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Incoerências nas teses "analíticas" de Desidério Murcho (página 2)

Francisco Limpo de Faria Queiroz

Que as diversas doutrinas científicas não têm o mesmo valor de verdade – é um ponto em que estamos de acordo com Desidério Murcho. Mas todas as ciências são interpretações do mundo, mais ou menos plausíveis – e aqui Desidério afasta-se de nós, fixando-se no granito de um maior dogmatismo, como se fosse possível chegar a um monismo em cada área das ciências, elaborar ciência não antropocêntrica, sem as tonalidades da intersubjectividade (acordo entre várias mentes humanas) ! Não é possível. O realismo monista de Desidério é, em diversos casos, o dogmatismo das ciências dominantes que Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Karl Popper combateram, cada um a seu modo.

Segundo Desidério, não se pode ser heliocêntrico e geocêntrico em simultâneo. É óbvio. Mas, a nosso ver, o geocentrismo de Aristóteles ainda é ciência: ciência superada. Não é ciência na perspectiva heliocêntrica mas é ciência num quadro de razão hegeliana, holística, sinóptica. Possui ainda alguns resíduos de verdade. Pode haver vários níveis de ciência como círculos concêntricos opostos entre si, mas sem ocuparem o mesmo lugar do conhecimento. Defendia o aristotelismo que o Sol se move no céu – o que hoje os astrónomos reconhecem ser verdade, sem embargo de reconhecerem que a Terra gira em volta do Sol. Além do mais, do geocentrismo ptolomaico-aristotélico emana a Astrologia Histórica, uma ciência herética, perseguida hoje pelo status universitário, mas, sem dúvida, uma ciência indutiva de enorme importância.

Nenhuma ciência é absolutamente infalível – nem mesmo a matemática que é também antropocêntrica. E pode muito bem suceder que a teoria heliocêntrica seja rejeitada dentro de séculos, por ser insuficiente, parcial ou essencialmente errónea. Quem nos garante, em absoluto, que não há dois sóis com o mesmo aspecto, um girando em volta da Terra, como dizia Aristóteles, e o outro «imóvel» em torno do qual a Terra girasse?

Ademais, Desidério Murcho passa à margem de um problema capital: o de haver ciências, forçosamente ecléticas, aceitando como científicas em simultâneo duas doutrinas que se contradizem. Por exemplo, a Física actual aceita em simultâneo duas teorias que se contradizem: a teoria corpuscular da luz e a teoria ondulatória da luz.Luz como corpúsculo opõe-se liminarmente a luz como onda. Este é um claro exemplo de relativismo no seio de uma mesma ciência, o que desmente a aspiração monista epistemológica que Desidério levanta como bandeira do seu combate e tira o tapete à sua exorcização do subjectivismo e do relativismo.

O tempo não existe? Dos perigos da lógica pura

Há filósofos como McTaggart que com argumentos lógico-linguísticos negam a existência do tempo. Desidério Murcho descreve assim os argumentos daquele  pensador:

«O debate moderno sobre a realidade do tempo tem origem nos argumentos defendidos por J.M.E. McTaggart (1866-1925) num famoso ensaio publicado em 1908. McTaggart defendeu que o tempo é uma ilusão. Para se compreender o seu argumento é necessário distinguir duas formas diferentes de localizar acontecimentos no tempo, a que McTaggart chamou «séries A» e «séries B». Esta terminologia não é esclarecedora, pelo que iremos chamar «flexionadas» às primeiras e «não flexionadas» às segundas (poderíamos igualmente chamar-lhes "dinâmicas" e "estáticas", respectivamente). Compreende-se a diferença contrastando duas formas diferentes de falar do tempo. Afirmar «Hoje está a chover em Londres mas ontem esteve calor» envolve o uso de verbos com flexões temporais ("está" e "esteve"). Mas afirmar algo como «Chove em Londres em 29 de Julho de 2004, mas faz calor em 28 de Julho de 2004» não envolve o uso de verbos com flexões temporais - pois "chove" neste contexto é intemporal  como o "é" na expressão "A raiz quadrada de 16 é 4"» (...)

«O terceiro passo do argumento é que as formas flexionadas de referir os acontecimentos no tempo implicam contradições, pelo que não podemos pensar que descrevem a realidade - limitam-se a descrever uma certa aparência enganadora da realidade. Esta é talvez a ideia menos plausível do argumento, mas não é obviamente falsa. A ideia é que se levarmos as formas flexionadas de expressão a sério, então devemos aceitar que exprimem verdadeiras propriedades dos acontecimentos. Assim qualquer acontecimento tem três propriedades temporais: ocorrerá, ocorre e ocorreu. Mas um acontecimento como o assassinato de Kennedy não pode ter as três propriedades: não pode ser um acontecimento futuro, presente e passado - pois se Kennedy foi assassinado hoje, não poderá ser assassinado amanhã nem pode tê-lo sido ontem, e se foi assassinado ontem não poderá ser assassinado hoje nem amanhã. Logo, o tempo é em si irreal: uma mera ilusão».

«Resumindo, o argumento de McTaggart pode ser formulado do seguinte modo:

1) O tempo envolve mudança.

2) Só as formas flexionadas de expressão podem exprimir mudança.

3) Mas as formas flexionadas de expressão envolvem contradições. Logo, o tempo é irreal.»

(Desidério Murcho, Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, Lisboa 2006, pag. 179-181; o negrito é nosso).

Como é que da contradição entre formas linguísticas flexionadas se infere contradição na realidade ontológica-cronológica? Só por um passe de «mágica» de argumentação...

Este argumento de McTaggart lembra o argumento do grego Zenão de Eleia contra o movimento: contra toda a evidência empírico-racional, Zenão defendeu que o corredor Aquiles não poderia nunca alcançar a tartagura que vagarosamente avançava alguns metros à sua frente porque, em cada instante, tinha de situar-se em metade do espaço que o separava dela e, nessa fracção de segundo o animal adiantava-se levemente, de modo que Zenão ficava colado à tartaruga sem nunca a alcançar.

O argumento de Zenão, que desenha o cálculo infinitesimal, é um exemplo de como o pensamento lógico, ou pelo menos de certas lógicas, falsifica a realidade. As lógicas formal e proposicional não são absolutamente fiáveis e, aplicadas de alguns modos, à realidade empírica deformam esta.

O argumento de McTaggart é facilmente refutável pois trata-se de um sofisma. O tempo não é homogéneo, como mostrou Heidegger, e já outros (Marco Aurélio por exemplo) o tinham feito antes. O tempo não se compõe de três propriedades - passado, presente e futuro - ao mesmo nível horizontal mas de duas dimensões distintas: o tempo real como existência, que se reduz ao instante presente, que nasce e morre a cada fracção de segundo, e o tempo ideal como essência (o passado que já não existe: não é tempo real mas ideia do tempo; o futuro que ainda não existe: não é tempo real mas ideia do tempo).

A realidade do instante presente ninguém a pode negar. Capta-se de forma metalógica, por intuição sensivel e ideal. Portanto, o tempo existe: é um vir a ser que a cada fracção de segundo deixa de ser, em linguagem hegeliana. É por isso que considero perigosa a sobrevalorização da lógica pura a que hoje se assiste como uma espécie de metafísica negativa - Deus imanente ao jogo de palavras, a verdade (divina) repousando nas tabelas de verdade, no inspector de circunstâncias, no modus ponens ou no modus tollens, etc - que enfraquece a lógica intuitiva "informal", empírico-ideal, espelho do mundo físico exterior. Desidério Murcho e outros orientadores de filosofia no ensino em Portugal fazem parte deste movimento de metafísica negatíva que emana da esfera da filosofia analítica e que constitui uma reacção «barrôca» ao materialismo e ao idealismo dialécticos que emergiram com grande pujança na década de 70 em conexão com a revolução dos cravos de 1974-1975 em Portugal.

É o anti realismo modal oposto ao empirismo ?

Por realismo modal, entende-se a doutrina ou conjunto de doutrinas que sustenta que as categorias de modalidade e da causalidade- possibilidade versus impossibilidade, contingência versus necessidade, causa-efeito...- existem, objectivamente, fora dos espíritos humanos, na natureza ou num mundo supra-natural extrahumano.

Por anti-realismo modal entende-se o inverso: as categorias de necessidade-contingência, causa-efeito, etc, não existem fora de nós, na natureza das coisas, mas são interpretações subjectivas ou intersubjectivas, circunscritas ao interior das mentes humanas.

Há autores que opõem o anti realismo modal ao empirismo e este ao idealismo:

«Contudo, o anti-realismo modal é contrário ao espírito empirista porque, em última análise, acaba por motivar o idealismo, um tipo de filosofia contrário ao espírito realista do empirismo. O anti-realismo modal motiva o idealismo de Kant de forma particularmente nítida.»

(Desidério Murcho, Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N.Famalicão 2006, pag. 103; o negrito é nosso).

Discordamos de Desidério Murcho: o idealismo não é, em termos gerais, oposto ao espírito do empirismo. E muito menos o idealismo de Kant, um impulsionador das ciências empírico-formais.

Na verdade, quem compreender o cerne da doutrina de Kant - e muito pouca gente das cátedras de filosofia o conseguiu - sabe que o filósofo de Konisberg intitulou a sua visão idealista transcendental do mundo de... realismo empírico.  Isto significa que, pondo entre um parentesis os fundamentos filosóficos do seu sistema (o mundo visível é séries de fenómenos, coisas não reais em si), tomamos os objectos fenoménicos (plantas, minerais, cursos de água, animais, sol, céu, etc) como se fossem absolutamente reais e sobre eles exercemos uma infinita gama de procedimentos empíricos, induzindo leis, sem limitações epistemológicas.

O anti realismo de Kant, na medida em que se apoia no pressuposto da necessidade/ determinismo dos fenómenos físicos, é muito mais baluarte da ciência empírica do que o fenomenismo anti necessitarista de David Hume.

Logo, o idealismo, o anti realismo de Kant (que faz das categorias de causa-efeito, possibilidade-impossibilidade, etc, existentes no entendimento humano, formas ou traços constituintes dos fenómenos empíricos)  não se opõem ao empirismo em geral. Há realismos metafísicos profundamente anti empiristas e idealismos metafísicos profundamente empíricos.

Empirismo é, numa das suas acepções, uma definição pré-ontológica: a experiência não é, por si só, constitutiva de ser. E idealismo e realismo são noções ontológicas, estão para lá de empirismo.

Nota- Consigo chegar a estas precisões de pensamento sem recorrer, racionalmente, a nenhuma regra da lógica proposicional, cuja sobrevalorização venho combatendo neste blog. Aplico aquilo que Bertrand Russell designava de método analítico: focar mentalmente um objecto, um tema, de modo a que os contornos internos e externos se tornem gradualmente mais nítidos.

Está o relativismo vinculado ao anti-realismo?

O livro suscita ainda mais questões interessantes. Há dois méritos que reconhecemos a Desidério: o seu enciclopedismo (é ou parece culto, abrange uma gama larga de aspectos na filosofia contemporânea, estabelece sínteses, ainda que seja difícil descortinar nele originalidade) e o seu descritivismo semântico (fornece as suas definições dos termos filosóficos usados, sem embargo de cometer abundantes erros de conceptualização e sistematização).

A propósito da relação entre realismo e anti-realismo, e deste com relativismo, escreve Desidério Murcho:

« O realismo e o anti-realismo são duas formas opostas de entender as coisas numa dada área. Uma filosofia realista declara que os aspectos fundamentais dessa área não são meras construções humanas, resultados da linguagem ou de esquemas conceptuais; são aspectos da natureza intrínseca das coisas. Uma filosofia anti-realista, pelo contrário, defende que os aspectos em causa são meras construções humanas - resultados da linguagem ou de aspectos conceptuais, e não aspectos da natureza intrínseca das coisas.» (...) «Por exemplo, em relação à ética, uma posição anti-realista defende que os princípios morais são meras construções humanas sem qualquer fundamento na natureza das coisas.»

«O anti-realismo está geralmente associado ao relativismo, se bem que as duas posições não sejam sempre coincidentes. O relativismo não é apenas a ideia de que «as coisas são relativas» - algo que o não relativista pode aceitar - mas a ideia de que as coisas são irredutivelmente relativas. Assim por exemplo, o relativismo em ética não é apenas a ideia de que em diferentes situações e condições históricas, por exemplo, os seres humanos são levados a aceitar juízos éticos diferentes.(...) O relativismo ético defende algo mais radical: a ideia de que não há só acordo racional possível em questões éticas de pormenor, como não há princípios gerais que regulem as diferenças em questão - uma cultura poderá ser racista e a outra não mas a oposição é racionalmente insolúvel».

«O relativismo não coincide exactamente com o anti-realismo; pretende ser antes uma consequência do anti-realismo: dado que, como defende o anti-realista, nada na natureza intrínseca das coisas tem qualquer relação com a nossa concepção delas, a nossa concepção delas é radicalmente relativista. Apesar desta diferença subtil, o relativismo e o anti-realismo costumam andar a par. A partir deste momento, não faremos distinção entre as duas posições». (Desidério Murcho, Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N. Famalicão 2006, pags. 93-94; o negrito é nosso)

Este autor não demonstra por que razão o anti realismo costuma andar a par do relativismo, por que motivo os funde, de certo modo. Que quer dizer D.M. com o termo "radicalmente relativista" ? Nada mais nada menos que a expressão relativismo céptico ou relativismo adicionado de cepticismo. No exemplo acima, isto significaria a seguinte posição: «O ocidente democrático era e é anti racista, mas a África do Sul até 1990 era racista, logo, dado haver relativismo, diversidade cultural-geopolítica,  não é possível determinar o valor de verdade ética mútua destas realidades».

Já em recentes artigos, neste blog, pusemos em destaque a nuvem de confusão gerada pelas interpretações do termo relativismo, que significa apenas a ideia de que as coisas são relativas ... mas não irredutivelmente relativas, como sustenta Desidério Murcho. Há um relativismo dogmático diferencial, isto é, relativismo adicionado de dogmatismo axiológico, que não é cepticismo ,mas que Desidério não concebe neste seu livro, dado tornar unilateral o sentido da palavra relativismo. Exemplo desse relativismo dogmático axiológico: «As religiões são diferentes entre si e possuem, diferentes graus de verdade na busca do divino, sendo que o budismo, vegetariano e filosófico, é muito mais evoluído do que as religiões dos astecas e maias que recorriam a sacrifícios de sangue. Logo as religiões não têm todas o mesmo valor, é possível hierarquizá-las axiologicamente, não há uma oposição racionalmente insolúvel entre elas».

Ademais, relativismo não pode identificar-se praticamente com anti realismo, ao contrário do que preconiza este autor.

Hegel, por exemplo, foi um filósofo realista, no sentido de reconhecer uma realidade objectiva exterior às mentes humanas gerada pela Ideia Absoluta, e ao mesmo tempo relativista, pois o método dialéctico é, em si mesmo, o espelho do relativismo ontológico, físico, ético, etc, da vida biocósmica e humana - as coisas são e deixam de ser, o que é verdade hoje já não o é amanhã (salvo alguns princípios absolutos). O princípio do indeterminismo de Heisenberg, segundo o qual não é possível determinar no mesmo instante a posição e a velocidade de uma partícula atómica, é uma combinação de realismo (o átomo existe fora de nós, nas coisas) com relativismo (o electrão é visto de forma variável, ora no aspecto da  posição, ora no aspecto da velocidade).

Estes dois exemplos provam que relativismo se liga a realismo, o que sucede em bastantes casos, embora haja casos de compatibilidade entre relativismo e anti realismo. Mas estes últimos não são a regra geral, a tendência dominante ou mesmo única. Não se pode pois, racionalmente, ao contrário do que defende Desidério Murcho, identificar (quase) anti realismo com relativismo. Além do mais, anti-realismo é uma posição ontológica e relativismo uma posição gnosiológica. Não se misturem alhos com bugalhos...

O anti-realismo global é cepticismo radical?

Por realismo, entende-se a família das doutrinas (ontológicas, éticas, estéticas, etc) que asseveram que as coisas materiais ou os juízos de valor existem em si mesmos, no mundo exterior, fora das subjectividades, dos psiquismos humanos. Por anti realismo, entende-se o inverso: coisas e valores estão imersas na ou nas mentes humanas, não subsistem fora destas.

Escreve Desidério Murcho, um autor de manuais de filosofia português com projecção mediática:

«As posições anti-realistas globais têm sido uma tentação constante ao longo da história da filosofia. Estas posições distinguem-se do anti-realismo local pela sua abrangência. Ao passo que o anti-realismo local declara que um certo domínio do pensamento (como a ética, no exemplo dado) não está ancorado na natureza das coisas, o anti-realismo global declara que nenhum domínio do pensamento está ancorado na natureza das coisas. O anti-realismo global disputa a própria expressão "natureza das coisas". (.)

«O anti-realismo local não é radicalmente incoerente. O anti-realismo ético, por exemplo, não é radicalmente incoerente, apesar de poder ser falso por outras razões.  Mas qualquer forma de anti-realismo global, ou cepticismo radical, é radicalmente incoerente. Isto não é surpreendente. Pois não se pode estar a dizer a verdade, quando se diz que não é possível, de todo em todo, dizer a verdade.»

(Desidério Murcho, Pensar outra vez filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N.Famalicão, 2006, pags 94-96; o negrito é nosso)

Este texto enferma de uma confusão conceptual. Senão, vejamos um exemplo. A teoria de Kant é quase um anti realismo global:

A) No aspecto ontológico, é anti realismo uma vez que os objectos materiais não são reais em si mesmos, apenas existem no interior da nossa imensa mente.

B) No aspecto ontológico-categorial/modal, é anti realismo uma vez que as categorias de unidade, pluralidade, causa- efeito, contingência, necessidade, etc, são imanentes ao espírito do sujeito e dos sujeitos, não existindo fora das mentes.

C) No aspecto moral, é em boa parte anti-realista, na medida em que o bem e a norma ética que o visa é subjectivo. O supremo bem, como númeno regulador, poderá considerar-se real, objectivo.

D) No aspecto estético, é anti realismo uma vez que a faculdade (estética) de julgar é subjectiva nos seus conteúdos.

No entanto, apesar de ser praticamente um anti realismo em todos os domínios, o kantismo está muito longe de ser um cepticismo radical. É mesmo uma teoria extremamente coerente. Desidério confunde anti-realismo global com cepticismo radical, sem destrinçar que este funda uma modalidade do anti realismo mas está longe de englobar todo o anti realismo.

muito anti realismo global que é dogmatismo subjectivista ou intersubjectivista mas não é cepticismo radical, ainda que se tenha servido do cepticismo como método de construção dos seus andaimes dogmáticos.

Por exemplo, o filósofo analítico Ayer desenvolveu um sistema anti-realista global que não é um cepticismo radical, mas utiliza o ceptismo parcial e mantém alguns dogmas:

A)      Ayer, durante bastante tempo,  negou a realidade física exterior ao sujeito, isto é, rejeitou o realismo como sendo metafísico. Foi pois anti realista, sustentando o construtivismo lógico, uma forma de fenomenismo, que reduz os objectos materiais (cadeiras, árvores, etc) a "complexos de sensações", dissolvendo a distinção dualista rígida entre o psíquico e o físico, na linha do monismo neutral de Russell.

B) No plano ético, Ayer manteve-se anti realista, subjectivista, opondo-se a Moore – o fundador da filosofia analítica - que postulava o bem e o mal, etc, como sendo valores objectivos, e denunciava a «falácia naturalista» na ética.

C)     No plano estético, recusou conferir qualquer validade objectiva aos juízos de belo e feio, sendo pois anti realista.

D)     Dentro do seu anti realismo, e mais tarde, após aderir ao realismo ontológico (ao "realismo físico" de Moore), Ayer sustentou o positivismo lógico e o seu critério de verificação - o que significa que a experiência pode ser encarada como um patamar pré-ontológico - admitindo como hipótese provável, na sua fase anti realista, a existência dos objectos físicos, sempre sem cair no cepticismo radical (o probabilismo na medida em que admite graus plausíveis de verdade distintos não é um cepticismo radical).

Por conseguinte é erróneo identificar, como o faz Desidério Murcho, todo o anti realismo global com o cepticismo radical e proclamar o primeiro «radicalmente incoerente». Nem Kant nem Ayer foram radicalmente incoerentes na estruturação dos seus sistemas filosóficos..

Filosofia viva contra Filósofos mortos, uma falsa questão de Desidério Murcho

Em artigo no jornal português "Público", escreveu Desidério Murcho, este "filósofo" do regime capitalista neoliberal, construído, em parte, pelos favores dos media:

«Confunde-se muitas vezes a filosofia com discursos pretensamente inspiradores. Transfigura-se a filosofia e não se trata de discutir ideias livre e cuidadosamente, mas antes de usar a autoridade ilusória dos filósofos mortos para alimentar as aspirações mais palermas. Descobriu-se que não estamos no centro do universo e que o Deus bíblico não fez o mundo em sete dias? Ah, mas a marca de Deus está nas nossas aspirações humanas indeléveis, de suprema importância lógica. Aceitamos que Deus morreu? Ah, mas substitui-se isso pelo Ser e desatamos a perorar contra a lógica e a racionalidade, as culpadas de todos os males da humanidade.»

(Desidério Murcho, Filosofia e aspiradores, Público de 20 de Maio de 2008).

Duas falácias são empregues por Murcho na sua argumentação: 1. A de que é irracional admitir a existência de Deus ou Deuses; 2. A de que a filosofia deve derrubar as teorias dos filósofos mortos porque estas abusam da autoridade.

NÃO É IRRACIONAL ADMITIR A EXISTÊNCIA DE DEUSES, AO CONTRÁRIO DO QUE MURCHO SUSTENTA

O obscurantismo não é apenas o da Inquisição medieval ou de cultos religiosos sádicos e punitivos em alto grau: assume, numa das suas vertentes modernas, o carácter de ateísmo totalitário. Vimo-lo historicamente em regimes marxistas-leninistas, como a Albânia, em que as igrejas foram fechadas e transformadas em armazéns. Na guerra civil de Espanha de 1936-1939, os meus "camaradas" anarquistas cometeram, por força das circunstâncias é certo, actos de um certo totalitarismo anti-religioso tradicional como a violação de freiras, queima de templos e exumação de cadáveres, etc.

É certo que um filósofo pode e deve proclamar-se ateu, se o entender. Mas é apenas uma visão metafísica particular. O problema de Deus ou dos deuses permanecerá sempre em aberto como um espaço residual para a reflexão filosófica. Na verdade, quem pode demonstrar que é palermice, irrealidade, a existência de Deus? O ateísmo de Desidério é uma petição de princípio (falácia): Deus não existe porque não se vê ou não se manifesta físicamente. Mas o mesmo sucede com certos tipos de átomos, ou com as partículas sub-atómicas, nas quais Desidério, supostamente crê, por força do condicionamento mental a que se submeteu.

É possível demonstrar a irracionalidade, a assistematicidade da divisão que Desidério Murcho fez, com os seus amigos (Aires Almeida, Pedro Madeira, Célia Teixeira, Paula Mateus, etc) das correntes sobre livre-arbítrio e determinismo no manual de 10º ano de Filosofia "A arte de pensar", imitando Simon Blackburn: determinismo radical, determinismo moderado ou compatibilismo, indeterminismo, libertarianismo. Já em outros artigos mostramos o magma de confusão do pensamento destes autores. Onde está aqui na "Arte de Pensar" a racionalidade que Desidério invoca? Não existe, ou existe mutilada. Um filósofo ateu pode ser estúpido e confuso, em certa medida; e um filósofo agnóstico ou mesmo um filósofo crente nos deuses pode ser inteligente superiormente, racional, luminoso. A crença ou não em Deus não é a pedra de toque da verdadeira racionalidade filosófica.

Não é possível provar a inexistência de Deus ou deuses. Aliás, Aristóteles e os cabalistas foram tão inteligentes na teorização de um Deus além de tudo, que o conceberam como pensamento puro, sem qualquer interferência no mundo material em que vivemos.

A FALSA QUESTÃO DOS FILÓSOFOS VIVOS CONTRA OS FILÓSOFOS MORTOS

A outra falácia de Desidério é dizer que combate a autoridade ilusória dos filósofos mortos, como se isso fosse a verdadeira filosofia. Mas Montesquieu, Rousseau ou Alexis de Tocqueville, teóricos da democracia liberal e da soberania popular, estão mortos. É isso motivo para condenar este regime?  E Bertrand Russell, criador do atomismo lógico, da lógica interproposicional que Desidério faz tanta questão de promover como a pedra de toque da verdade - lógica que tem vários erros formais, diga-se - está morto. Desidério defende portanto filósofos mortos - Bertrand Russell, McTagart, etc - contra outros filósofos mortos - Hegel, Platão, Heidegger, etc- mas esconde o facto.

É uma falsa questão opor os filósofos vivos aos filósofos mortos, porque as ideias filosóficas são perenes, reactualizáveis em qualquer época. Lembra os vendedores de aspiradores que proclamam que o modelo mais recente é melhor do que o modelo de há 2 anos ou de há 5 anos. No fundo, Desidério Murcho é um vendedor de "aspiradores teóricos": a sua teoria da preponderância da lógica interproposicional é uma aspiração metafísica, uma religião logicizada. Proclamando subversiva a filosofia, Desidério muito pouco tem de subversivo: o seu conservadorismo lógico, o seu desesperado agarrar-se à bíblia russel-fregiana da lógica, é expressão da insegurança de quem pensa pouco e, muitas vezes, mal, na galáxia da filosofia.

Bibliografia:

A,J.Ayer, Hume, Publicações Dom Quixote,Lisboa, 1981

Desidério Murcho, Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N. de Famalicão, 2006

Emanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1985

Paul Feyerebend, Dialogo sobre el Método, Ediciones Cátedra, Madrid, 2000

Francisco Limpo de Faria Queiroz

 

 

Autor:

Francisco Limpo de Faria Queiroz

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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



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