaluar (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., p. 79.

Geertz, Clifford. (1983) "From the Natives Point of View: on the Nature of Anthropological Understanding", in Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York: Basic Books, p.56.

Malinowski, Bronislaw. (1967/1989) A Diary in the Strict Sense of the Term.

California: Stanford University Press.

Ramos, Alcida (2001) "Review of Darkness in El Dorado. How scientists and journalists devastated the Amazon, by Patrick Tierney. New York: W.W. Norton, 2000". Current Anthropology, 42(2): 274-276.

Scheper-Hughes, Nancy (1995) "The Primacy of the Ethical: Propositions for a Militant Anthropology." Current Anthropology 36(3):409-420.

SÉRIE ANTROPOLOGIA
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333. PINA CABRAL, João de. Guerreiros da Nova Era: Macau na Encruzilhada Colonial. 2003.

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335. CARVALHO, José Jorge de. La Etnomusicología en Tiempos de Canibalismo Musical. Una Reflexión a partir de las Tradiciones Musicales Afroamericanas. 2003.

336. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Pesquisas Em vs. Pesquisas Com Seres Humanos. 2003.

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Notas

1. Foote-Whyte, William (1943). Street Corner Society. The University of Chicago Press.

2. Cicourel, Aaron (1975). "Teoria e método em pesquisa de campo", in A. Zaluar (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., pp. 87-121).

3. Foote-Whyte, William (1975). "Treinando a observação participante", in A. Zaluar (org.) Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., p. 79.

4. Cardoso de Oliveira, Luís R. (1989). Fairness and Communication in Small Claims Courts. (Ph.D dissertation, Harvard University), Ann Arbor: University Microfilms International (order # 8923299).

5. Favret-Saada, Jeanne (1977). Les mots, la mort, les sorts. Paris: Éditions Gallimard.

6. Entretanto, a exigência contida na resolução de que o consentimento tem que ser formalizado através de um documento assinado constitui um complicador adicional. Pois, aumenta muito a responsabilidade do antropólogo quanto a eventual divulgação dos dados assim obtidos, pois acentua a possibilidade de responsabilização daqueles que foram entrevistados se as informações assinadas puderem ser interpretadas como evidência de algum ato ilícito. Como diriam os americanos, o consentimento assinado aumenta muito a liability dos entrevistados.

7. Ramos, Alcida (2001) "Review of Darkness in El Dorado. How scientists and journalists devastated the Amazon, by Patrick Tierney. New York: W.W. Norton, 2000". Current Anthropology, 42(2): 274- 276.

8. Há uma perspectiva de multiplicação exponencial das demandas por laudos após a provável aprovação do Estatuto do Índio. Pois, se até hoje os antropólogos têm sido acionados para fazer laudos sobre terras ou sobre a identidade do grupo, com a aprovação do novo estatuto aparecerão novas demandas relativas à atividade de mineração e a todo tipo de empreendimento econômico que venha a ser realizado em área indígena. Além disso, as demandas não virão apenas do Ministério Público ou do Judiciário e da FUNAI, mas virão também das empresas interessadas nestes empreendimentos e, às vezes, das próprias comunidades indígenas. De fato, os laudos tendem a se constituir em um campo fértil para visões diferentes e opiniões eventualmente divergentes. Nestes termos, a equação entre a identidade com o grupo indígena e a preocupação com a idéia de imparcialidade (constitutiva dos procedimentos judiciários) terá que ser complexificada e/ou reequacionada.

9. Scheper-Hughes, Nancy (1995) "The Primacy of the Ethical: Propositions for a Militant Anthropology." Current Anthropology 36(3):409-420.

10. Geertz, C. (1983) "From the Natives Point of View: on the Nature of Anthropological Understanding", in Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York: Basic Books, p.56.

11. Malinowski, B. (1967/1989) A Diary in the Strict Sense of the Term. California: Stanford University Press.

Prof. Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br



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