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Isaiah Berlin, Liberdade e Democratismo (versão por rever) (página 2)

André Barata

Feita esta apresentação sumária, serão três os objectivos  a que nos propomos alcançar neste estudo:

      1. Reconhecer o alcance da crítica de Berlin a uma concepção da liberdade como libertação por um racionalismo compulsivo.

      2. Limitar o alcance da crítica, endereçada ao democratismo, e em particular a Rousseau, de que o problema do exercício da soberania, e seu controlo, seja por estes desprezado.

      3. Experimentar a pertinência da análise berliniana no nosso contexto epocal.

 

A reflexão berliniana sobre o conceito positivo de liberdade

            Para Berlin, há duas tradições constituídas em torno da interpretação do sentido da palavra "liberdade". Reassumindo uma distinção do liberalismo clássico, designadamente o de John Stuart Mill, são dois os conceitos de liberdade que Berlin expõe:

      - Por liberdade positiva entende o "ser livre para" agir, liberdade de cada um decidir do seu futuro, liberdade para agir com autonomia, isto é, dando-se a si mesmo a sua própria lei.

      - Por liberdade negativa entende o "ser livre de" se conformar ao que a esfera pública visa impor, ressalvando um espaço não público, insusceptível de interferência dos poderes públicos.

            Ambas estas formas de encarar a liberdade, se pensadas em termos estritamente conceptuais, não pressupõem, entre elas, nenhuma contrariedade. Com efeito, a liberdade negativa poderia ser pensada como um limite á liberdade positiva, de certo modo regulando o alcance desta, mas de forma alguma suprimindo-a. Já a liberdade positiva poderia ser pensada como princípio de acção, por assim dizer, que visasse o incremento quer de maiores espaços de liberdade negativa quer, pura e simplesmente, da sua salvaguarda.

            Porém, de um ponto de vista histórico - portanto, não conceptual - é sabido que ambos os conceitos de liberdade tenderam a divergir, disso resultando conflitos ideológicos evidentes no Séc. XX, dos quais Berlin foi, seguramente, testemunha privilegiada.

            Relativamente á liberdade negativa, Berlin começa por discutir um argumento de John Stuart Mill a favor de uma liberdade que fosse exclusivamente negativa. Tal argumento de Stuart Mill toma por premissa a seguinte ideia - Só poderá haver progresso civilizacional numa sociedade sob a condição de, nessa sociedade, os indivíduos poderem dispor de si mesmos no que, na sua conduta, apenas a eles disser respeito. Por essa razão, diz-nos Berlin, haveria que concluir que «a defesa da liberdade consiste na meta "negativa" de evitar a interferência.».[4]

            Berlin, porém, não aceita a premissa do argumento de Stuart Mill, contestando-a com o facto histórico, evidenciável, de que regimes com escassa liberdade negativa sustiveram, ainda assim, as características que Mill associou á ideia de progresso civilizacional. Assim, não seria, a seu ver, crível que a liberdade, designadamente a negativa, fosse realmente uma «condição necessária para o desenvolvimento do génio humano».[5]

            Pese embora esta crítica, quanto ao objectivo propriamente dito de Stuart Mill, Berlin manifesta uma clara concordância - o risco de uma "tirania das maiorias"[6] é, essencialmente, o mesmo risco do de qualquer outra tirania, a saber, o risco da supressão da liberdade negativa. Para Berlin, tratar-se-á, então, - em Dois conceitos de liberdade - de expor razões, necessariamente outras, para obter uma reformulação da posição de Stuart Mill. E fá-lo argumentando a favor da ideia de que a democracia é irrelevante para a liberdade negativa.      

            Com este propósito, Berlin começa por dissociar a noção de liberdade "negativa" do problema da fonte do poder. Naquela, o que está em causa, para Berlin, é simplesmente o controlo do poder, ou seja, do seu exercício, independentemente de qual seja a sua fonte, seja esta democrática, monárquica ou de qualquer outra natureza.

            De acordo com Berlin, tanto pode haver democracias com muito pouca liberdade negativa, como regimes despóticos que concedem maiores liberdades individuais.

            Por esta razão, resulta inequívoco aos olhos de Berlin que, apesar de não o parecer, "não existe nenhuma conexão necessária entre liberdade individual e regime democrático."[7] Desta forma, Berlin não só assume que as ideias de liberdade individual e soberania são manifestamente distintas como assume ainda poderem competir uma com a outra. Assim, tratando-se de questionar o modo como salvaguardar e consagrar a liberdade dos cidadãos, o problema não estará em determinar quem exerce a soberania, mas em determinar o alcance da soberania, e isto independentemente de quem a exerça.

Para defender estas teses, Berlin apoia-se explicitamente em Benjamin Constant, autor do influente contraste entre "liberdade dos Antigos" e "liberdade dos Modernos".[8] Segundo este autor, a questão está em recusar a ideia de soberania enquanto pensada como uma soberania ilimitada. Nas suas palavras: «Não é contra o braço que nos devemos rebelar, mas contra a arma. Há pesos demasiado pesados para a mão do homem.» [9]

            Neste sentido, nota Berlin, Constant só poderia contrapor-se a Rousseau e á sua teoria da Vontade Geral, como detentora absoluta da soberania:

Constant via em Rousseau o inimigo mais perigoso da liberdade individual, na medida em que declarara que "Ao entregar-me a todos, não me entrego a ninguém". Constant não podia entender por que razão, mesmo que o soberano seja "toda a gente", não vai oprimir um dos "membros" do seu eu indivisível, se assim decidir.[10]

            Se Berlin recusa, na esteira dos pensadores liberais do Séc. XIX, que haja uma "conexão necessária" entre liberdade negativa e regime democrático, é, porém, historicamente manifesta, para Berlin, uma relação entre o democratismo e um outro conceito de liberdade - o positivo. Resumindo-se o conceito negativo á satisfação do desejo de não-interferência, já o positivo prender-se-á com o desejo de auto-governo ou, ao menos, de participação na governação.

            Assim, é claro que este segundo conceito remete para a questão "Quem me governa?", privilegiando, pois, o problema da fonte do poder - justamente o problema crucial para o democratismo - em detrimento do do seu controlo. E esta afinidade explica a aproximação entre liberdade positiva e democratismo, muito em particular o rousseauniano. Nos termos de Constant, bem como de Berlin, seria inaceitável a posição de Rousseau de uma liberdade entendida como obediência ao interesse comum. Berlin fala mesmo em "desaforo" a respeito disso que seria, paradoxalmente, obrigar uma pessoa a ser livre. No limite, a "liberdade" de que fala Rousseau e a "liberdade" de que falam os liberais entram em conflito.

            Historicamente, mais em particular na própria História das Ideias, Berlin expõe usos subjugadores do conceito positivo de liberdade que vão muito além de Jean-Jacques Rousseau. Entre esses usos, pormenorizadamente descritos por Berlin, destaca-se aquele pelo qual a liberdade vem associada a um projecto de libertação pela razão. Trata-se de uma ideia reitora do racionalismo esclarecido, que Berlin faz remontar pelo menos a Espinosa e que resume da seguinte forma:

Aquilo que sabes, cuja necessidade compreendes - a necessidade racional - não podes querer que seja diferente, enquanto permaneceres racional.[11]

Mais em concreto, Berlin dirige a sua atenção crítica para a doutrina de que "o único método verdadeiro para alcançar a liberdade é, segundo nos dizem, o uso da razão crítica, da compreensão do que é necessário e do que é contingente."[12] Esta "compreensão do que é necessário e contingente" no que respeita ás relações políticas supõe o reconhecimento de que haja, em política, "verdades" como na química ou na física. Se houver qualquer coisa como verdades políticas, se tais "verdades" puderem ser escrutinadas mediante um método científico, então, não haverá razões para que não se considere como necessária a sua aceitação, mesmo legítima a sua aceitação por meios coercivos. A propósito disto, Berlin refere vários posicionamentos, dos quais destacamos dois particularmente evidentes. A posição de Fichte de que «Ninguém tem...direitos contra a razão»[13]. E também a de Auguste Comte, autor que «…perguntava por que razão, se o livre pensamento não é permitido na química nem na biologia, o havemos de autorizar na moral e na política.»[14]

O tipo de atitude que Berlin discerne aqui deixa-se, em suma, caricaturar da seguinte forma:

Só a verdade é libertadora e a única maneira de eu aprender a verdade é fazendo cegamente hoje o que tu, que a conheces, me ordenas ou me coages a fazer, com a firme convicção de que só assim alcançarei a tua visão clara e serei livre como tu. [15]

A afirmação de "verdades" políticas, bem como a expectativa de que haja uma identificação da razão com a liberdade - tendo sido essas ideias associadas historicamente ao conceito positivo de liberdade -, conduziram a um uso político da liberdade tirânico e monista. Ou seja, sob a capa de uma libertação pela razão, o conceito de liberdade positiva autoriza, de facto e de jure, a repressão sob a justificação de que a verdade liberta.

Concluindo esta secção, recapitulemos o argumento central de Berlin a favor da liberdade negativa e contra a ideia de uma libertação pela razão:

      1. Não existe uma conexão necessária entre liberdade negativa e regime democrático (aquela prende-se com a questão do exercício do poder, este não).

      2. Mas existe uma forte conexão entre democratismo e liberdade positiva (em virtude de partilharem o mesmo problema, saber quem governa). 

      3. Liberdade positiva e democratismo tenderam, historicamente, a assumir a forma de uma posição racionalista - a de «que a verdade liberta, mesmo aqueles que não a desejam por a ignorarem».

      4. Esta doutrina da libertação pela razão, com o seu carácter monista - verdade há só uma - e a sua força compulsiva, contradiz o desígnio da liberdade negativa.

      5. Logo, a salvaguarda das liberdades individuais face á tirania da maioria requer um pluralismo incompatível com a doutrina da libertação pela razão.

No que respeita ao democratismo promovido, se não mesmo inaugurado, por Rousseau, Berlin argumenta através dos seguintes passos:

      1. O democratismo rousseauniano sustenta uma soberania popular absoluta, ou seja, ilimitada.

      2. A salvaguarda da liberdade negativa implica a limitação da soberania.

      3. Assim, o facto de a soberania ser absoluta conflitua com a salvaguarda da liberdade negativa..

4. Além disso, a salvaguarda da liberdade negativa é indiferente ao facto de a soberania ser, ou não, popular.

      5. Logo, Rousseau não só não garante como ainda prejudica as condições para uma salvaguarda da liberdade negativa.

      6. Nestes termos, Rousseau substancia um pensamento político coercivo no que respeita ás liberdades individuais e, consequentemente, anti-liberal. 

Discussão da posição berliniana

Para proceder á discussão dos dois argumentos de Berlin, é essencial começar por clarificar a diferença entre o que são para o autor os enfoques democratista e liberal. Nesse sentido, assumiremos, na esteira de Berlin, o seguinte princípio de distinção: O democrata rejeita que o soberano não seja o povo; o liberal rejeita que o soberano seja absoluto.

é sobre esta assunção, já o expusemos atrás, que se apoia a tese de Berlin de que a preocupação democratista pouco ou nada tem que ver com a salvaguarda da liberdade negativa. Tratam de assuntos diferentes, podendo, nas suas respostas, tanto convergir como divergir. Procuraremos, em seguida, mostrar que se, por um lado, Berlin tem boas razões para recusar a existência de uma conexão necessária entre democratismo e liberdade negativa, vai, contudo, a nosso ver, longe de mais ao rejeitar qualquer espécie de conexão entre ambos. Por outras palavras, face ao posicionamento de Berlin, o nosso ponto de crítica estará em demarcar que uma coisa é afirmar a inexistência de uma conexão necessária entre liberdade individual (negativa) e regime democrático; e outra, bem diferente, é afirmar que um regime ser democrático seja irrelevante para a salvaguarda daquela liberdade.

No que respeita á inexistência de uma conexão necessária, tem-se que a soberania ser popular não é, de facto, condição suficiente, sequer necessária, para garantir a liberdade negativa. Nisto, a História tem dado razões de sobra a Berlin. Porém, daqui não se segue que não haja, ou não possa haver, conexão nenhuma entre essa espécie de soberania e tal garantia ou salvaguarda da liberdade negativa. Mais: não se segue uma refutação da ideia de que a garantia da liberdade negativa deva estar, pelo menos em termos conceptuais, contemplada numa soberania que seja realmente popular.

Uma boa maneira de enfrentar este primeiro problema é-nos proposta por Berlin sob a forma de uma questão sugestiva:

Por que razão nos havemos de preocupar entre ser esmagados por um governo popular ou por um monarca, ou até por um conjunto de leis opressivas?[16]

Por outras palavras, tratar-se-á de comparar, em abstracto, regimes sensivelmente equivalentes no que respeita á liberdade negativa, mas com diferenças no que respeita á liberdade positiva, para perguntar se esta diferença faz realmente diferença.

Considere-se assim a seguinte questão: entre dois regimes, ambos igualmente liberais ou ambos igualmente repressivos, mas em que num a soberania é popular ao passo que noutro não o é, preferir-se-á racionalmente qual? Do ponto de vista dos princípios, a resposta parece pouco discutível - preferir-se-á aquele cuja soberania seja popular pela simples razão de nele haver mais liberdade, liberdade para se participar, na qualidade de sujeito, no governo de que se é objecto, sem que, com isso, seja diminuída a liberalidade do regime. Não obstante, de um ponto de vista prático-histórico, ou mais experimentado, é bem provável que se prefira, em condições pouco liberais, justamente o regime menos democrático. Isto porque, enfrentado-se, em tais condições, a possibilidade de um derrube do regime, pode resultar efectivamente mais fácil destronar uma pessoa, ou poucas mais, do que todo um regime. Curiosamente, mesmo deste ponto de vista prático, Berlin concede que se possa preferir o regime de soberania popular:

É evidente que posso preferir ver-me despojado das minhas liberdades por uma assembleia, por uma família ou por uma classe de que sou uma minoria. Pode dar-me um dia a oportunidade de persuadir os outros a fazerem por mim aquilo a que sinto ter direito.[17]

Mas, detendo-nos na preferência contrária, ou seja, na não preferência pelo regime cuja soberania fosse popular - o que já considerámos bem provável -, importa notar que a ideia que rege esta avaliação pode ser lida ainda assim, quer em abstracto quer por recurso á experiência histórica (particularmente a do Séc. XX), como uma reivindicação de democratização, só que mais dificultada neste tipo de regime, o qual acaba, por isso mesmo, por ser preterido. Com efeito, se pode resultar mais difícil derrubar um regime repressivo pelo facto de assentar numa soberania popular, tal deve-se, não ao princípio democrático da soberania popular, mas á sua capacidade de tornar tal princípio inexpressivo através de uma total controlo da própria vida da esfera pública - daí a sua natureza totalitária. Ao contrário do tirano que não reconhece a soberania popular e, por isso, apenas reprime a reivindicação democrática, o poder político nas democracias totalitárias absorve, no articulado das suas disposições processuais, uma soberania popular que, não obstante, reconhece. A este propósito, é exemplar o padrão da contestação ás repúblicas populares do Séc. XX, no qual é recorrente a denúncia de inexpressividade das fontes populares, substituídas, quase sempre de forma repressiva, por um aparelho partidário, seus funcionários, seus directórios. De modo um pouco impressionista, mas nem por isso menos certeiro, não raras vezes se disse que as democracias populares só no papel foram democráticas. E ainda no mesmo registo, poder-se-ia afirmar que o maior adversário da democracia é a própria democracia, quando subvertida.

Com estas considerações pretendemos sublinhar que mesmo preterindo as democracias totalitárias ás simples tiranias a razão do juízo residiu, tanto quanto possa ser razoável fazer generalizações históricas, numa valorização do princípio da soberania popular.

Em todo o caso, Berlin não conclui mais do que o que tinha sido dado como suposto na questão inicialmente formulada, a saber, que «ser privado da minha liberdade ás mãos da minha família, de amigos ou de concidadãos equivale de igual modo a ser privado delas»[18].

Portanto, o ponto de Berlin não chega nunca a ultrapassar o que seria consensual: 1. regimes de soberania popular poderem privar-nos de liberdade tanto quanto outros regimes, e 2. essa privação não ser aceitável, sequer a pretexto de um suposto incremento da liberdade positiva. Mais precisamente, o ponto de Berlin não chega nunca a coincidir com a ideia de que fosse indiferente quem é o soberano. Contudo, só a assunção desta ideia permitiria desconectar por inteiro a questão liberal sobre os limites do governo da questão democrata sobre quem governa, como se esta última em nada pudesse influir na primeira.

Assumindo então que não está demonstrada a inexistência de uma conexão entre as duas questões, mas tão-só que essa não pode ser uma conexão necessária, procuraremos, em seguida e pela positiva, dar razões a favor da ideia de que existe realmente uma conexão entre as duas questões.

Para esse efeito, introduziremos algumas considerações sobre o contratualismo enquanto doutrina que confere a soberania popularmente e que culminou na ideia de contrato social de Rousseau. Ao mesmo tempo, aproveitaremos para discutir as razões de Berlin e, antes dele, de Stuart Mill e Constant, contra a ideia de soberania absoluta de Rousseau.

O contratualismo moderno (compreendido sobretudo entre os Sécs. XVII e XVIII) representou uma cisão face ao pensamento político que, desde Aristóteles, reconhecia o homem como um ser por natureza político. Bem diversamente, os filósofos políticos que recorreram, e ainda recorrem, á ideia de um contrato social assumem o carácter político do homem como sendo da ordem do artifício e da convenção.

Desta forma, há que proceder, pelo menos conceptualmente, á distinção entre um estado civil e um estado de natureza. Deste último, dir-se-á não ser um estado em que os homens sejam providos de uma realidade política. No entanto, isso não significa que não lhes assistam direitos. Bem pelo contrário, no estado de natureza, os homens são portadores, pela sua própria natureza, de direitos naturais[19]. Por outras palavras: o homem no estado de natureza não sendo político é ainda um homem justiciável.[20]

Historicamente, o contratualismo desenvolve-se na modernidade seiscentista e setecentista, sendo os seus mais importantes sistematizadores Thomas Hobbes (1588-1679) numa fase ainda muito precoce; Samuel Pufendorf (1643-1694) com a sua doutrina do duplo contrato; John Locke (1632-1704) com a consagração do direito de resistência e, por fim, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) com a doutrina da vontade geral. Estes desenvolvimentos serão, contudo, extremamente divergentes, caucionando pelo menos três concepções mais ou menos inconciliáveis: o absolutismo hobbesiano (bem como, embora em muitos aspectos distinto, pufendorfiano), o liberalismo lockeano e o democratismo rousseauniano.

Em termos gerais, o contratualismo supõe a igualdade entre os homens, quando considerados quanto á sua natureza. Por isso, contrapõe-se á desigualdade entre os homens que se baseie simplesmente num privilégio de nascimento. Nisto, há uma manifesta oposição, por parte dos autores contratualistas, ao condicionamento da soberania dos monarcas seus contemporâneos pelos privilégios das nobrezas. Daí, um esforço como o de Hobbes em estabelecer claramente quem é de facto o soberano e, assim, obter uma clara definição do Estado e do poder, ainda que este, como é sabido, resultasse num absolutismo.

O contratualismo supõe, além desta igualdade natural, a ideia de que o fundamento do poder deve resultar convencionalmente. Neste sentido, contrapõe-se a uma legitimação transcendente da soberania, seja esta baseada na natureza ou num mandamento divino. Nisto, há uma manifesta imanentização do problema da legitimação do poder. Cabe aos homens decidir da legitimação. Pode-se dizer, assim, que o contratualismo inova ao tornar realmente problemáticos e discutíveis aspectos como o fundamento e o alcance da soberania. A contrapartida está no direito natural resultar, por seu turno, transcendente.

Neste ponto, há um acordo generalizado entre as fontes no contratualismo moderno. Tanto Hobbes, como Locke e Rousseau legitimam o poder imanentemente, i.e., todo o poder deve ser conferido, justamente por não estar dado pela natureza ou por mandamento divino, e assim deve ser por homens em exercício da sua capacidade de decidir racionalmente. Com a ideia de uma constituição imanente quer-se dizer que o problema da legitimidade não transcende a racionalidade natural dos homens. Seguem-se, porém, ênfases bem distintas entre os três pensadores.

Hobbes constitui a soberania imanentemente; no entanto, uma vez constituída, liberta-a de qualquer constrangimento face ás vontades constituintes. Nisto, Hobbes, bem como Pufendorf, inscreve-se na linha de pensadores políticos que, fazendo do povo a fonte do poder, considera, porém, que há uma alienação total desse poder ao ser conferido ao soberano. Por outras palavras, para esta linha de pensadores, a soberania é popular, mas alienável. E pode ser, por essa mesma razão, uma soberania ilimitada.

Não obstante este aspecto em comum, importa atender a algumas diferenças importantes entre Hobbes e Pufendorf. Hobbes apresenta uma fórmula do contrato social, mas ainda longe da sistematização, mesmo com pretensões matemáticas, que caracterizará o contratualismo de Pufendorf, designadamente no seu clássico Jus naturae et gentium (1672), onde se encontra a primeira grande teoria contratualista moderna.

Um exemplo claro desta mesma sistematização reside na tematização pufendorfiana da ideia dos dois contratos, a saber, o pacto de união - pactum unionis - e o pacto de submissão - pactum subjectionis (ou ainda, em Alemão, Genossenshaft e Herrschaft, respectivamente).

Em Hobbes esta distinção já se encontrava em esboço, mas tão-só como momento lógico da sua argumentação, em substância esvaziada de qualquer conteúdo realmente operativo na sua filosofia política. Com efeito, no Cap. XIX do Leviatão (1651), Hobbes distingue o corpo político (Body politic) da multidão inarticulada (Multitude), resultando aquele de um pacto de associação entre os homens da multidão. A este pacto não corresponde ainda, na lógica interna do Leviatão nenhuma soberania, a qual só será estatuída através de uma translatio imperii, ou seja, de um autêntico pacto de submissão.  Sucede, simplesmente, que a transição de um momento ao outro, da associação á submissão, é nos termos de Hobbes praticamente imediata, não cabendo nenhuma especificidade política á simples associação de um corpo político.

Ora, em Pufendorf, bem como, posteriormente, em Locke, esta transição está longe de ser imediata, podendo muito bem pensar-se a sociedade reunida num corpo político autonomamente ou, dito de modo mais concreto, podendo pensar-se uma dissolução da soberania investida sem, nisso, comprometer uma dissolução do próprio corpo político; bem diversamente, sendo a dissolução daquela pensada como uma recondução á fonte, i.e., ao corpo político.

Pufendorf professa, não obstante a sua teoria do duplo contrato, uma soberania ilimitada. Tal justifica-se, no quadro do pensamento pufendorfiano, pela ideia de que o contrato social é inviolável, independentemente das circunstâncias. Ou seja: ainda que o soberano se revele ele próprio incumpridor e violador do contrato, nada nisso desobriga os súbditos de perseverarem no respeito pelo contrato. A palavra dada é para ser respeitada mesmo que o outro não respeite a sua própria palavra dada. A palavra é sagrada e por isso é, ultimamente, ainda divino o fundamento do contrato. Deste modo, se é possível uma recondução da soberania ao corpo político, enquanto sua fonte, tal, porém, exigirá como condição o consentimento do soberano, mesmo que este seja um tirano. Escreve, a este propósito, Pufendorf:

Alguns dizem que, como uma pessoa que se despojou da liberdade retém sempre o direito de sair da escravatura, o mesmo acontece com o povo (...). Mas seria preciso acrescentar: bem entendido que o senhor ou o rei consintam nisso e renunciem aos seus direitos.[21]

John Locke, bem diversamente, não se limita a pôr o problema da constituição da soberania; para ele, também o exercício desta deve ser sujeito aos constrangimentos que a constituíram. Com efeito, se é nos homens, tomados individualmente, que deveremos encontrar o ponto de partida para a constituição de um estado civil, se é em função dos homens, dos seus interesses particulares, que se constitui um Estado, se é, pois, este o princípio da sua génese, então, este mesmo princípio deve valer também como princípio da limitação do Estado. Daí, a concepção lockeana de um Estado liberal, em que o direito público, servindo o direito privado, não deve nunca, a não ser por uma sua perversão, sobrepor-se a este.

Locke aproveita, na sua obra de 1690, O Segundo Tratado do Governo Civil (The Second Treatise of Civil Government), a doutrina dos dois momentos contratuais de Pufendorf para consagrar o direito de resistência como forma de reconduzir o poder soberano instituído ás suas fontes civis. Aliás, o pensador inglês nem sequer coloca esses dois momentos em pé de igualdade, esbatendo, neste ponto, a ideia de que se tratassem de dois contratos com a mesma dignidade, com o mesmo poder de vinculação. Em vez disso, reduz o segundo momento contratual, o relativo á formação política da sociedade, a um simples trust. Assim, e numa palavra, Locke estabelece, nos termos do contratualismo moderno, a concepção de uma soberania popular inalienável, que deve fazer-se sentir quando estão em causa os direitos naturais dos cidadãos, designadamente o que Locke denomina como property.[22]

Por fim, com Rousseau há uma clara inflexão de ênfase na relação entre uma constituição legítima da soberania e um exercício legítimo da mesma. Em vez de considerar que os termos desta relação são essencialmente distintos, podendo contingentemente relacionar-se, em particular por uma limitação, em maior ou menor grau, do exercício da soberania pelos fins que conduziram á sua constituição, Rousseau faz convergir, se não mesmo coincidir, os dois problemas.       Com efeito, uma importante originalidade de Rousseau dentro do contratualismo residiu em não dar por concluída a tarefa da constituição da soberania só porque se conclui o momento correspondente á admissão do contrato social. Nos termos da sua formulação do pacto, a tarefa da constituição do soberano - a saber, a Vontade Geral - é uma tarefa permanente. Donde que, a haver um problema do exercício da soberania, rever-se-á necessariamente no problema da sua constituição.

Assim, se Hobbes privilegia o contrato de submissão face ao contrato de associação, o propriamente social, e se Pufendorf coloca os dois contratos em pé de igualdade, permitindo-lhe, desta forma, ainda suster a alienabilidade da soberania popular, já Locke e Rousseau privilegiarão o contrato propriamente social, o primeiro reduzindo o contrato propriamente político a um simples trust, o segundo recusando qualquer autonomia ao poder político, afirmando a ideia da unicidade contratual - o contrato é só social -, e eliminando qualquer risco de competição entre fontes contratuais da soberania.

Há, contudo, uma diferença crucial que distancia Rousseau dos restantes contratualistas atrás referidos. Tal diferença não reside na ideia da inalienabilidade de princípio da soberania popular nem na ideia de que o problema do controlo e dos limites do exercício da soberania deva encontrar resposta nas fontes da soberania, mas no facto de Rousseau, em notório contraste com os seus antecessores contratualistas, dispensar, por completo, a distinção entre constituição legítima e exercício legítimo da soberania. Para o genebrino, sendo a soberania popular, então o próprio exercício é popular.

Esta diferença implica consequências importantes que devem, por isso, ser bem medidas. Desde logo, está em causa o reconhecimento da natureza eminentemente política do exercício. Já não se trata de traçar os limites de um exercício, que permaneceria, dentro do permissível, essencialmente autónomo, mas politicamente enfraquecido - como propõe Locke, num sentido que exprime o cerne do credo liberal. Trata-se, bem pelo contrário, de transmitir, por inteiro, a legitimidade constituinte ao exercício, conferindo a este um poder político genuíno, não mais condicionado do que a própria soberania popular.

Contudo, se a soberania popular, não devendo ser condicionada, i.e., nem alienada nem dividida, se diz, para Rousseau, absoluta, então, em virtude da mesma coincidência entre soberania e exercício, resulta que o próprio exercício seja absoluto. Face a isto, ocorre de imediato perguntar quem controla um exercício absoluto. Ao fim e ao cabo, não é justamente aqui que, pronta e indubitavelmente, se instalam todos os perigos que algum contratualismo procurava prevenir, fossem quais fossem os protagonistas do exercício? é precisamente esta a reserva que Isaiah Berlin e, antes dele, Stuart Mill e Constant, apontam a Rousseau.

Reformulando a questão, perguntar-se-á se Rousseau, ao propugnar por uma soberania absoluta, não acaba por tolerar, mesmo promover, uma soberania ilimitada, capaz, por isso mesmo, de neutralizar qualquer liberdade negativa.

Num primeiro olhar, é possível responder afirmativamente a esta pergunta, pois a soberania da Vontade Geral é, para Rousseau, tão absoluta quanto o pode ser face ao princípio da sua constituição - o que o genebrino chama "interesse comum". Porém, a resposta á questão, bem medidas as apostas que Rousseau propõe em O Contrato Social, deverá ser só parcialmente afirmativa. Por um lado, e no que respeita ao interesse comum, podem fazer dele parte muitos conteúdos variáveis, mas não poderão deixar de ser interesses comuns a todos os cidadãos; além disso, não poderão deixar de constar do interesse comum os direitos naturais e imprescritíveis que se encontrarão, por exemplo, no Art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pois tais direitos são o fundamento último do próprio pacto de associação -  o Contrato social -, donde a sua presença necessária como conteúdos do interesse comum. Consequentemente, não é o caso que em Rousseau soberania absoluta signifique uma genuína soberania ilimitada, como tendem os pensadores liberais a ler em Rousseau. Significará por certo, e de modo explícito, soberania indivisível e inalienável, mas não ilimitada. O direito natural é um limite inultrapassável, sob pena do próprio contrato perder o seu fundamento.

Não obstante, há mais do que um sentido em que a resposta á mesma pergunta se revela positiva. Em primeiro lugar, embora Rousseau limite, quanto ao seu exercício legítimo, a Vontade Geral, não evita, porém, que, estando ela inteiramente investida no seu próprio exercício, se conclua que resulta forçosamente "juíza em causa própria" sempre que se depara com o problema da legitimidade do seu exercício. Não nos autoriza isto a afirmar que Rousseau tenha promovido uma soberania ilimitada; autoriza-nos, porém, a afirmar que não assegurou, na verdade tornou mesmo impossível assegurar, a formalização política de um controlo do exercício. Consequentemente, em caso de disputa quanto á legitimidade do exercício da soberania, somos necessariamente conduzidos a concluir que, tal qual Rousseau dispõe o seu contrato social, tais conflitos não terão outra medida de resolução a não ser a da força, como que num regresso ao estado de natureza. Em suma, assumindo as disposições de Rousseau, reconhecer a ilegitimidade do exercício é uma possibilidade que fica na dependência de uma convulsão social, mesmo de uma guerra civil.

Uma segunda dificuldade prende-se com a possibilidade de Rousseau ser confrontado com uma desproporção, digamos assim, entre interesse comum e interesses privados. Esta é, aliás, uma boa maneira de mostrar por que razão Rousseau - embora partilhe de uma preocupação liberal quanto á exorbitação do exercício - não é, nem pode ser, lido como se de um autor liberal se tratasse. Importa neste ponto começar por discernir um contratualismo de feição liberal, exemplar em Locke mas também exemplificado em Hobbes, de um contratualismo de feição democrata, original em Rousseau. Depois, veremos das implicações que decorrem, ou não, deste.

Há pelo menos um ponto de afinidade entre os contratualismos de Hobbes e Locke, por um lado, e o liberalismo, por outro - o contrato social, pese embora as óbvias especificidades de cada um destes autores, é em ambos um pacto, de carácter comutativo[23], entre vontades tomadas como iguais, bem ao jeito do direito privado. De acordo com o comentário de Radbruch[24], tratar-se-ia mesmo de uma recondução fictícia do direito público ao direito privado (o caso limite de liberalismo seria o anarquismo). Decorre daqui que, assumindo a igualdade de princípio dos cidadãos, enquanto sujeitos racionais (no quadro de um entendimento do direito natural), o contratualismo de Locke, e mesmo o de Hobbes, aproxima-se de uma admissão da primazia do direito privado, pelo menos como fundamento para a instituição de um direito público naturalmente legitimado. Conversamente, o direito natural, pelo seu carácter universal a todos os homens, encontra no contrato social (com o seu carácter comutativo) a forma adequada para fundamentar o direito positivo.

Ora, esta interpretação de que o contrato teria uma natureza jusprivatística, pese embora o facto de ser satisfatória nas formulações do contrato social propostas por Hobbes e Locke, está longe de se verificar no pensamento político de Rousseau. O genebrino é um contratualista, mas não um liberal. E nesta diferença inscreve-se um terceiro termo - a democracia. Com efeito, ao constituir o Povo como único detentor legítimo da soberania, e ao exprimi-la como uma vontade geral em exercício, Rousseau emancipa, por assim dizer, o direito público do direito privado, dotando aquele de uma sustentação própria, assente, por referência ao conceito de justiça, numa justiça distributiva. O próprio pacto social de Rousseau é, intrinsecamente, distributivo, pois nele cada pessoa não contrata senão consigo mesma, ora como súbdito ora como parte indivisível da vontade soberana.  

A diferente ênfase dada ou ao direito privado ou ao direito público, enquanto modelos para o contrato social é, pois, um critério claro para distinguir entre o liberalismo e o democratismo, enquanto formas de organização das instituições políticas de um Estado.

Posto isto, segue-se naturalmente que uma preponderância do direito privado sobre o direito público, em que a este não cabe outro papel além do de garantir aquele, como sucede em Locke, corresponde ao liberalismo. Neste caso, o Estado pode valer mais como instrumento do que como fim, designadamente como instrumento de salvaguarda da liberdade negativa dos seus cidadãos. Por seu turno, a preponderância do direito público sobre o privado, enquanto modelo para a legítima constituição do Estado, emancipa o Estado enquanto fim em si mesmo, a perseguir para lá das vontades particulares dos cidadãos individuais. A promoção do interesse comum torna-se ela mesma interesse comum. Se aqui há um risco, reside em o Estado, o interesse comum, a vontade geral, nas suas existências para lá dos interesses particulares, se posicionarem contra as vontades particulares dos cidadãos, orientando-se por um ideal de liberdade positiva que, frequentes vezes, põe sob pressão, ou entra mesmo em conflito com, a liberdade de os indivíduos prosseguirem as suas formas de vida quotidianas, quando não as próprias liberdades fundamentais. Era esse o sentido do primeiro argumento de Berlin, visando os perigos associados á liberdade positiva, ao desejo de auto-governo, no que respeita á salvaguarda da liberdade negativa.

Mas se este é um risco real e inerente ao democratismo, e particularmente ao de Rousseau, que padece de fragilidades já enunciadas, não é, porém, uma sua consequência. Pode-se dizer que o democratismo convém ao monismo, ou monolitismo, assente na presunção de que há uma verdade, com a qual deixe de fazer sentido tolerar visões plurais do mundo, da comunidade política e do que podemos querer para seu futuro. Isto porque convém a este sobrepor a unicidade do interesse comum á pluralidade dos interesses particulares e, também, como que pedida de empréstimo, a promoção democratista da liberdade positiva. Talvez seja nesta conveniência que resida a razão para o facto historicamente tão frequente de as coisas "correrem mal" quando a retórica da liberdade positiva se mostra mais empolgada Mas tal elisão do pluralismo não é consequência que se siga, por alguma razão intrínseca, do fomento democratista da liberdade positiva, como "obediência á lei que a mim mesmo me imponho", sequer da assunção de que a soberania popular é absoluta. Entre aquela e estas duas não há nenhuma conexão lógica. Só de um conceito de liberdade positiva muito sobredeterminado, por exemplo com uma boa dose de positivismo racional (até mais do que de racionalismo esclarecido) e, além disso, da presunção de que haja uma "verdade política" face á qual tudo o resto seja erros, é que se pode inferir uma liberdade positiva que violentasse necessariamente o espaço da liberdade "negativa". Ora, nenhuma destas sobredeterminações da liberdade positiva decorre do democratismo. Bem pelo contrário, e atendo-nos a Rousseau, se faz sentido falar de um interesse comum e de uma vontade geral é como expressão de uma pluralidade de interesses e vontades particulares.

Para Rousseau, segundo interpretação que me parece ser a mais adequada, é por se desejar a não-interferência que se deseja o auto-governo - este desejo só se coloca como solução para cumprir aquele -, é por se desejar naturalmente a liberdade negativa que se deseja convencionar uma liberdade positiva. é claro que a democracia pode almejar mais do que garantir, na qualidade de interesse comum, um conjunto de liberdades individuais; mas o que mais vier não dispensa o cumprimento da razão que a fundamenta. Na verdade, O problema do controlo, caracteristicamente liberal, longe de ser elidido por Rousseau, está implícito no problema da fonte.

A pertinência da análise berliniana para o nosso contexto epocal

Julgamos poder, sem risco excessivo, dar contas de duas tendências gerais a que assistimos hodiernamente nas nossas democracias ocidentais, vulgo Estados de Direito: por um lado, uma desregulamentação política das relações económicas e, por outro, uma regulamentação jurídica das restantes relações humanas.

Se a desregulamentação política da relação económica, enquanto tendência, está há muito identificada com o processo de liberalização dos mercados e das relações de trabalho, já a regulamentação jurídica das restantes relações humanas é um fenómeno relativamente recente.      

A novidade deste fenómeno encontra um reflexo bem concreto num tópico de discussão que se tornou recorrente nas sociedades ocidentais, a saber, a crise da justiça. Com efeito, se hoje assistimos á possibilidade de uma implosão do sistema judicial, ineficiente perante os milhares de processos pendentes, e a contas, por isso, com o escândalo das prescrições, tal, contudo, só muito parcialmente ficará a dever-se á ineficiência de uma máquina burocrática. No essencial, o colapso da Justiça não passará tanto por aí como pelo fenómeno inédito de uma judicialização excessiva quer da vida pública quer da vida privada. Esta é, pelo menos, a tese de Antoine Garapon, autor que afirma que a tendência á regulamentação das relações humanas se traduz numa judicialização que põe em risco a própria justiça. De acordo com Garapon, «esta judicialização acaba por impor uma versão penal a qualquer relação - política, administrativa, comercial, social, familiar e até amorosa - doravante descodificada na perspectiva binária e redutora da relação vítima/agressor».[25]  Verifica-se assim uma tendência para a substituição do cidadão pela figura do justiciável e do próprio "Estado provedor de justiça" pelo "Estado justiciável".      

            Destas duas tendências seguem-se, a nosso ver, outras tantas consequências: por um lado, uma marginalização da relação política e, por outro, uma restauração do monismo. Estas consequências, fazendo sistema, não deixam de preservar, em abstracto, o pluralismo político e, portanto, a indesejabilidade de um monismo político. Não obstante, em concreto, verifica-se que, por um lado, o pluralismo político, embora consagrado, é esvaziado e que, por outro, o monismo, embora apolítico, é instaurado hegemonicamente no plano das relações humanas. 

            A ameaça sobre a relação política deixa-se atestar por ambas as tendências atrás referidas. Com efeito, e quanto á tendência regulamentadora, se assumirmos que a relação política tem a sua condição de possibilidade na impossibilidade de haver uma regulamentação total dos comportamentos humanos[26], então parece claro que a contrapartida á judicialização de toda a relação humana é a extinção da relação política. Já quanto á tendência desregulamentadora, importa começar por notar que a assunção do liberalismo económico, tal como o identificamos nos tempos correntes, é a de que o poder político não deve ter um estatuto qualitativamente distinto do de um qualquer outro parceiro económico. Neste sentido, tem-se, por um lado, que não compete ao Estado regulamentar politicamente as relações económicas - o mercado auto-regula-se. E tem-se, por outro lado, que o Estado deve estar subordinado - enquanto pessoa jurídica - á regulamentação jurídica do mercado económico. A este propósito afirma Garapon: «o mercado multiplica os recursos ao jurídico e, simultaneamente, recusa o poder tutelar do Estado».[27]

            A par da ameaça de extinção da mediação especificamente política como forma de coabitação numa mesma comunidade, arrisca-se um retorno ao monismo que preocupava Isaiah Berlin. Com efeito, a judicialização regulamentadora das relações humanas, e a sua apolitização, não só é instalada sob a retórica do interesse comum como herda ainda as características de uma verdade que "liberta" coercivamente. Naturalmente, já não se trata de uma suposta "verdade política" que impusesse a maioria tirânica ao indivíduo; tratar-se-á antes de uma verdade, ou algo equivalente, de natureza apolítica - desde a ética ao conhecimento científico, ou alegadamente científico, sobre o social, a educação, a psicologia, a saúde pública, etc. -, que, com o apoio da maioria, vem regulamentar juridicamente toda a relação humana, mesmo aquela que era suposto resultar da sociabilidade política.

            Historicamente, Berlin identificou duas tradições com respostas divergentes, mesmo antagónicas, á questão política crucial - a questão da obediência e da coerção. Tal antagonismo, é sabido, foi particularmente intenso na forma histórica que assumiu no Século de Berlin.

            A forma histórica que hoje assume a mesma tensão é, a nosso ver, bastante diferente. Em certos aspectos, as duas tendências - a liberal e a democratista - deixaram de estar tão bem identificadas. A tensão deixou de corresponder a alinhamentos, até geográficos, de regimes (O Ocidente e o Leste em especial), para se manifestar, embora muito menos explicitamente, no seio dos próprios regimes constitucionais de herança liberal em que vivemos. A questão sobre se pode, ou não, o indivíduo ou a minoria se salvaguardar do poder soberano e da tirania milliana é hoje terreno de crescente tensão quando a nossa sociedade, por um lado, se sustenta cada vez mais sobre uma base litigiosa, regulamentando o que é simplesmente da ordem da sociabilidade humana, e, por outro lado, marginaliza cada vez mais a natureza política das relações humanas (o que, aliás, serve como ingrediente para uma explicação do fenómeno do indiferentismo político).

            Esta nova tirania das maiorias, distingue-se da clássica tirania milliana das maiorias, por assentar numa suposta seriedade apolítica, seja científica, ética ou pedagógica.

O autor de Dois conceitos de liberdade deu-nos a crítica dos usos do conceito da liberdade, muito em particular de um seu uso positivo sobredeterminado. A verdade libertar, mesmo que coercivamente - essa é, essencialmente, a pretensão que Berlin recusou para o espaço da relação política.

            Agora, se for razoável afirmar, como sustentamos, que hoje a liberdade politicamente positiva tende, a par da liberdade politicamente negativa, a ceder o seu lugar a uma liberdade apoliticamente positiva, monista e coerciva (não diremos totalitária por respeito aos horrores do totalitarismo histórico), e que esta, por seu turno, se inscreve no quadro do que é habitual chamar-se neoliberalismo, então haverá que concluir que a liberdade positiva não é apanágio exclusivo do democratismo histórico. Aliás, nunca o foi. Mas, mais importante, será sublinhar a pertinência da análise berliniana para uma crítica liberal ao neoliberalismo.

 

 

Autor:

André Barata

abarata[arroba]ubi.pt

Universidade da Beira Interior

Instituto de Filosofia Prática

URL: www.phi.no.sapo.pt

www.ifp.ubi.pt


[1] Berlin, 1954:  

[2] Berlin, 1954:

[3] Berlin, 1958: 295.

[4] Berlin, 1958: 252.

[5] Berlin, 1958:

[6]  O conceito de tirania das maiorias é proposto por Stuart Mill no seu On Liberty, cap. 1 -  «The will of the people, moreover, practically means, the will of the most numerous or the most active part of the people; the majority, or those who succeed in making themselves accepted as the majority; the people, consequently, may desire to oppress a part of their number; and precautions are as much needed against this, as against any other abuse of power. The limitation, therefore, of the power of government over individuals, loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein. This view of things, recommending itself equally to the intelligence of thinkers and to the inclination of those important classes in European society to whose real or supposed interests democracy is adverse, has had no difficulty in establishing itself; and in political speculations "the tyranny of the majority" is now generally included among the evils against which society requires to be on its guard.»

[7] Berlin, 1958 : 254.

[8] Berlin, 1958 : 254. Benjamin Constant opõe á «liberdade dos Antigos», assente na ideia de participação no poder colectivo, a «liberdade dos Modernos», pensada como liberdade individual. E reconhecendo a primeira no pensamento de Rousseau e, em particular, na sua doutrina da Vontade Geral, demarca a segunda, a dos Modernos, nos seguintes termos: «Nous ne pouvons plus jouir de la liberté des anciens, qui se composait de la participation active et constante au pouvoir collectif. Notre liberté á nous, doit se composer de la jouissance paisible de l'indépendance privée.» (Cf.. De la liberté des anciens comparée á celle des modernes, 1819)

[9] Cf. Principes de Politique (1815)

[10] Berlin, 1958: 287.

[11] Berin, 1958: 266.

[12] Berlin, 1958: 265.

[13] Citado por Berlin, 1958: 275.

[14] Berlin, 1958: 275.

[15]  Berlin, 1958: 275.

[16] Berlin, 1958: 287.

[17] Berlin, 1958: 287-8.

[18] Berlin, 1958: 288.

[19]

[20]

[21] Jus naturae et gentium, Livro VII, Cap. VI, §6.

[22] Cf. The Second Treatise of Civil Government, cap. 19 (Of the Dissolution of Government). Especificamente sobre o conceito de 'property' em Locke, cf. §173 - «By property I must be understood here, as in other places, to mean that property which men have in their persons as well as goods.»

[23] Note-se que, tomando em atenção a relação com o conceito de 'justiça', ao direito privado corresponde uma justiça comutativa, entre iguais, ao passo que ao direito público corresponde uma justiça distributiva, na qual as posições são assimétricas.

[24] Radbruch

[25] Garapon, 199?: 24.

[26] Encontra-se esta ideia, por exemplo, no pensamento de Diogo Pires Aurélio, o qual, no âmbito de uma leitura política do Tratado das Paixões de Descartes, assume que "as paixões constituem o problema da política"; e acrescenta: "se a razão alguma vez as regrasse por inteiro, a política deixaria de fazer sentido". (Aurélio, 199?: 19)

[27]



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