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Identificação de grupos mais vulneráveis à desnutrição infantil pela medição do nível de pobreza (página 2)

Clécio H. da Silva; Elsa R. J. Giugliani

População e Métodos

O estudo foi realizado durante o ano de 1990 entre os moradores de bolsões de pobreza localizados na Vila Grande Cruzeiro, distante 6km do centro de Porto Alegre, RS. Esses bolsões de miséria, chamados pelo IBGE de "setores especiais de aglomerado subnormal", apresentam as seguintes características: aglomerados com no mínimo 50 domicílios, em sua maioria com infra-estrutura carente e geralmente localizados em terrenos que não pertencem aos moradores, como é o caso de favelas, mocambos, palafitas, malocas, etc.8 Foram identificados, na área em estudo, 29 setores especiais onde residiam aproximadamente 40.000 pessoas. A amostra foi constituída por aproximadamente 10% da população infantil na faixa etária entre 12 e 59 meses. As crianças foram selecionadas em duas etapas: (1) sorteio dos setores a serem visitados e (2) sorteio da criança a ser incluída no estudo, caso houvesse na família mais de uma criança na faixa etária considerada. Para atingir a amostra desejada, a equipe de visitadores percorreu os primeiros 5 setores sorteados, sendo visitados todos os domicílios. Foram identificadas 488 famílias que possuíam pelo menos uma criança na faixa etária em estudo. Apenas 11 não foram incluídas na amostra (4 recusas e 7 não puderam ser contatadas), perfazendo uma perda de 2,2%.

As informações foram obtidas através de entrevistas com as mães das crianças ou suas substitutas.

O instrumento de medição do nível de pobreza utilizado por Alvarez et al.7 consta de 13 itens relacionados com a constituição da família, escolaridade e atividade do chefe da família, condições do domicílio e peridomicílio e posse de alguns bens (Tabela 1). Cada item recebe uma pontuação, cuja soma estabelece o nível de pobreza da família: miséria (até 17,3 pontos), baixa inferior (17,4 a 34,6 pon-tos) e baixa superior (34,7 a 52,0 pontos). Para esse estudo, manteve-se a estrutura e a pontuação sugeridas, com as seguintes adaptações: a) o artigo original avalia a seguridade social do chefe da casa; como no Brasil ela é universal, não haveria assim discriminação entre os grupos; modificamos para "energia elétrica no domicílio", com uma pontuação mais estratificada; b) incluímos escolaridade e atividade do pai e da mãe (só do pai no original), considerando o maior escore para fins de pontuação; e c) alteramos a descrição dos aparelhos possuídos pela família, de acordo com a nossa realidade (máquina de costura, no original, não é muito comum em nosso meio).

As famílias foram agrupadas em quartis segundo a pontuação obtida na aplicação do instrumento de medição do nível socioeconômico, sendo considerado em pobreza extrema o subgrupo de famílias pertencentes ao quartil inferior.

A pesagem das crianças foi feita com balanças portáteis previamente aferidas no INMETRO (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial). Quando não era possível pesar as crianças sem roupa, especialmente nos meses de inverno, o peso das roupas era descontado utilizando-se tabelas especialmente confeccionadas para esse fim, com a descrição do tipo da roupa e seu respectivo peso.

Crianças com até dois anos incompletos foram medidas em decúbito dorsal sobre uma superfície plana, utilizando-se antropômetro de madeira não desmontável, com escala de fita métrica aferida. As crianças com dois anos completos ou mais eram medidas em posição ortostática, descalças, com os calcanhares, nádegas e região occipital no mesmo plano (geralmente a parede da casa). Um esquadro era posicionado no topo da cabeça, formando um ângulo de 90° com a parede; nesse ponto era feita uma pequena marca. A distância até o solo (altura da criança) era medida com fita métrica metálica inextensível, com subdivisões em milímetros.

Foram consideradas desnutridas as crianças com índices peso/idade, altura/idade e/ou peso/altura inferiores a 2 desvios padrão da mediana da população de referência (National Center for Health Statistics -NCHS).

Na análise estatística, utilizou-se a regressão logística para testar a associação entre desnutrição e nível de pobreza. Para neutralizar o efeito de possíveis fatores de confusão, as seguintes variáveis foram incluídas no modelo final da regressão logística: variável dependente - peso/idade, altura/idade ou peso/altura (<2DP, >2DP); variáveis independentes - nível de pobreza (quartil inferior, demais quartis), peso de nascimento (<2500, >2500g), idade materna (<20, >20 anos), ordem de nascimento (primeiro, não primeiro filho) e idade da criança (12-23, 24-35, 36-47, 4859 meses).

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Resultados

A Figura 1 mostra a distribuição da pontuação do nível socioeconômico na população favelada da Vila Grande Cruzeiro. Na figura estão assinalados o percentil 25 (primeiro quartil - Q1) e o percentil 50 (segundo quartil - Q2). A pontuação mínima foi de 17 pontos e a máxima, 51 pontos.

A Tabela 2 apresenta o percentual de crianças com índices peso/idade, altura/idade e peso/altura menores que -2 desvios padrão (DP), segundo a faixa etária.

Na Tabela 3 encontram-se os resultados da regressão logística. Houve uma associação estatisticamente significativa entre pobreza extrema e déficits nos índices antropométricos, que se manteve após o controle do efeito de possíveis variáveis de confusão.

Discussão

O instrumento utilizado no Chile para medir níveis de pobreza, quando adaptado às características locais, apresentou algumas peculiaridades. A distribuição da pontuação foi diferente daquela registrada em Santiago, Chile. A pontuação mínima por nós obtida foi de 17 pontos, valor correspondente ao limite entre as categorias "miséria" e "baixa inferior" para a população urbana pobre de Santiago. A variabilidade registrada pode ser atribuída às diferenças sociais entre as populações urbanas pobres de Santiago e Porto Alegre e/ou às modificações introduzidas no instrumento, embora essas fossem mínimas, não alterando de modo significativo sua estrutura original.

Em função da diferença de pontuação encontrada entre o presente estudo e o estudo de Alvarez et al.7, foi necessário adotar outros pontos de corte para a estratificação da população quanto aos níveis de pobreza. Optou-se por dividir a população em quartis, de acordo com a pontuação recebida na classificação socioeconômica.

O presente estudo mostrou uma associação importante entre níveis de pobreza e estado nutricional de crianças menores de 5 anos. As crianças cujas famílias pertenciam ao quartil mais pobre apresentaram uma chance 3,4 vezes maior de apresentar baixo peso para a idade, 2,7 vezes maior de ter retardo no crescimento e 11,0 vezes maior de possuir um peso baixo para a altura, controlando-se possíveis fatores de confusão. Desta maneira, fica evidente que quanto mais pobres maior a chance dos indivíduos de se desnutrirem e de carregarem as marcas da desnutrição por toda a vida e, inclusive, de transmiti-las para outras gerações.

Outros estudos, utilizando diferentes indicadores do nível socioeconômico, também têm encontrado uma relação direta entre pobreza e déficit nutricional de crianças. Aerts mostrou que as crianças menores de 5 anos de Porto Alegre com retardo no crescimento pertenciam a famílias com baixa inserção socioeconômica, indicada principalmente pela baixa escolaridade da mãe, e moravam em domicílios com precárias condições e sem infra-estrutura urbana básica6. No Rio de Janeiro, um estudo realizado junto à favela da Rocinha, também evidenciou a associação entre famílias mais pobres daquela comunidade e déficit estatural entre crianças menores de cinco anos5. Os autores utilizaram como indicador do nível socioeconômico um índice de "condições ambientais", o qual incluía qualidade da habitação e os serviços públicos disponíveis (saneamento e água potável, energia elétrica e coleta de lixo).

Cabe aqui uma comparação muito ilustrativa de nossos achados com aqueles do estudo de Aerts (Tabela 4). Essa autora avaliou o estado nutricional de uma amostra representativa de crianças de 0 a 59 meses de todo o município de Porto Alegre9. Fica evidente que as crianças entre 1 e 5 anos da população urbana pobre estão em desvantagem, mostrando índices de desnutrição 2 a 3 maiores do que a média da população de todo o município de Porto Alegre.

A alta prevalência de retardo no crescimento (baixa estatura para a idade) indica que as crianças de nosso estudo apresentam basicamente um processo crônico de desnutrição.

Estamos conscientes de que somente uma mudança no modelo de desenvolvimento da sociedade garantirá a erradicação da desnutrição e uma melhora substancial da qualidade de vida da população brasileira. Até que as mudanças necessárias ocorram, é fundamental a priorização de grupos mais vulneráveis de uma população, como tentativa de minimizar os efeitos da iniqüidade social existente em nosso país. O instrumento de medição de nível de pobreza testado mostrou-se útil na identificação desses grupos.

Referências bibliográficas

  1. Guimarães JJL, Fischmann A. Desigualdade na mortalidade infantil entre favelados e não favelados no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1980. Boll Of Sanit Panam 1986;101:19-35.
  2. Victora CG, Barros FC, Vaughan JP (eds). Epidemiologia da desigualdade: um estudo longitudinal de 6.000 crianças brasileiras. São Paulo: HUCITEC, 1988.
  3. Monteiro CA, Benicio MHDA, Zuñiga HPP et al. Estudo das condições de saúde das crianças do município de São Paulo (SP), Brasil, 1984-85. II - Antropometria nutricional. Rev Saúde Públ 1986;20:446-53.
  4. Batrouni L, Pérez-Gil SE, Rivera J et al. Diferenciación de la situacion nutricional del preescolar, según niveles socioeconomicos en una zona marginal. Arch Latinoamer Nutr 1985;4:565-76.
  5. Reichenheim ME, Harpham T. Perfil intracomunitário da deficiência nutricional: estudo de crianças abaixo de 5 anos numa comunidade de baixa renda do Rio de Janeiro (Brasil). Rev Saúde Públ 1990;24:69-79.
  6. Aerts DRGC. O Retardo no Crescimento: O Caso de Porto Alegre [Tese]. Porto Alegre: UFRGS, 1997.153p.
  7. Alvarez ML, Wurgaft F, Salazr ME. Mediciones del nivel socioeconómico bajo urbano en familias con lactante desnutrido. Arch Latinoamer Nutr 1982;32:650-62.
  8. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. Metodologia do Censo Demográfico de 1980. Rio de Janeiro: IBGE, 1983.
  9. Aertz DRGC. Estudo do Estado Nutricional das Crianças de Porto Alegre: Uma Contribuição ao Entendimento do Processo da Desnutrição [Dissertação]. Porto Alegre: UFRGS, 1992.280p.

Roberto M.S. Issler* e Elsa R. J. Giugliani*
elsag[arroba]terra.com.br

* Professores do Departamento de Pediatria e Puericultura, Faculdade de Medicina, UFRGS.

Endereço para correspondência: Prof. Roberto M.S. Issler Departamento de Pediatria, FAMED, UFRGS Hospital de Clínicas de Porto Alegre Ramiro Barcelos, 2350 - 10º andar 90035-003 - Porto Alegre, RS, Brasil Fone: (051) 3316699 - ramal 2243 - Fax: (051) 3328324.



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