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A função judicante do Estado e a real utilidade do instrumento processual (página 2)

Suzana J. de Oliveira Carmo


Objetivamente, ao falarmos de sociedade, desde logo, e necessariamente, nos vem á mente a idéia de um grupo de indivíduos, agrupados com a finalidade de sobrevivência (motivo certo) e propósito de expansão cultural (finalidade comum); organizados no que tange ás instituições e regramento de conduta, possuidores de direitos e liberdades garantidos, bem como limitados por deveres e obrigações contrapostos (resultado útil). E toda esta simplicidade retrata o fenômeno ao qual chamamos socialização, ou seja, participação em entidade coletiva e organizada, onde a permanência constitui aceitação aos objetivos comuns, e o desempenho do papel adequado, sendo este prescrito por normas sociais, culturais ou jurídicas preestabelecidas.

Se de tal modo, sabemos o que é a sociedade e os liames das funções estatais, por conseguinte, nos parece claro também, quais são os verdadeiros objetivos insertos no processo. O processo infere-se ao Estado, tanto que, quanto mais é fortalecido o Estado, maior a imposição de regras regulamentadoras e, é como se a própria sociedade não permitisse a existência de um Estado, tão-somente, espectador das controvérsias entre os particulares. Razão pela qual, a função judicante no Estado moderno se constitui como garantia do devido processo legal e princípios fundamentais. Estabelece requisitos de forma para as decisões, concede garantias salvaguardadas aos magistrados, em espécie de salvo-conduto ao livre convencimento, bem como, em contrapartida, faz com que o mesmo processo legal, por ele garantido, venha tornar-lo intocável em seus próprios preceitos, pois, é a legalidade processual que garante ao Estado sua legitimidade.

Ressaltando que, nem sempre a idéia de legitimidade esteja relacionada com justiça, tampouco, com Estado Democrático de Direito; legitimidade pode esboçar uma representação circunstancial, o que significa dizer que, num dado momento, uma certa ordem pode estar embasada em algo que lhe sirva de sustentação e permanência. Tornando-se, portanto, legítima diante destes aspectos instantâneos ou imediatos. Contudo, abrimos um aparte ao pensamento de Rui Barbosa, com o qual compartilhamos opinião: "Os interesses da alta política, por mais altos que sejam, não derrogam a constituição, embora, possam dar caráter de constitucionalidade a atos inconstitucionais".4

Portanto, já compreendemos que o Estado possui personalidade, e que esta personalidade jurídica lhe é atribuída em razão e na proporção de sua soberania e autodeterminação diante de seus pares, conforme lhe confere o Direito Público Internacional. Assim, possuidor de personalidade jurídica e capacidade, pode assim, ser suscetível de direitos e obrigações. E, como todo ente que possui personalidade, em conseqüência, possui também vontade e interesses próprios, exercitáveis através de seus órgãos e do sistema jurídico estabelecido.

Dentro desta realidade, somos também sabedores de que uma das funções primordiais do Estado surge da subdivisão de seu poder uno; que é a jurisdicional, a par da executiva e legislativa. E, embora, nenhuma delas seja de somenos importância diante das outras, é certo também, que a jurisdicional, de certo modo, é a mais emblemática do princípio democrático, ou seja, os princípios e garantias processuais e que fazem viger e vigorar a legalidade geral. E este veículo que conduz o sistema de legalidade imperativa, é a efetividade do elemento estrutural da jurisdição, o processo.

E, embora o Estado e sua legitimidade estejam voltados á ciência política, e, não obstante, possam ser analisados sob os holofotes de diversos e distintos saberes, porém, nossa intenção concentra-se em compreende-lo tão-somente no cerne de sua finalidade e objetivos, conhecer seus mecanismos de sustentação. Para tanto, seguramente, apontamos que não há organização social sem governo (forma de organizar internamente os assuntos sociais), não há governo sem regras (autoridade-governo e norma-coerção), não há regras sem que haja aceitação e consenso geral (seres humanos só sobrevivem em sociedade e necessitam da cooperação e auxílio dos demais de sua espécie), e este consenso geral é resultado de uma evolução social (complexo dos feitos empreendidos e conquistados culturalmente pela humanidade).

Para falarmos do processo, entendendo-o como um instituto instrumental, sustentáculo de uma relação jurídica interpessoal, inicialmente, de dois sujeitos e, entre eles, há uma pretensão resistida que será exposta a um terceiro (o juiz), a quem incumbe o papel de Estado pacificador, que aplicando, via de regra, o direito positivo, soluciona o conflito. Observamos, portanto, que o Estado tem dentro do processo uma vontade (tendência ao bem conhecido pela razão5 ), pois, a tutela jurisdicional está sob a égide teleológica da finalidade, e ter uma finalidade implica em ter um interesse em um desfecho "justo" aos fatos debatidos e materializados no corpo dos autos.

A partir deste ponto, começamos a tratar de um das condições da ação, que o interesse de agir, que como demonstrado, dentro da estrutura angular do processo, todas as partes integrantes possuem de certo modo interesse de agir. Até mesmo o Estado de Direito possui interesse e vontade, e através de sua personificação na pessoa física do juiz, via da entrega da tutela estatal, consegue concretizar o justo e alcançar o efeito pan-processual do bem comum. Mas, quando afirmamos que o Estado-juiz tem vontade e interesse próprios, bem como finalidade específica, não significa dizer que, esta vontade e interesse sejam tendenciosos ou pré-concebidos a satisfazerem as pretensões dispostas entre o autor e o réu de um processo.

E neste sentido, nos descreve Carnelutti:

"A capacidade de um bem para satisfazer uma necessidade é a sua utilidade. A relação entre o ente que experimenta a necessidade e o ente que é capaz de a satisfazer é o interesse. O interesse é, pois, a utilidade específica de um ente para outro ente. (...) Um ente é objeto de interesse na medida em que uma pessoa pense que lhe possa servir; do contrário, é indiferente. Daqui se deduz que pode haver interesse não apenas em ordem a uma necessidade presente, mas também em ordem a uma necessidade futura. E a existência da necessidade pode resultar não só de uma sensação como de uma dedução. (...) é esta a noção de interesse que deve ser empregue na construção da teoria do direito".6

Segundo Flávio Luiz Yarshell a tutela estatal se estende além, e não apenas em favor da parte em relação ao adversário, mas inclusive em favor da parte em confronto com o próprio Estado, que exerce o Poder.7

E, neste sentido, Miguel Reale nos esclarece, trazendo á evidência no que consiste este "desejo", este "interesse" do Estado-juiz, e que o fazem cumprir no processo a finalidade da justiça:

"A justiça é vista como inclinação, tendência, forma de querer, como algo, em suma, que está no homem mesmo antes de ser realizar a sociedade. Se o homem age, no entanto, segundo a justiça, obedecendo áquele impulso subjetivo, instaura uma dada ordem social, uma ordenação de convivência. Também a essa ordenação social por ele objetivada se dá o nome de justiça ou de justo. (...) Se afirmamos que o justo é a realização do bem comum ou, por outras palavras, que é o bem enquanto fim intersubjetivo do agir (...) Daí a tese de que o Estado deve ter uma função primordial e essencial, que se esgotaria na tutela jurídica (...) Determinado o conceito de Direito e fixadas as notas que constituem a juridicidade, abre-se um segundo campo a indagação, relativo á atitude do jurista perante um "dever" a cumprir, em função de sua valoração do "agir". Se o Direito existe como realidade social, e se em razão desta se estabelecem juízes e tribunais, assim como se movimentam clientes e advogados, é sinal de que há fins a serem atingidos ou, pelo menos, fins que os homens julgam necessários a seu viver comum"8. (grifos nossos)

Logo, diante das questões abordadas, dos aspectos trazidos á discussão, nos convencemos de que, a tutela jurisdicional, que ratificamos, possui interesse e finalidade, deve percorrer um caminho que leve o processo de um modo específico á verdade.

E talvez, interessasse-nos aplicar ao direito processual como um todo, o Princípio da Primazia da Verdade, existente no Direito Processual do Trabalho. Porque, evidentemente diverso da verdade formal que abarca o processo civil e, distinta da verdade real que permeia o processo penal, a primazia da verdade nos dá a conceber uma verdade única e exclusiva, no âmbito civil, obrigação jurisdicional de o magistrado conhecer e considerar aquilo que não está nos autos, porém, é notório ao mundo moderno e a sociedade atual, e, em âmbito penal, abrir ao órgão julgador a possibilidade de conhecer no processo sua real necessidade e na sanção penal uma maior utilidade e eficácia, podendo, inclusive considerar, sem medo da modernidade lógica ou do óbvio inovador, questões probatórias ou circunstanciais não previstas em lei, tais como: a prescrição virtual ou a regressão hipnótica como meio hábil para apuração dos fatos ocorridos.

Concluímos nosso trabalho, lançando mão de duas assertivas, a primeira, de Regis Fernandes de Oliveira:

"Deve o juiz transformar-se, porque transformada está a realidade e, quanto mais alterada, mais se altera a posição do magistrado. Ele não pode deixar de acompanhá-la, sob pena de ficar afastado da realidade que o cerca. Infeliz o juiz que não percebe que há vida além do processo".9

E, a segunda, de William Shakespeare: "Briga-se por uma palha, quando isto vale um princípio". Assim, ambas nos conscientizam de que, o direito, de certo modo, jamais extrairá de sua essência, aquilo que lhe dá contornos peculiares, ou seja, de ser ao homem um estado de luta permanente, e não de paz. Em suma, deixamos aqui, parcela de nosso empenho, vontade e força. Exaustos? Sim! Mas, não vencidos.

Notas de rodapé convertidas

1. Segundo Antônio Rulli Júnior: "A jurisdição é uma função do Estado e, normalmente, tem sido entregue a pessoa ou pessoas imparciais e independentes que se encarregam de efetivá-la; o direito de pacificar e harmonizar as relações sociais, dizendo a justiça, garantia de segurança jurídica, social e política".
2. LéVI-STRAUSS, C. "Aula Inaugural". In Alba Zaluar (org.). Desvendando Máscaras
Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. p. 215.
3 . Erich Heller ao comentar a obra de Kafka faz uma ilação á interpretação, trazendo á mostra um trecho introdutório da obra "Teoria das Cores", de Goethe: "O simples fato de olhar uma coisa resulta, gradualmente, em contemplação, a contemplação termina em pensamento, e este no estabelecimento de conexões; assim, pode-se afirmar que cada olhar atento lançado ao mundo é um ato de teorização".
4. Obras Completas, Vol. XXIV, Tomo III, p. 18.
5. JOLIVET, Régis. Vocabulário de Filosofia. Tradução: Gerardo Dantas Barreto, Rio de Janeiro: Agir, 1975.
6. CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Trad. Rodrigues Queiró. São Paulo: Saraiva, 1942. p. 79-80.
7. YARSHELL, Flávio L. Tutela Jurisdicional. São Paulo: Atlas, 199. p. 33.
8. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998. p. 272-293.
9. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. O Juiz na Sociedade Moderna. São Paulo: FTD, 1997. p. 82.

 

 

Autor:

Suzana J. de Oliveira Carmo

suzanajm[arroba]hotmail.com



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