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Educação Ambiental e o pensamento complexo (página 2)

Ana Braga de Lacerda

Partindo do pressuposto de que a Educação Ambiental tem-se configurado como uma dimensão educativa que abarca características muito próprias, relacionadas com a reflexão e com a transformação das relações entre sociedade e natureza, vislumbrei a possibilidade de aproximação a um entendimento dessa questão. A partir daí, iniciei um processo de questionamento sobre as possíveis causas do afastamento entre os moradores e o Parque.

Desse processo, emergiram questões que contribuíram para o direcionamento da pesquisa, como: há algum espaço ou forma de organização nessas comunidades que revele algum interesse por questões ambientais? Que práticas discursivas perpassam o cotidiano das comunidades, no que se refere às questões socioambientais? Quais são os elementos históricos, mitos e lendas, ligados a elementos locais, que poderiam ser desencadeadores de significados para a região e para trabalhos em Educação Ambiental?

Tendo conseguido identificar algumas questões básicas que norteariam a investigação, precisava realizar algumas escolhas teórico-metodológicas que iriam fundamentar a pesquisa.

Escolhas teórico-metodológicas

Os questionamentos iniciais sobre as formas de organização e as práticas discursivas das comunidades apontaram uma necessidade de compreensão da trajetória das relações entre sociedade e natureza, que pudesse dar suporte para propostas de reversão desse quadro, isto é, que pudessem apontar a religação do que estava sendo constatado como separado, afastado, fragmentado.

Para isso, procurei dialogar com autores que pudessem contribuir para uma fundamentação acerca das dinámicas socioambientais em seus aspectos históricos, filosóficos, ambientais, sociais, culturais, enfim, procurei perceber a multirreferencialidade e a complexidade que essas questões pressupunham.

Além da fundamentação teórica, percebi que seria imprescindível uma maior proximidade com a dinámica das comunidades. Por isso, considero ter sido de fundamental importáncia para a pesquisa, a aproximação a um fórum local de discussões e deliberações, que pressupõe a participação da sociedade civil, do Poder Público e do setor empresarial, denominado Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri(2). Essa participação possibilitou uma maior integração ao grupo e às suas narrativas, principalmente àqueles participantes que constituem a representação da sociedade civil. Dessa forma, identifiquei o ámbito do Fórum como bastante significativo para a realização da pesquisa, pois se configurava como um espaço de trocas, de aprendizagem e de crescimento coletivo.

Assim, os direcionamentos teórico-metodológicos da pesquisa foram sendo delineados pouco a pouco, pois, segundo Morin, "O método só pode se construir durante a pesquisa; ele só pode emanar e se formular depois, no momento em que o termo transforma-se em um novo ponto de partida, desta vez, dotado de método" (MORIN, 2003, p. 36).

Em sintonia com esta perspectiva levantada por Morin, meus questionamentos sugeriram uma identificação com as metodologias da Pesquisa Participante, da Pesquisa Ação (BRANDÃO, 1999) e da História Oral (THOMPSON, 1992; BOSI, 2003), pois elas prevêem o envolvimento efetivo dos sujeitos, que participarão da dinámica da pesquisa.

Tendo em vista a perspectiva de aproximação a uma realidade complexa, procurei dialogar, ao longo de toda a pesquisa, com autores que concebem a realidade a partir do pensamento complexo (MORIN, 2002a, 2002b, 2003, 2004, 2005a, 2005b; CIURANA, 2003; BINDé, 2003), que estão focados no cotidiano de sujeitos na contemporaneidade (HALL, 2005; AUGÈ, 1994; MAFFESOLI, 2004; CERTEAU, 1994; GIDDENS, 1991), que buscam uma compreensão da Educação Ambiental como enraizada em contextos econômicos, sociais e culturais (LOUREIRO, 2002, 2004, 2006; TRISTÃO, 2004, 2005; GRÜN, 1996; CARVALHO, 2002, 2004; TOZONI-REIS, 2004, 2005), que ousam sondar as manifestações do imaginário (DURAND, 1997; CORBIN, 1989; JUNG, 2002; GALVANI, 2002; PAUL, 2002b), que discutem as questões relativas às comunidades do entorno de unidades de conservação (DIEGUES, 2000a, 2000b, 2001; LOUREIRO, 2005), que vislumbram uma globalização alternativa (SANTOS, 2005; GARCIA CANCLINI, 2003; TORRES, 2001) e que vêem na transdisciplinaridade uma possibilidade de compreensão e atuação em realidades complexas (NICOLESCU, 1999; PAUL, 1998, 2002a; GALVANI, 2002; SOMMERMAN, 2006).

Junções e disjunções em muitas dimensões

A busca por respostas para os questionamentos levantados sobre as origens do distanciamento entre a sociedade e a natureza suscitou uma retomada histórica da trajetória socioambiental da região a fim de tentar identificar possíveis pistas desse afastamento, dessa separação entre comunidades e natureza. 

Pareceu-me importante também identificar a trajetória desse agravamento de fragmentações em uma dimensão mais abrangente, que compreendesse um pouco a própria trajetória das sociedades ocidentais contemporáneas e da ciência moderna, com suas bases econômicas, filosóficas e epistemológicas, constituindo o que arriscaria a definir como a racionalidade da fragmentação. Digo agravamento, pois, em alguma proporção, a disjunção evidencia a multiplicidade de existências e possibilita o afloramento de relações complementares, de troca, de disputa, de cooperação. 

Assim, uma visão idealizada de uma condição harmônica entre sociedade e natureza, sem conflitos de interesses e contradições, não me parecia ser possível, entretanto, tinha a compreensão de que, dependendo do nível de disjunção, as relações socioambientais podem começar a ficar comprometidas, como as verificadas em fortes impactos ambientais causados por grandes empreendimentos, principalmente portuários, na região ou a crise ética, como a apontada por Morin (2005a, p. 29), em que acontece uma "[...] crise da religação indivíduo/sociedade/espécie".

Se formos tentar localizar, em um tempo histórico, um início para esse conjunto de visões de mundo que priorizam a fragmentação, podemos, como Santos (1990, p. 10-11), identificar que:  

O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constitui-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes.

Dessa forma, em uma escala crescente, foi-se criando um abismo entre os diversos saberes, principalmente entre o saber considerado científico, fiel a esse modelo global de racionalidade científica, e o senso comum. Com a adesão das ciências humanas e sociais ao modelo de racionalidade científica, o senso comum e as conquistas da práxis coletiva ficaram ainda mais isolados.

Entretanto, segundo Santos (1990), é o senso comum que reúne as qualidades de criatividade, praticidade, proximidade às experiências de vida e aos discursos, indisciplinaridade e o privilégio à ação. Essas qualidades do senso comum aproximam-se de uma visão mais inclusiva e complexa, contrapondo-se àquela que privilegia aspectos mais mensuráveis e quantitativos. 

Como conseqüência dessa valorização desproporcional conferida ao método científico, ao quantificável, ao específico, ao especializado, ao particular e ao individual, há a desvalorização do conhecimento popular ou tradicional e dos aspectos comunitários e coletivos, marcando a expansão do paradigma hegemônico moderno. Nesse sentido, também no tocante a áreas naturais protegidas, Diegues (2000a, p.71) ressalta:

Essas reflexões são importantes também no que se refere à contraposição entre o saber e a técnica tradicionais e a ciência utilizada para a conservação das áreas protegidas. Muito raramente, esse vasto conhecimento tradicional e, sobretudo, as técnicas de manejo patrimoniais, são reconhecidos como adequados para a administração dos recursos naturais.

Paralelo a este aprofundamento científico e tecnológico, em virtude da necessidade de conhecimentos cada vez mais específicos, as áreas do conhecimento fragmentaram-se em inúmeras especialidades e disciplinas. Segundo Morin (2005a, p. 72):

[...] a hiperespecialização contribui fortemente para a perda da visão ou concepção de conjunto, pois os espíritos fechados em suas disciplinas não podem captar os vínculos de solidariedade que unem os conhecimentos. Um pensamento cego ao global não pode captar aquilo que une os elementos separados.

Então, a não consideração da interdependência entre o todo e as partes, a excessiva fragmentação do conhecimento e das práticas profissionais e o desenvolvimento desenfreado, realizados sob a ótica reducionista, acirraram as contradições existentes na própria constituição do paradigma hegemônico da modernidade.

Esse fato se traduz no agravamento de conflitos e na constatação, mais fortemente a partir de meados do século XX, de que os problemas que afligiam a humanidade, como a fome, as guerras, a pobreza e a degradação ambiental, estão, cada vez mais, se aprofundando, ao invés de estarem sendo solucionados.  São essas conseqüências do desenvolvimento inconseqüente, com níveis insustentáveis de degradação socioambiental que chamam a atenção do mundo para a necessidade de mudança:

Cabe ressaltar aqui que o agravamento de impactos ambientais apresenta uma paradoxal igualdade na desigualdade. Igualdade, pois seus efeitos, muitas vezes, não respeitam fronteiras geográficas e sociais, como se observa nos grandes desastres ecológicos, entretanto, tem sido verificado que, na maioria dos casos, os efeitos cotidianos da crise ambiental atingem, de forma mais intensa, as populações mais carentes, que vivem em condições precárias em relação ao saneamento básico, à exposição a poluentes, ao contato com agrotóxicos, entre outros.

Além disso, o impacto gerado pelos seres humanos também é comprovadamente diferenciado, apresentando uma relação entre o nível de desenvolvimento e o acesso aos bens de consumo, podendo determinados indivíduos de sociedades industrializadas gerar dezenas de vezes mais resíduos e outros impactos ao ambiente do que aqueles provenientes de sociedades mais carente ou com menos acesso às diversas formas de energia e consumo.

Globalização: unificadora ou desagregadora?

Aparentemente, o fenômeno da globalização poderia sugerir o movimento de junção, afinal pressupõe a superação das tradicionais separações nacionais. Talvez essa interligação entre nações pudesse suscitar uma religação. Entretanto o que poderia ser visto como unificador, apresenta-se como desagregador:

Ao mesmo tempo em que é concebida como expansão dos mercados e, portanto, da potencialidade econômica das sociedades, a globalização reduz a capacidade de ação dos Estados nacionais, dos partidos, dos sindicatos e dos atores políticos clássicos em geral. Produz mais intercámbio transnacional e deixa cambaleante a segurança que dava o fato de pertencer a uma nação (CARCÍA CANCLINI, 2003, p. 19).

A globalização, apresentando-se como aparentemente agregadora, mas realizando-se como desagregadora, faz emergir a questão da aparência nas sociedades pós-modernas, pois é, fortemente, a incorporação de valores presentes no imaginário humano, como a liberdade de ação, a liberdade de consumo, o acesso à tecnologia de ponta, a liberdade em relação às responsabilidades comunitárias, enfim, o empoderamento imaginário dos sujeitos, que cria a aura hegemônica da expansão transnacional.

Para Santos (2002, p. 33), "[...] a substituição relativa da provisão de bens e serviços pelo mercado de bens e serviços cria campos de escolha que facilmente se confundem com exercícios de autonomia e libertação de desejos".

Porém, essas disjunções verificadas nas sociedades globalizadas devem incorporar possíveis junções. Dessa desordem verificada nas comunidades locais, provavelmente emerge alguma ordem, tendo em vista as propriedades emergentes dos sistemas complexos. Essas emergências surgem como um dado novo, como um acontecimento, não redutível às suas partes (MORIN, 2003, p. 137), isto é, nas comunidades impactadas pelas conseqüências da expansão da força transnacional, podem surgir acontecimentos que não são explicados apenas por aspectos isolados dessas comunidades, como a soma de seus moradores.

 Nesse sentido, durante a pesquisa, procurei identificar essas emergências, esses sinais de ordem na aparente desordem do movimento hegemônico de fragmentação. Dessa forma, um movimento dialógico também pode emergir a partir da consideração da coexistência de fragmentação e religação.

Educação Ambiental e a teoria da complexidade

A possibilidade de que sejam admitidos, nas dinámicas socioambientais, aspectos antagônicos e complementares ao mesmo tempo torna-se possível a partir do pensamento complexo, que tem sido fortemente discutido por Edgar Morin, com ênfase em temas como a natureza, a vida, o conhecimento, a educação, as idéias, a humanidade e a ética. Também, com base no pensamento complexo, a Educação Ambiental pode constituir-se de forma mais inclusiva ao tentar dialogar e religar múltiplas visões, realidades, saberes e percepções.

Segundo Morin (2005b), são três os princípios fundadores da teoria da complexidade: o princípio dialógico, o princípio da recursão organizacional e o princípio hologramático.

O princípio dialógico é aquele que possibilita a manutenção da dualidade no seio da unidade, associando dois termos, simultaneamente complementares e antagônicos.

Assim, a partir do princípio dialógico, na questão da disjunção das comunidades em relação ao Parque, talvez possam coexistir algumas junções, isto é, pontos de confluência entre essas comunidades e o Parque, que possam contribuir como pontos potenciais para um trabalho de Educação Ambiental.

O princípio da recursão organizacional dinamiza as relações de causa e efeito, ao admitir que produtos e efeitos possam vir a se transformar nas causas que os produzem, realimentando o sistema (MORIN, 2005b). Nesse sentido, a questão da disjunção entre comunidade e Parque pode ser recursiva, isto é, estar ligada a um circuito em que as pessoas não freqüentam o Parque, pois estão afastadas dele e fiquem cada vez mais afastadas dele por não o freqüentarem. Apesar de essa constatação não se bastar e sugerir um aprofundamento nas causas desencadeadoras desse processo de disjunção, a verificação dessa recursão é interessante, quando se pretende redirecionar o processo para uma possível religação.

Dessa forma, a introdução de um elemento novo, como a criação de condições, por meio de trabalhos em Educação Ambiental, para que as pessoas comecem a ir ao Parque, talvez possa iniciar um processo recursivo em que a ida ao Parque favoreça uma aproximação a ele.

A partir do princípio hologramático, que prevê que não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte: "O mundo está no interior de nossa mente, que está no interior do mundo" (MORIN, 2005b, p. 43), talvez possamos transitar entre as dimensões bairro/região/município/estado/país/continente/planeta ou indivíduo/sociedade/espécie/, sob a perspectiva da interdependência e, então, tentar entender as disjunções verificadas nas dimensões mais locais como interdependentes em relação a um contexto mais amplo, como sociedades e planeta e, de uma forma recursiva, entender também o potencial de interferência das relações mais locais nas questões mais globais.

Em Educação Ambiental, a necessidade de uma abertura epistemológica é também evidente e impregna a própria gênese dessa dimensão da educação. Nesse sentido, para Tristão (2004, p. 108),

O cenário epistemológico da educação ambiental sustenta-se em um conhecimento aberto, criativo, processual e reflexivo, associado à prática social. Não reconhece verdades preestabelecidas nem a divisão do conhecimento por áreas fechadas por séries. é entendido a partir de uma articulação complexa e multirreferencial.   

Dentro do cenário epistemológico da educação ambiental, as tendências inter, multi e transdisciplinares apresentam-se como caminhos que ganham força.

Apesar de esses caminhos se fundarem em concepções mais integradoras dos conhecimentos, eles apresentam-se como opções diferenciadas e, muitas vezes, polissêmicas, em relação aos níveis de integração.

Durante a pesquisa, a necessidade de integrar diversas áreas esteve presente em todos os momentos, pois ela foi realizada em meio à dinámica viva e complexa da organização social, em que as fronteiras disciplinares não estão tão marcadas, quanto o observado no ámbito escolar. As situações das quais participei, que envolviam a necessidade de aprofundamento em questões socioambientais e a tomada de posição e atitudes coletivas, diante dos desafios, mostraram-se permeadas por diversos campos como o jurídico, o econômico, o ambiental, o social, o cultural. Entretanto envolviam também diversos níveis de realidade, como o trabalho com teorias e conceitos, as práticas e o imaginário. Essa qualidade diferenciada de necessidade de tránsito não apenas em áreas diversas, mas em níveis de realidade diversos, suscitou a busca de um caminho que estivesse não apenas entre disciplinas, mas através e além dessas.

Dessa forma, a abordagem transdisciplinar, considerando os diversos níveis de realidade, mostra-se mais efetiva para lidar com sistemas complexos, como os verificados em realidades escolares e comunitárias.

Partindo desses pressupostos, procurei, na pesquisa, transitar por esses níveis de realidade, buscando, em um nível conceitual, embasar-me na teoria da complexidade, em um nível prático, integrar-me à dinámica do Fórum; e, em um nível imaginário, investigar elementos do imaginário local, pela reunião de histórias locais.

Com o objetivo de tentar captar as práticas discursivas dos moradores, contei, além do convívio constante, com entrevistas em que solicitava a eles que contassem um pouco a história do ambiente onde moram.

A utilização de entrevistas foi um componente importante de aproximação aos repertórios locais em um momento específico e especial, em que os entrevistados se sentiram valorizados com a sua contribuição. Segundo Spink, as entrevistas constituem-se em um instrumento que possibilita a ruptura com o habitual:

                Usualmente, é pela ruptura com o habitual que se torna possível dar visibilidade aos sentidos. é essa, precisamente, uma das estratégias centrais da pesquisa social. Por exemplo, numa entrevista, as perguntas tendem a focalizar um ou mais temas que, para os entrevistados, talvez nunca tenham sido alvo de reflexões, podendo gerar práticas discursivas diversas, não diretamente associadas ao tema originalmente proposto. Estamos, a todo momento, em nossas pesquisas, convidando os participantes à produção de sentidos (SPINK, 2000, p. 45).

Dessa forma, os registros das práticas discursivas possibilitaram a emersão de repertórios interpretativos relativos às junções e disjunções locais e à temática ambiental, pois "A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social" (BAKHTIN, 2002, p. 36).

Um pressuposto importante no momento das entrevistas foi a compreensão da importáncia da interação entre os interlocutores. Dessa forma, a minha presença, como pesquisadora e entrevistadora, foi considerada como parte do processo, apesar de o foco da análise direcionar-se aos sujeitos entrevistados, pois, segundo Bakhtin (2002, p.113), toda palavra "[...] constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte."

Como procurei não direcionar muito as entrevistas, as histórias variaram em suas formas. Algumas se detiveram mais a relatos da trajetória histórica e de atividades do lugar, algumas centraram-se em lendas e tradições e outras emergiram espontaneamente na ocasião da entrevista, com poesia e metáforas.

Nesse sentido, Canclini (2003, p. 48) afirma:

[...] narrar histórias em tempos globalizados, mesmo que seja a própria, a do lugar em que se nasceu ou se vive, é falar para outros, não apenas contar o que existe, mas também imaginá-lo fora de si. Também por isso ganham importáncia as metáforas, que explicam o significado das coisas por comparação com o diferente.

Com base nas reflexões sobre junções e disjunções, sobre fragmentação e religação, sobre o global e o local, procurei identificar em que esses relatos revelavam se essas questões estavam ou não presentes nas práticas discursivas dos sujeitos da pesquisa.

Considerando o princípio dialógico do pensamento complexo, evitei polarizar essas categorias como antagônicas fixas. Em relação ao princípio recursivo, procurei verificar as relações de causa e efeito narradas pelos sujeitos, como passíveis de serem recursivas, isto é, produtos poderem transformar-se em possíveis causas e, quanto ao princípio hologramático, busquei os reflexos de dimensões mais locais em dimensões mais amplas e a presença de questões mais gerais em aspectos particulares. Canclini (2003, p. 32) discute este tránsito entre dimensões, quando trata da globalização:

[...] os relatos enunciados por atores locais dizem mais se nos perguntarmos como falam, através desses dramas pessoais, os grandes movimentos da globalização e os discursos coletivos que estabelecem as regras atuais da produção e as modas do consumo.

Outro aspecto que considerei relevante foi a identificação de elementos do imaginário, ou seja, mitos, lendas, símbolos, que pudessem apontar possíveis caminhos de religação.

Em relação às lendas, Cintra (2002, p. 96) destaca:

As lendas podem ser, dentre vários outros, um instrumento para conhecer e refletir mais sobre essa realidade em que vivemos, elas podem despertar o interesse e a motivação para desenvolver uma investigação mais profunda, da cidade ou região enfocadas, incluindo o estudo dos aspectos geográficos, econômicos, históricos e culturais, a partir dos elementos trazidos pelas histórias.

Como forma de considerar as reflexões a partir do pensamento complexo e com uma abordagem transdisciplinar, procurei identificar possibilidade para a Educação Ambiental, isto é, possibilidades de religação nas dimensões pessoal, social e antropológica.

Histórias da Bacia do Rio Aribiri

As Histórias da Bacia do Rio Aribiri tiveram como base as entrevistas realizadas com seis moradores da região que participam do Fórum.

As entrevistas foram adaptadas e transformadas em 11 histórias locais, que estão divididas entre aquelas que contam um pouco da história do ambiente e da organização social local; as que se apresentam na forma de parábolas e que trazem ensinamentos utilizando metáforas sobre participação e interdependência entre as pessoas e uma lenda local. As histórias acabaram sendo batizadas de "causos" e hoje já começam a fazer parte de materiais impressos da região, como o informativo do Fórum e o catálogo de entidades da região.

Para a análise das histórias, busquei observar os seguintes aspectos temáticos:

·        junções e disjunções socioambientais;

·        elementos do imaginário; e

·        possibilidades para a Educação Ambiental.

Esse recorte temático foi realizado com o intuito de aprofundar as questões discutidas ao longo da pesquisa, mas revela-se, na prática, inserido em um contexto inter-relacionado. As junções e disjunções socioambientais relacionam-se com as reflexões teóricas levantadas ao longo da pesquisa e inserem-se no nível de realidade epistemológico. Os elementos do imaginário fazem emergir elementos subjetivos, presentes nos elementos simbólicos individuais e coletivos e localizam-se no nível de realidade do imaginário. As possibilidades para a Educação Ambiental trazem aspectos de ordem prática, localizadas no nível prático, mas também promovem a interação entre os três níveis, que são indissociáveis.

A escolha pela reflexão temática partiu do pressuposto de que, se fragmentasse minhas reflexões em categorias muito rígidas, buscando comprovar hipóteses já enunciadas, estaria incorrendo no mesmo reducionismo que identifico como dificultador de religações. Explica Santos (2002, p.31):

O conhecimento-emancipação não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de suporte epistemológico às práticas emancipatórias, todas elas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis quando ligadas em rede.

Com esta experiência de pesquisa transdisciplinar, pude confirmar a necessidade de formas mais abrangentes no trato de questões complexas, como as do ámbito socioambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fluxo recursivo entre a teoria da complexidade e a dinámica das comunidades possibilitou o tránsito contínuo entre teoria e prática, favorecendo uma compreensão mais abrangente da realidade investigada. Dessa forma, o princípio dialógico emerge da constatação da multiplicidade de realidades e percepções coexistindo, em uma dinámica de conflitos e de solidariedade.

O princípio da recursão organizacional está presente nas narrativas, pois, a partir da divulgação das histórias na região, os autores começam a estabelecer uma relação com seus leitores. Essa relação recursiva já pode ser percebida, isto é, os sujeitos produzem as histórias, que são lidas por eles mesmos e por outros sujeitos, que passam a reconhecer no seu lugar e no seu repertório, algo importante. Este movimento gera a vontade de criar e descobrir novas histórias, que realimentarão esse circuito virtuoso.

Também o princípio hologramático emerge da constatação dos reflexos da dimensão social fragmentada, na realidade local. Assim, pude identificar a presença de dimensões mais abrangentes em dimensões locais, como o todo nas partes, não apenas no tocante a disjunções, mas também no que concerne a junções, por meio, por exemplo, do movimento que começa a permear os espaços locais, impulsionando-os para novas lógicas de religação, pela cooperação e solidariedade, levando a influência das partes ao todo.

O Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri configurou-se como um dos espaços da região, em que questões socioambientais locais podem ser abordadas de forma transdisciplinar e encaminhadas coletivamente.

As entrevistas realizadas com os sujeitos da pesquisa revelaram práticas discursivas em que as questões socioambientais estão plenamente presentes e permeadas por muitas áreas do conhecimento, não possibilitando uma fragmentação direcionada apenas para questões ambientais, mas demandando abordagens inclusivas, como a do pensamento complexo e da transdisciplinaridade.

As narrativas dos sujeitos da pesquisa fizeram emergir elementos ricos em aspectos históricos, culturais e imaginários, possibilitando a criação de um repertório inicial local, que poderá ser acrescido de muitos outros estudos e contribuições, como a da investigação das tradições locais perdidas.

Os elementos levantados nos relatos, que evidenciam a trajetória de fragmentação local, mas que também dão visibilidade ao potencial de religação entre sociedade e natureza presente nas comunidades, podem ser apresentados em outros contextos, a fim de fortalecerem abordagens que favoreçam o protagonismo comunitário e a valorização dos repertórios e das identidades locais, pois, segundo Santos (1990), o sentido de tradução contido no paradigma emergente incentiva os conceitos e teorias, desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem.

Como outros possíveis desdobramentos da pesquisa, identifico: a elaboração de estratégias participativas na condução da gestão do Parque; maior integração entre os espaços de aprendizagem locais; produção de materiais que considerem as perspectivas e necessidades das comunidades; ações locais e regionais de educação, conservação e recuperação ambiental, enfim, não posso prever todas as vertentes que a pesquisa criará, mas posso verificar suas potencialidades, que, a meu ver, são muito positivas.

Dessa forma, o pensamento complexo revelou-se como uma abordagem promissora à busca de caminhos de religação entre sociedade e natureza, em direção à vida que há dentro e fora dos limites do Parque da Manteigueira.

(1) Parque Natural Municipal Morro da Manteigueira, localizado ao norte do município de Vila Velha, ES, às margens do canal da Baía de Vitória, ES, na foz do Rio Aribiri. O Parque será denominado, ao longo deste trabalho, como Parque da Manteigueira ou, simplesmente, Parque.

(2)  O Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri foi lançado em 03 de abril de 2004 e é definido por seus participantes como: "Espaço democrático de debate e deliberação das ações para o desenvolvimento sustentável da Região da Bacia do Rio Aribiri". Ao longo deste trabalho poderá ser denominado apenas pelo termo "Fórum"

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Autor:

Ana Braga de Lacerda

ana.lacerda[arroba]globo.com

Mestrada em Educação

Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória



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