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Pobreza & desenvolvimento local (página 2)

Augusto de Franco

Partes: 1, 2, 3

A EQUAÇÃO COMPLEXA DO DESENVOLVIMENTO

Tudo indica que o problema deve ser colocado de outra maneira. Trata-se de um problema complexo, que envolve interações de múltiplos fatores além da renda e que não pode ser resolvido com soluções lineares do tipo: vamos crescer – e, para tanto, vamos poupar, vamos investir, vamos exportar ou vamos aumentar o mercado interno, vamos aumentar a qualidade e a produtividade, vamos fazer isso ou vamos fazer aquilo.

Estamos falando em solucionar uma equação complexa – a equação do desenvolvimento – e esse é o problema. Essa equação tem muitas variáveis que devem crescer, e não apenas o produto, a renda, o capital propriamente dito. Ou melhor, trata-se de uma equação que relaciona vários outros fatores, que não devem simplesmente crescer, mas atingir valores ótimos, que podem flutuar, sim, mas dentro de intervalos cujos módulos desconhecemos e que só podem ser definidos uns em relação aos outros. Ou seja, o crescimento ideal de um desses fatores depende dos valores dos demais fatores dentro de uma determinada configuração.

Assim, para uma determinada sociedade, num certo período, o valor da renda per capita ideal pode ser menor do que em outra sociedade. Um país pode ser mais desenvolvido do que outro de igual população, mesmo que seu PIB seja menor. O capital humano de determinada localidade pode ser menor do que o de outra localidade e, no entanto, pode a primeira conseguir estabelecer uma sinergia entre os vários fatores do desenvolvimento muito melhor do que a segunda e, assim, tornar mais dinâmicas suas potencialidades e aproveitar melhor as oportunidades do que esta última.

Por outro lado, altos níveis de um fator podem compensar baixos níveis de outro fator. Um grande estoque de capital social pode suprir a falta de capital humano e, até mesmo, de renda. Um grande estoque de capital humano pode suprir a falta de capital natural e, igualmente, até mesmo, de renda. Cingapura não tem recursos naturais, mas exporta softwares, porque possui altos níveis de capital humano.

Tudo isso nos leva a pensar sobre o que é, de fato, o desenvolvimento. Desenvolvimento é o quê? É o que é bom ou, necessariamente, o que é grande? Se desenvolvimento é igual a crescimento, as sociedades humanas estão condenadas a crescer, crescer, crescer, numa escalada sem fim?

Penso que não. Desenvolvimento é o movimento sinérgico, captável por alterações de algumas variáveis de estado, que consegue estabelecer uma estabilidade dinâmica em um sistema complexo, no caso, uma coletividade humana. Crescimento é movimento. Mas movimento não pode ser reduzido a crescimento. Criar, crescer, renovar, reinventar – tudo isso é movimento, não apenas crescer. Crescer é importante, mas tem limites relativos aos valores de outras variáveis, melhor dizendo, à configuração global do arranjo de todas as variáveis que expressam fatores de desenvolvimento. Para além desses limites, o crescimento deixa de ser sinérgico e, assim, deixa de significar desenvolvimento.

Movimento assinérgico não é desenvolvimento. Se um país faz crescer o seu PIB, mas não consegue atingir valores compatíveis de capital humano e de capital social, então está havendo crescimento-sem-desenvolvimento.

Por que muitas pessoas não pensam assim, se isso parece tão óbvio? A razão é que o pensamento dessas pessoas está fundeado no solo de um preconceito: o do primado do fator econômico. Elas pensam dentro dos contornos de uma crença segundo a qual o crescimento de todos os fatores extra-econômicos do desenvolvimento, como o capital humano e o capital social, é conseqüência ou decorrência do crescimento do produto. Enquanto não se livrarem dessa crença, essas pessoas continuarão insistindo em tentar produzir o milagre do crescimento para resolver todos os problemas da sociedade humana. E aí simplificam, por redução, um sistema complexo – em que as variáveis interagem entre si de várias formas, formando múltiplos laços de realimentação – a um sistema linear, em que todas as variáveis dependem de uma única variável: a renda. Em termos matemáticos, transformam um sistema de equações diferenciais em um sistema de equações algébricas de primeiro grau e, com esse instrumental rudimentar e primário, querem captar um fenômeno complexo.

TODO DESENVOLVIMENTO É DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Colocando o problema de outra maneira, é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que todo desenvolvimento é desenvolvimento social. Isso deveria ser meio óbvio, de vez que o conceito de desenvolvimento se aplica a sociedades. Se desenvolvimento não fosse desenvolvimento social, seria o quê? Não dizemos que o desenvolvimento ocorre quando ocorrem mudanças na geosfera, ou na biosfera – a não ser à medida que tais mudanças concorrem para alterar para melhor as condições de existência desse sistema complexo chamado de sociedade humana.

Ora, mudanças na sociedade humana são mudanças sociais. Desenvolvimento, portanto, é mudança social.

Mudança social é mudança nos componentes e nas relações entre os componentes do conjunto que constitui o que chamamos de sociedade. Se não houver mudança dos componentes e das relações entre os componentes desse conjunto, não há desenvolvimento. Ora, esses componentes são os seres humanos e essas relações são, em última instância, as relações que se estabelecem entre os seres humanos. Usando, metaforicamente, a linguagem econômica, poderíamos dizer que haverá mudança social quando houver alteração do capital humano e do capital social. Isso também é óbvio, mas é preciso ser dito, porque as pessoas, em geral, costumam se esquecer do óbvio.

Para haver desenvolvimento é necessário que haja alteração do capital humano e do capital social, ainda que nem toda alteração desses fatores possa ser interpretada como desenvolvimento, mas apenas aquelas alterações que garantam uma congruência dinâmica com o meio, uma capacidade continuamente construída e reconstruída, vamos dizer assim, de adaptação e de conservação da adaptação. Em outras palavras, isso quer dizer que o conceito de sustentabilidade é inerente ao conceito de desenvolvimento. Um desenvolvimento não sustentável – ou seja, que não viabiliza a conservação da adaptação – é um movimento assinérgico e, portanto, poderia ser crescimento, assim como poderia ser criação ou destruição, mas não poderia ser desenvolvimento.

Sistemas sociais só se desenvolvem se estiverem afastados do estado de equilíbrio – o que pressupõe mudança social, mas o que não quer dizer que tais sistemas possam deixar de conquistar estabilidade. Mudanças que levam à instabilidade do sistema significam movimento sem desenvolvimento e levam ao seu desaparecimento. Nesse caso, o sistema é destruído, ou "morre", porque não conseguiu conservar a sua adaptação.

Ora, se desenvolvimento é mudança social, mas não é qualquer mudança, então desenvolvimento é aquela classe de mudanças sociais nas quais se verificam alterações dos fatores humanos e sociais que garantam a estabilidade dos sistemas sociais. Em outras palavras, todo desenvolvimento é desenvolvimento social.

DESENVOLVIMENTO É UMA QUESTÃO POLÍTICA

Em sistemas complexos estáveis afastados do equilíbrio, como as sociedades humanas, o desenvolvimento só ocorre quando conseguem se instalar padrões de interação internos (entre os elementos do conjunto) e externos (com o meio circundante) que melhor assegurem as condições de existência do conjunto, quer dizer, da sociedade como tal. Uma sociedade na qual uma pequena minoria de indivíduos melhora suas condições de vida, mas não consegue melhorar as condições de vida do restante da população, não é uma sociedade que se desenvolve, ainda que possa ser uma sociedade que cresce economicamente.

Quando se diz que todo desenvolvimento é desenvolvimento social, é isso, precisamente, o que se está dizendo: desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas, das que estão vivas hoje e das que viverão amanhã. Em outras palavras: desenvolvimento humano, social e sustentável.

Pode-se sempre urdir argumentos tortuosos para tentar mostrar que a melhoria das condições de vida de uma pequena parcela de pessoas, em virtude do crescimento econômico, num primeiro momento concentrador, é o meio pelo qual, num segundo momento, o "bolo" poderá ser dividido, beneficiando o restante da população. Segundo esse ponto de vista, expresso nas antigas homilias empresariais, é necessário que alguns prosperem para dar emprego aos demais e é assim que a coisa deve ser, mesmo porque nem todos têm a vocação empreendedora et coetera. A natureza, a educação ou o acaso teriam conferido a alguns a missão de gerar riqueza, relegando aos demais a função, subordinada, de contribuir, com a sua força de trabalho, para o êxito dos primeiros. E é, destarte, com cada qual em seu lugar, que o mundo deve funcionar, perpetuando intergeracionalmente o status quo.

Não se pode alterar esse ciclo reprodutor da desigualdade e da pobreza, a não ser intervindo sistemicamente no conjunto, mediante a introdução de mudanças no comportamento dos agentes do sistema que interagem em termos de competição e colaboração. E isso só pode ser feito pela mudança das relações que se reproduzem na sociedade, pelas quais os papéis sociais são distribuídos de uma determinada forma. A única maneira de intervir nesse sistema complexo é fazê-lo nos padrões de organização e nos modos de regulação por meio dos quais os papéis sociais são distribuídos e os comportamentos dos agentes são reproduzidos. Ora, isso tem um nome: chama-se política.

Por isso se diz que o desenvolvimento é uma questão política. Porque a política é um modo de regular o entrechoque de opiniões e interesses que determina a configuração de um sistema social como sistema de agentes que interagem em termos de competição e colaboração. Se esse modo não for alterado, não há mudança de comportamento coletivo, não há mudança de papéis e não há mudança na composição, na quantidade ou na qualidade do que chamamos de capital humano e de capital social – este último, sobretudo, um conceito essencialmente político. Ora, se não houver alteração do capital humano e do capital social, não pode haver desenvolvimento, de vez que todo desenvolvimento é desenvolvimento social.

Quando as pessoas de uma localidade são transformadas em beneficiárias passivas e permanentes de programas estatais assistenciais, que chegam até elas verticalmente, por meio de uma relação patrono-cliente – em que o patrono é o deputado fulano, amigo do governador beltrano, que faz parte do grupo do ministro sicrano –, reduzem-se as chances de aquela comunidade local se desenvolver. Por quê? Porque o clientelismo, além de não favorecer o desenvolvimento do capital humano, é um dos modos mais eficazes de destruir o capital social. Ao verticalizar as relações e desestimular as conexões horizontais, ao desmobilizar a criatividade e a inovação (capital humano) para enfrentar coletivamente os problemas, ao substituir a colaboração pela competição por recursos exógenos e ao impedir que essa colaboração se amplie e se reproduza socialmente (capital social), o sistema político está exterminando os fatores necessários para que aquela comunidade possa se desenvolver.

A questão é política. Porque a política realmente existente tem sido, em grande parte, como dizia Paul Valéry, "a arte de impedir as pessoas de participarem de assuntos que, propriamente, lhes dizem respeito". Se as pessoas não participam, elas não se desenvolvem, nem em termos da sua capacidade de sonhar e correr atrás dos sonhos (ou seja, não desenvolvem o seu empreendedorismo – o principal elemento na composição do capital humano), nem em termos da sua capacidade de comunidade, quer dizer, de cooperar na busca de objetivos comuns (ou seja, não geram, não ampliam e não reproduzem o capital social).

POLÍTICA SOCIAL E MANUTENÇÃO DA POBREZA

As estruturas autoritárias pelas quais as policies são elaboradas e executadas – e, em geral, não monitoradas, não avaliadas e não fiscalizadas, de fato, pela sociedade – impedem a sua publicização. As chamadas políticas públicas, entendidas como políticas exclusivamente governamentais, não o são na verdade: são políticas privatizadas na sua elaboração, ou na sua execução, ou na sua avaliação, ou na sua (falta de) fiscalização – quer por interesses clientelistas, quer por interesses corporativos da burocracia estatal, quer por interesses de grupos econômicos. Para ser público, de fato, não basta ser estatal ou governamental, ou seja, não basta ser nominalmente público em virtude de autodeclarações legais.

Interessa ao clientelismo manter padrões de organização verticais e modos de regulação autocráticos. Interessa ao clientelismo impedir a ampliação da esfera pública e, portanto, conter os processos democratizantes. A estrutura estatal foi concebida para manter o monopólio do público e, assim, impedir a ampliação da esfera pública. O sistema político está preparado para possibilitar certos fluxos verticais de recursos, que o alimentem pela subordinação dos atores, e impedir outros fluxos, ascendentes, que promovam a autonomia desses atores. Todos ou quase todos os programas sociais, sobretudo os programas estatais de combate a pobreza, independentemente dos desejos de seus formuladores, estão desenhados para manter a pobreza, para alimentar continuamente a cadeia vertical de subordinações e favores pela qual se exerce o clientelismo. É assim que o sistema político se reproduz, privatizando o público, apossando-se do poder de decidir e impedindo que as populações se empoderem ao participarem das decisões.

Não é à toa que os programas sociais estatais são baseados na oferta, e não na demanda. O Estado, centralizadamente, imagina qual deve ser a demanda e, a partir daí, define as políticas e desenha os programas, de cima para baixo, dizendo como as populações devem demandar e, não raro, o que devem e o que não devem demandar. Raramente há um casamento aceitável entre oferta e demanda. Em grande parte dos casos, o Estado oferta o que quer, no momento em que quer, sem sequer ouvir o que e quando querem as comunidades. Seguindo uma metáfora já conhecida, da construção de uma casa, é como se o Estado fosse o fornecedor, que envia telhas quando o pedreiro está lançando os alicerces e precisaria de cimento e tijolos; depois envia portas e janelas, quando se está construindo o telhado e seriam necessários caibros e vigotas. Só com muita sorte uma casa poderá ser construída dessa maneira e, mesmo assim, o será em um tempo e a um custo muito maiores do que seria necessário, para não falar do aspecto arquitetônico, uma vez que, em face da urgência dos carecimentos, o construtor será obrigado a empregar o material disponível e a adaptá-lo com grandes prejuízos para o projeto original (ouvi essa comparação de Ladislau Dowbor, meu colega de Conselho da Comunidade Solidária).

De sorte que, desgraçadamente, boa parte das políticas sociais concorre para a manutenção da pobreza e não para a sua erradicação.

A seguir vamos ver como se pode alterar esse quadro, mostrando: (i) por que a pobreza e a exclusão social devem ser prioritariamente enfrentadas por programas inovadores de investimento em capital humano e em capital social; (ii) por que as políticas de indução ao desenvolvimento devem ser a principal referência numa estratégia social, e não as políticas assistenciais, por mais necessárias que estas sejam ou possam parecer; e (iii) por que uma estratégia social para o Brasil, entendida como estratégia de desenvolvimento social, deve incorporar, com destaque, uma estratégia de indução ao desenvolvimento local integrado e sustentável, o chamado DLIS.

As três questões colocadas acima se relacionam tão intimamente que não seria necessário, nem adequado, respondê-las em separado. Na verdade estamos tratando aqui de um mesmo problema: da relação entre desenvolvimento, capital humano e capital social. Para responder às questões acima bastaria estabelecer tal relação. Pois o DLIS é uma estratégia de indução ao desenvolvimento que emprega uma tecnologia social inovadora de investimento em capital humano e em capital social. Bastaria, portanto, falar do DLIS, ou seja, justificá-lo.

De todo modo, podemos partir de algumas evidências que se referem, diretamente, às duas primeiras questões colocadas acima. Estas evidências são as seguintes.

Combater a pobreza e a exclusão social não é transformar pessoas e comunidades em beneficiários passivos e permanentes de programas assistenciais, mas significa, isto sim, fortalecer as capacidades de pessoas e comunidades de satisfazer necessidades, resolver problemas e melhorar sua qualidade de vida.

O fortalecimento do capital humano e do capital social é, portanto, ingrediente sem o qual as políticas públicas e as ofertas de serviços governamentais não serão eficientes nem suficientes. Isso significa que as políticas de indução ao desenvolvimento (humano e social) devem constituir a principal referência numa estratégia social (e não as políticas compensatórias e assistenciais, por mais necessárias que estas sejam ou possam parecer).

Sustento que visões e práticas conformes a essas evidências concorrem para configurar um novo padrão de relação entre Estado e Sociedade, alicerçado na participação dos cidadãos e de suas comunidades e organizações, na parceria entre múltiplos atores, na articulação inter e intragovernamental, na descentralização, na convergência e na integração das ações.

Esse novo paradigma está baseado em algumas idéias. Na idéia de responsabilidade. Na idéia de que a responsabilidade do cidadão e de suas organizações é complementar – e não apenas suplementar – ao dever do Estado. Na idéia de que responsabilidade social é, principalmente e antes de tudo, responsabilidade pelo desenvolvimento social.

Essa responsabilidade é dos governos em todos os níveis, das empresas e das organizações da sociedade civil; ou seja: de todos os setores da sociedade. Em última instância, a responsabilidade social é, podemos dizer assim, uma responsabilidade política geral pelo desenvolvimento social.

Isto posto, voltemos às relações entre desenvolvimento, capital humano e capital social.

DESENVOLVIMENTO, CAPITAL HUMANO E CAPITAL SOCIAL

Quando falam em capital humano, as pessoas, na maior parte dos casos, estão usando uma metáfora econômica para se referir aos níveis de educação e saúde da população. Como todo mundo sabe que na modernidade os economistas "fazem a cabeça" dos policy makers, usar o termo 'capital' – travestindo em linguagem econômica alguns conceitos sociais – parece torná-los mais palatáveis.

Todavia, por incrível que pareça, do ponto de vista do desenvolvimento, o principal elemento do chamado capital humano não é, como se poderia pensar, por exemplo, o nível de escolaridade ou a expectativa de vida da população. Isso pode valer do ponto de vista das chamadas políticas sociais, na qualidade de políticas de oferta estatal, quer dizer, da ótica da proteção social, e não do ponto de vista da promoção do desenvolvimento social.

Do ponto de vista do desenvolvimento, o principal elemento do capital humano, o que distingue e caracteriza o humano como ente construtor de futuro e, portanto, gerador de inovação, é a capacidade das pessoas de fazer coisas novas, exercitando a sua imaginação criadora – o seu desejo, sonho e visão – e se mobilizando para desenvolver as atitudes e adquirir os conhecimentos necessários capazes de permitir a materialização do desejo, a realização do sonho e a viabilização da visão. Ora, isso tem um nome (que se refere a um conceito deslizado do âmbito empresarial, mas não necessariamente a ele restrito): chama-se 'empreendedorismo'.

Perceber isso é muito importante para uma estratégia de desenvolvimento social, como veremos adiante. Se não liberarmos a capacidade das pessoas de sonhar e de correr atrás dos próprios sonhos, se não criarmos ambientes favoráveis à inovação, não há como induzir o desenvolvimento. Mesmo que resolvêssemos as questões básicas de educação e saúde, tal não seria o bastante.

Igualmente, quando se fala agora, e cada vez mais, de capital social, muitas vezes as pessoas estão apenas ornamentando seu discurso sobre o desenvolvimento, tornando-o aggiornato para ser aceito nos círculos bem-pensantes e parecer mais atrativo aos olhos de financiadores, como, por exemplo, algumas agências multilaterais.

Então, trabalhando ainda com metáforas econômicas, as pessoas falam de "acumulação de capital social" para tentar expressar, de alguma forma, a quantidade, o volume ou a freqüência de certas características extra-econômicas, de formas não-financeiras de poupança que deve possuir uma sociedade para alcançar a prosperidade econômica, ou seja, para atingir o que boa parte dos economistas quer entender por desenvolvimento. Mas muitas dessas pessoas não se dão conta de que a noção de 'capital social' é uma velha idéia tocquevilliana, originalmente política – não econômica.

Isso também tem conseqüências muito importantes do ponto de vista de uma estratégia de desenvolvimento. Pois não basta concordar com a idéia de que o capital (econômico) propriamente dito não consegue se acumular e se reproduzir sustentavelmente em ambientes onde não exista um estoque suficiente desse outro tipo de "capital" que chamamos de capital social. É preciso entender por que isso ocorre. Ou seja, é preciso compreender os processos pelos quais (e as condições nas quais) o chamado capital social é produzido e reproduzido na sociedade. Esses processos e essas condições dizem respeito às formas como a sociedade se organiza e aos modos como ela regula seus conflitos, isto é, diz respeito ao que se chama de poder e de política. Por não entender isso, boa parte das pessoas não consegue ver que o desenvolvimento é uma questão política; fundamentalmente política.

Vamos tomar um exemplo. Diz-se que os japoneses, com toda a sua determinação, disciplina e competência tecnológica, não conseguem alcançar os resultados obtidos pelo Vale do Silício, na Califórnia. Explica-se que o estoque de capital social é maior no Vale do Silício do que nos keiretsu japoneses. Por quê?

Não custa nada ver outro exemplo, inspirado pelo estudo tocquevilliano que Robert Putnam fez na Itália (e que foi publicado em 1993 sob o título: "Para que a democracia funcione"): Milão e Bolonha, na Itália, têm mais prosperidade econômica do que Palermo e Cosenza. Explica-se que no Norte da Itália existe mais geração e reprodução de capital social do que no Sul. Por quê?

Se formos investigar o porquê, descobriremos que os padrões de organização e os modos de regulação estão diretamente envolvidos na capacidade das sociedades de cooperar, formar redes, regular seus conflitos democraticamente e, enfim, constituir comunidade.

No Vale do Silício existem muitas redes informais, existem múltiplos laços de conexões horizontais entre pessoas e organizações e uma cultura democrática mais forte e mais enraizada do que nas unidades produtivas do Japão. Igualmente, na região Norte da Itália existiam e existem mais redes sociais em funcionamento do que na região Sul.

As conexões horizontais mencionadas acima são, principalmente, aquelas extra-econômicas e extraparentais, que já foram chamadas de "laços fracos", ou seja: não imediatamente interessadas (não relativas à obtenção de salário ou lucro, nem à sua defesa, como as relações corporativas) e não determinadas por fatores imunes à vontade do sujeito, como as relações forçadas por herança genética comum, como consangüinidade ou raça, ou impostas heteronomamente pelo padrão de organização ou pelo modo de regulação predominantes.

Que conexões são essas, que "laços fracos" são esses que, embora vistos como fracos, têm o condão de "produzir" uma forma ou um tipo de "capital" sem o qual, tudo indica, não pode haver prosperidade econômica? São conexões em rede, constituídas a partir de valores compartilhados e objetivos comuns e que se referem à maneira como as pessoas convivem – às emoções e às razões pelas quais permanecem juntas, à forma como se relacionam e ao modo como regulam seus conflitos e se conduzem coletivamente.

Estou falando de relações geradoras de capital social: quanto mais freqüentes e quanto mais fortes forem essas relações ("fracas"), mais capital social será produzido e reproduzido e mais capacidade terá uma sociedade de cooperar, formar redes, regular seus conflitos democraticamente e, enfim, constituir comunidade.

A QUESTÃO DO AMBIENTE FAVORÁVEL AO DESENVOLVIMENTO

Embora o conceito de capital humano tenha aparecido há mais tempo nos debates, do ponto de vista do sujeito interessado em induzir ou promover o desenvolvimento o capital social vem primeiro, em termos lógicos. Porque o capital social tem a ver, mais diretamente, com o ambiente (social) propício ao que chamamos de desenvolvimento. Mas isso não quer dizer que vamos ter que investir primeiro no capital social e, só depois, no capital humano; nem, por outro lado – o que é um erro freqüente –, imaginar que, investindo no capital humano, o resultado desse investimento seria um incremento do capital social, como se o social fosse constituído pela soma das unidades humanas coexistentes numa dada localidade. As duas coisas podem e devem ser feitas simultaneamente.

Do ponto de vista do desenvolvimento social e humano sustentável, criar um ambiente favorável ao desenvolvimento é começar investindo no capital social (quer dizer, na capacidade da sociedade de cooperar, formar redes, regular seus conflitos democraticamente e, enfim, constituir comunidade) e no capital humano (sobretudo no empreendedorismo). Sem a base de confiança fornecida pela cooperação ampliada, acumulada e reproduzida socialmente e sem empreendedorismo, dificilmente conseguiremos promover o desenvolvimento, como mostram numerosas evidências registradas em todas as partes do mundo.

Podemos dizer a mesma coisa de outra maneira: um ambiente favorável ao desenvolvimento depende da existência de uma cultura de cooperatividade sistêmica, de uma cultura de networking, de uma cultura democratizante e de uma cultura empreendedora; ou seja, para resumir, de uma cultura de desenvolvimento, e não apenas de uma cultura de crescimento.

Ora, só podemos falar de cultura se existem comportamentos que se mantêm por transmissão não genética; que se reproduzem "automaticamente" em função de padrões de normas e valores assumidos coletivamente em virtude de os indivíduos participarem das mesmas redes de conversações. Através das conversações circulam emoções e idéias que incentivam e avalizam certos tipos de atitudes e desestimulam e desaprovam outros tipos de atitudes. Essa circulação de emoções e idéias obedece uma certa regularidade, constituindo ciclos fechados que caracterizam um determinado padrão. Se não fosse assim, não se poderia distinguir uma cultura de outra ou nenhuma cultura persistiria.

Por isso é tão difícil mudar uma cultura. Por isso não basta fazer discursos dizendo que é preciso adotar novos modelos de desenvolvimento. Os discursos, como se diz: "entram por um ouvido e saem pelo outro". Se as circularidades inerentes às conversações predominantes numa determinada coletividade não se alteram, a estrutura e a dinâmica dessa coletividade não podem mudar – por mais que alguém queira impor a mudança, mesmo os chefes mais poderosos.

Essa é uma das razões pelas quais a maioria das tentativas de transplantar modelos de uma realidade cultural para outra não funciona do jeito que gostaríamos que funcionasse, tendo um impacto realmente muito pequeno nas sociedades que foram tomadas como "pacientes" dessas tentativas.

É claro que a questão do ambiente favorável é muito complexa. O que significa um ambiente favorável ao desenvolvimento? Significa muitas coisas: condições físico-territoriais e ambientais, econômicas, sociais, culturais, político-institucionais e científico-tecnológicas favoráveis.

Nenhuma organização pode se desenvolver num ambiente inadequado. Uma empresa de software situada no Vale do Silício, na Califórnia, é uma coisa bem diferente de uma empresa equivalente localizada em Irauçuba, no Ceará. Não é nem preciso explicar por quê.

Uma pequena propriedade onde se cultiva hortifrutigranjeiros, nas cercanias de São Paulo, terá condições mais favoráveis de apresentar um desempenho sensivelmente superior ao de um empreendimento equivalente situado na periferia de São Luiz do Maranhão. E também não é preciso explicar por quê.

Uma ONG dedicada à pesquisa em sociologia política situada no Rio de Janeiro terá muito mais chances de se desenvolver do que uma ONG equivalente de Macapá. Mas um centro dedicado à pesquisa experimental na área de inseminação artificial em bovinos localizado em Uberaba terá muito mais chances de se desenvolver do que um centro equivalente situado em Florianópolis. E talvez aqui já seja necessário explicar por quê.

Se quisermos identificar quais são os fatores ambientais realmente decisivos para o desenvolvimento de uma localidade ou organização, teremos de verificar os níveis do capital humano e do capital social existentes no seu ambiente.

No caso do desenvolvimento local, o ambiente não diz respeito, entretanto, apenas às cercanias da localidade, e sim a tudo o que está no âmbito das relações internas e externas à localidade. Dependendo da natureza e do setor de atividade considerados, o ambiente pode ser o município, a microrregião, o estado, o país, a região do mundo ou até o mundo todo.

Em geral existem muitos âmbitos externos de uma localidade. Existem condicionamentos econômicos que são mundiais, existem marcos regulatórios (leis, normas de comércio, sistemas fiscais), que são regionais (no caso, por exemplo, da União Européia) ou nacionais. Existem condicionamentos culturais que são regionais: por exemplo, a cultura dos imigrantes na Serra Gaúcha é totalmente diferente da cultura do sertanejo na região do Cariri. E vá-se lá dizer ao povo do Cariri que eles devem tentar implementar tal ou qual iniciativa porque deu certo em Canela!

É impossível esgotar esse assunto, fazendo uma listagem de todos os fatores e condicionamentos externos que intervêm favoravelmente ou desfavoravelmente no desenvolvimento da localidade. Eles são variados, são mutáveis, incidem diferentemente em cada tipo de organização e em cada setor de atividade. Ademais, eles se compõem em combinações diferentes, que variam, por sua vez, em cada momento, ao sabor de constelações imprevisíveis de outros fatores conhecidos e desconhecidos. Num dado momento, um empreendimento dá certo porque há um clima psicossocial favorável no país. Em outro momento, o mesmo empreendimento fracassa por causa da alta do dólar provocada por crises que ocorrem em outros países; basta examinar, por exemplo, o que ocorreu no Brasil em virtude das crises mexicana e asiática. E por aí vai.

Nós estamos dizendo que, apesar disso, em quaisquer circunstâncias, o desenvolvimento de uma localidade depende, entre inumeráveis outros fatores, sempre de dois fatores: o capital social e o capital humano existentes nos ambientes das suas relações.

Mas não se pode fabricar em laboratório a "pílula" ou a "injeção" de capital social ou de capital humano, as quais, uma vez tomadas ou aplicadas, produziriam as culturas de cooperação, de trabalho em rede, de democracia ou de empreendedorismo capazes de alavancar o desenvolvimento.

Se fosse assim, o Norte da Itália já teria sintetizado e aplicado a sua própria "vitamina" no Sul da Itália. Ou, entre nós, uma boa dose da receita de "chá de Blumenau" teria sido a solução para os problemas de Crateús.

Nós sabemos que as coisas não funcionam assim. Porque nós sabemos que não existe "a" receita, "a" fórmula do desenvolvimento.

Tenho sempre defendido esse argumento, mas não custa repeti-lo aqui. Durante muito tempo acreditamos que o fator econômico era o único determinante do desenvolvimento. Hoje sabemos que o desenvolvimento tem muitas dimensões – econômica, social, cultural, ambiental e físico-territorial, político-institucional e científico-tecnológica – , que mantêm, umas em relação às outras, um relativo grau de autonomia. Todas essas dimensões comparecem no processo de desenvolvimento, em conjunto, determinando-o ou, em particular, cada qual condicionando-o. Em outras palavras, estou afirmando que não existe alguma coisa como um primado da determinação econômica. Isso é um mito!

Muita gente bem intencionada imagina que poderíamos fazer no semi-árido nordestino as mesmas coisas que foram feitas em Israel. Parece tão simples, não? Entretanto, isso não é possível, ainda que tivéssemos à nossa disposição os mesmos recursos financeiros que foram investidos em Israel. Por quê?

Muita gente bem intencionada imagina que poderíamos fazer nas periferias de todas as grandes cidades do País o mesmo que é feito no cinturão hortifrutigrangeiro de São Paulo. Mas isso também não é possível. Por quê?

Em ambos os casos faltam, entre outras coisas não diretamente "econômicas", aquele capital social e aquele capital humano, com aquelas motivações e, sobretudo, com aquelas culturas que encontramos nessas localidades.

Assim como o desenvolvimento de uma localidade depende da gente que vive naquela localidade, depende também de muitos outros determinantes e condicionantes que os economistas em geral tendem a desprezar ou a julgar como externalidades.

Ocorre que, do ponto de vista do desenvolvimento (e não apenas do crescimento assinégico e, portanto, insustentável), tais fatores, ao que tudo indica, não são externalidades, porém centralidades.

Mas por mais que constatemos, como fez Fukuyama (no livro "Trust", publicado em 1995), que "uma sociedade rica e complexa não nasce inevitavelmente da lógica da industrialização adiantada. Ao contrário... o Japão, a Alemanha e os Estados Unidos tornaram-se as potências industriais líderes do mundo em grande parte porque eram ricamente dotadas de capital social e sociabilidade espontânea, não pelo contrário" – o mito da determinação econômica, contudo, permanece sendo reproduzido nas escolas e universidades, nos centros de pesquisa e nos órgãos de apoio e fomento ao desenvolvimento.

Na contracorrente dessa ideologia, ainda dominante, os nossos programas de desenvolvimento local são, fundamentalmente, programas de investimento em capital social. Quer dizer, são programas culturais, que buscam gerar elementos de novas culturas organizacionais e políticas das quais dependem, fundamentalmente, a geração, a acumulação e a reprodução ampliada do capital social.

Nossa aposta é a de que quem fizer isso, i. e., investir em capital social, estará construindo condições para o desenvolvimento com uma eficiência e eficácia muito maiores do que quem estiver preocupado apenas em impulsionar o crescimento econômico, promover o aparecimento de empresas ou distribuir renda por meio de programas compensatórios estatais, fórmulas que, sobretudo quando praticadas isoladamente, já anunciaram há muito tempo sua falência.

Desenvolvimento é movimento sinérgico, é resultado de congruências dinâmicas, isto é, construídas e reconstruídas continuamente com o meio. Tal sistema é complexo e não pode ser determinado por um ou outro fator isoladamente (nem admite principalidades determinativas de caráter universal, a priori ou ex machina). Cada novo elemento cultural gerado nesse processo nasce em virtude de uma identidade conformada por uma mudança social, isto é, por uma mudança no padrão de relações que até então se conservava – de uma mudança, vale dizer, do modo de adaptação. Sim, porque, ao contrário do que imaginavam e até hoje imaginam muitos teóricos do desenvolvimento, desenvolvimento é mudança social antes de ser qualquer tipo de resultado de circularidades intra-econômicas virtuosas.

Cada novo padrão é único, é distinto dos demais. Por isso, não existe uma fórmula – existem milhares, a rigor, milhões de fórmulas. Apostar no desenvolvimento local só pode ser, para usar uma expressão de Manuel Castells, apostar no poder da identidade. A identidade de Maragogi dá o poder de se desenvolver da sua maneira, que, certamente, não é a maneira de Verona. A microrregião de Xingó – se e quando se transformar num âmbito particular de desenvolvimento local com identidade própria – não se parecerá nem um pouco com a região da Emilia Romana.

Fica o desafio de detectar, nas diversas experiências de desenvolvimento local consideradas bem-sucedidas: (i) aqueles elementos que possam ser capazes de inspirar outras experiências bem-sucedidas de desenvolvimento (digo, precisamente, "inspirar" mesmo, porquanto não acredito, pelas razões expostas acima, em qualquer possibilidade de transplante ou aplicação); e (ii) aquelas tecnologias que podem ser "empacotadas" para viajar (esperando que não aconteça com elas o que acontece com certos vinhos, excelentes no continente europeu, mas que perdem o sabor ao atravessar o Atlântico).

De minha parte, entretanto, estou convencido de que estamos desenvolvendo no Brasil uma tecnologia social "tropical", chamada DLIS – Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável –, que poderá contribuir bastante para dar conta de uma parte considerável de nossos desafios.

Por isso qualquer estratégia social para o Brasil, entendida como estratégia de desenvolvimento social, deve incorporar, com destaque, uma estratégia de indução ao DLIS.

Mas o que é, afinal, o DLIS? Quais são as diferenças entre essa nova tecnologia e as metodologias de desenvolvimento local até então adotadas no Brasil e em vários outros países? Por que falamos em desenvolvimento local integrado e não em desenvolvimento econômico local?

Para articular uma resposta global às indagações acima vamos começar tratando das principais características dessa nova tecnologia social (chamada DLIS), examinando, antes de qualquer coisa, por que se diz que ela é nova (e inovadora). Ao examinarmos essa questão estaremos, espero, justificando o porquê de não falarmos em desenvolvimento econômico local, e sim em desenvolvimento local integrado e sustentável.

DESENVOLVIMENTO LOCAL É COISA ANTIGA?

Muita gente diz que desenvolvimento local é coisa antiga. É claro que é possível dizer isso, mais ou menos no mesmo sentido em que se diz que a globalização é coisa antiga, coisa do século 16, da era das navegações ultramarinas e dos descobrimentos. Contudo, sabemos que a globalização atual, a globalização em tempo real, é um fenômeno novo, de uma qualidade nova.

Pois bem. O mesmo ocorre com o desenvolvimento local, depois do final dos anos 80 do século 20, quando começa a emergir um novo padrão de relação Estado–Sociedade e quando as pessoas começam a questionar, para valer, o mito do primado do econômico.

Com efeito, as tentativas de explicar o processo social a partir dos movimentos ocorridos numa chamada 'base econômica' da sociedade começaram a revelar sua inconsistência menos de um século após terem sido formuladas. Mas, conquanto não estejam ainda disponíveis outras explicações coerentes abrangentes, os questionamentos ao velho paradigma científico e às tentativas de "explicação" da realidade social baseadas em modelos de causalidade unívoca e padrões de relações lineares (como as utilizadas, via de regra, por alguns economistas, quando, por exemplo, encaram o desenvolvimento social como resultado de crescimento econômico) surgiram mais intensamente nos anos 90, com o advento, sobretudo, das teorias da complexidade e das teorias do capital social.

A partir dos anos 90 as pessoas começaram a perceber que, sem atingir um certo patamar de desenvolvimento social (ou sem acumular um certo "estoque" de capital social), as sociedades têm grandes dificuldades para se expandir economicamente e para atingir o que se chama de prosperidade.

Parece óbvio que as idéias e as práticas de desenvolvimento local surgidas após esse período ou sob o influxo dessas novas concepções sistêmicas e desses mais vigorosos questionamentos ao mito do primado do econômico teriam de ser diferentes das idéias e práticas anteriores – ou mesmo de algumas idéias e práticas atuais, porém ainda atreladas a um velho paradigma – sobre o desenvolvimento local, então denominado, não por acaso, de desenvolvimento econômico local.

Ou seja, desenvolvimento local é coisa antiga. Mas o desenvolvimento local de hoje, expresso, por exemplo, pelas concepções do DLIS, da Agenda 21 Local e de algumas outras metodologias inovadoras, é coisa inédita, de uma qualidade nova.

Onde está a novidade? Podemos dizer que a novidade está em algumas visões ou concepções e em algumas idéias ou conceitos que não compareciam antes, ou que só se desenvolveram depois, no final da década de 80, as quais – em muitos casos – ainda continuam emergindo e se desenvolvendo. Dentre tais concepções e idéias novas, citaria aqui, em primeiro lugar – por ordem de importância lógica ou metodológica, e não cronológica –, a concepção sistêmica, sobretudo a concepção dos sistemas complexos adaptativos (trazendo consigo as idéias de sustentabilidade como função de integração e como conservação da adaptação).

Em segundo lugar, colocaria a hipótese da existência de vários fatores do desenvolvimento – não como externalidades, porém com o mesmo status de centralidade, os quais foram interpretados, assim, como outros tipos de "capitais" – e, sobretudo, o conceito de capital social.

Em terceiro lugar, a idéia de cooperação e de cooperatividade sistêmica como elementos sem os quais a competição e a competitividade sistêmica levam a crescimento concentrador e, portanto, a crescimento sem desenvolvimento.

Em quarto lugar, a idéia da sociedade rede.

Em quinto lugar, a idéia da radicalização ou democratização da democracia e a compreensão das relações intrínsecas entre desenvolvimento e política; quer dizer, a concepção de desenvolvimento como mudança social.

Em sexto lugar, a idéia de um novo padrão de relação Estado–Sociedade que leva em conta a existência e o papel estratégico, para o desenvolvimento, da nova Sociedade Civil, ou seja, daquele conjunto de entes e processos extra-estatais e extramercantis, também chamado recentemente de Terceiro Setor.

Não caberia fazer aqui um inventário completo de tais concepções e idéias. Vou, portanto, registrar apenas algumas notas sobre esse conjunto de visões emergentes nas últimas duas décadas.

O QUE HÁ DE NOVO SOB O SOL?

Começo com a chamada concepção sistêmica aplicada à economia. O Instituto Santa Fé, fundado em 1984 no Novo México pelo físico Murray Gell-Man, somente em 1987 começou a pesquisar coletivamente a economia como sistema complexo adaptativo, a partir de um grupo coordenado por Brian Arthur. O famoso artigo ("A economia global como processo adaptativo") no qual John Holland apresenta as características da visão de Santa Fé é de 1987. Um dos mais sérios questionamentos à visão neoclássica dos retornos decrescentes, proposto por Brian, é de 1994 (embora tenha sido ensaiado bem antes). Já as tentativas de Steven Durlauf de criar modelos complexos para estudar a interação criativa dos agentes em face da subordinação à trajetória (path-dependence) adquiriram maior consistência argumentativa somente a partir da segunda metade da década de 90.

Qual a importância dessa visão sistêmica para o nosso tema? Ora, num sistema complexo adaptativo as coisas não funcionam como imaginávamos que funcionassem.

Num sistema complexo, uma intervenção isolada em uma variável de estado não inaugura necessariamente uma nova dinâmica. Não é, por exemplo, porque distribuímos a renda (por meio de programas compensatórios) ou porque multiplicamos o número de proprietários produtivos (fundando "artificialmente" muitas micro e pequenas empresas) que a sociedade vai alcançar a prosperidade.

Ou seja, as intervenções exógenas num sistema complexo não garantem que o sistema vai se adaptar e conservar essa adaptação, rodando um novo "programa" ou andando com suas próprias pernas num novo estado (quer dizer, adquirindo uma nova qualidade caracterizada por um novo arranjo das suas variáveis de estado). Em geral, pelo contrário, o que acontece é que o sistema volta à sua dinâmica própria anterior logo que cessem as intervenções externas. Por quê?

Para entender isso é preciso entender as características de um sistema complexo. As características que John Holland elencou para a economia – descentralização, ausência de um controlador central, organização flexível (rede), adaptação contínua, novidade perpétua e dinâmica afastada do equilíbrio – também valem para outros sistemas complexos adaptativos, como a Internet, e para a própria sociedade humana sob certas condições. Vejamos, em grandes linhas, quais são tais características.

DESCENTRALIZAÇÃO

O que acontece no sistema é resultado da interação de muitos agentes atuando em paralelo. As ações de um agente em particular serão resultado de sua expectativa em relação ao que os outros agentes irão fazer. Os agentes antecipam e co-criam o mundo à sua volta.

AUSÊNCIA DE UM CONTROLADOR CENTRAL

Não há uma entidade global que controla as interações ou que tem conhecimento da estrutura global do sistema. O controle é feito pelo processo de cooperação e competição entre os agentes e mediado pela presença de instituições e regras.

ORGANIZAÇÃO FLEXÍVEL EM REDE

O sistema tem vários níveis de organização e interação. Unidades em um certo nível – comportamentos, ações, estratégias, produtos – servem de base para a construção de unidades em níveis superiores. A organização global é mais do que hierárquica, com interações entre os diversos níveis, misturando-se e criando uma complexa rede de relacionamentos e canais de comunicação.

ADAPTAÇÃO CONTÍNUA

Comportamentos, ações, estratégias e produtos são revisados continuamente, à medida que os agentes ganham experiência – o sistema está em constante adaptação. O elemento surpresa e a chance permitem que o sistema tenha muitas soluções e aproveite novas oportunidades. Eventualmente, uma dessas soluções será a escolhida, mas não necessariamente será a melhor.

NOVIDADE PERPÉTUA

Nichos são continuamente criados por novos mercados, novas tecnologias, novos comportamentos e novas instituições. O próprio ato de se preencher um nicho já cria novos nichos. O resultado é um sistema em que sempre aparecem novidades. Inovações são desenvolvidas, levando a produtos mais avançados que, por sua vez, demandam mais inovações.

DINÂMICA AFASTADA DO ESTADO DE EQUILÍBRIO

Como novos nichos e novas possibilidades estão sempre sendo criados, o sistema opera fora de uma situação de equilíbrio global, ou seja, sempre há espaço para melhora. Apesar de estar afastado do equilíbrio, o sistema possui regras que limitam seu comportamento, evitando que este se torne caótico durante o processo de adaptação e evolução.

Essa perspectiva inovadora não existia quando foram propostas as antigas metodologias de desenvolvimento local, e as pessoas que insistem em afirmar que o desenvolvimento local é, fundamentalmente, desenvolvimento econômico local, ao que parece, ainda não se deram conta de tais inovações.

Vejamos em seguida outras inovações, tão importantes para uma nova compreensão do processo de desenvolvimento das sociedades quanto a perspectiva sistêmica.

As teorias do capital social, embora tenham raízes tocquevillianas, só passaram a ser consideradas seriamente por economistas e policy makers a partir da publicação, em 1988, do famoso artigo de James Coleman, "Social Capital in the Creation of Human Capital".

As investigações de Manuel Castells sobre a sociedade rede somente foram divulgadas na segunda metade da década de 90. O mesmo ocorreu com as novas teorias sobre as redes sociais. Os trabalhos sobre o chamado "efeito de mundo pequeno" em redes sociais e sobre os meios pelos quais pode-se encurtar a extensão característica de caminho entre nodos e clusters de nodos aparentemente isolados uns dos outros dentro de redes peer-to-peer (P2P), são também do finalzinho daquela década. Esta última referência é muito importante. Só há três anos reúnem-se os conhecimentos necessários para validar a intuição pioneira de Jane Jacobs, a reconhecida urbanista que, em 1961, em "Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas", disse que – em comparação com a população total – é necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas conectadas horizontalmente para "vivificar" uma localidade. "Basta", disse ela, "cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior", desde que essas pessoas tenham tempo para se conhecer e para "investir em colaboração proveitosa". Jacobs, diga-se de passagem, foi a primeira pessoa a utilizar a expressão "capital social" no sentido hoje atribuído ao conceito.

Isso para não falar da Internet, que, na sua forma atual (quer dizer, a partir da existência da www: World Wide Web), começou apenas em 1994, no início de 2000 já incluía 350 milhões de usuários e antes de 2007 deverá ter, no mínimo, 2 bilhões de pessoas conectadas. E para não falar de uma nova grande rede mundial que pode estar surgindo, apoiada na infra-estrutura física da Internet, porém com outra lógica de funcionamento, baseada em ligações P2P, tornando impossível o controle por parte de qualquer tipo de mainframe – o que trará importantíssimas conseqüências políticas.

As mudanças introduzidas por essas redes que conectam horizontalmente pessoas com pessoas em tempo real estão alterando a economia e as relações entre economia, cultura e sociedade e vão alterar, sobretudo, as relações políticas. As relações entre os diferentes fatores do desenvolvimento estão sendo, pois, radicalmente modificadas.

O argumento de que a globalização deixa de fora a maior parte das atividades econômicas e que, nas territorialidades não atingidas pela globalização, vale aplicar um determinado tipo de estratégia de indução ao desenvolvimento que estabeleça uma dinâmica própria, imune àquela puxada pelos setores de vanguarda, não é um argumento que se sustente diante da existência das redes que têm capacidade de conectar seus nodos em tempo real. Para que um conjunto isolado deixe de sê-lo basta que 1% de seus elementos tenha ligações de longo alcance, como mostraram recentemente D. J. Watts e S. H. Strogatz (1998) em "Collective Dynamics of ‘Small-World’ Networks" (Nature, 393), confirmando, de certa forma, a premonição de Jane Jacobs mencionada antes.

Há os que, não obstante, insistem em analisar as coisas a partir de um prisma fundamentalmente econômico, argumentando agora a partir da mudança do padrão produtivo para justificar o primado da economia e manter a velha visão.

Me parece, no entanto, que a questão central não está na estruturação ou na reestruturação produtiva, em saber como funcionam as coisas, por exemplo, no fordismo ou no pós-fordismo, na sociedade industrial ou pós-industrial, mas no tipo de sociedade que permite a replicação de um certo padrão de relações entre os fatores do desenvolvimento.

A questão central não está na estrutura e no funcionamento da economia, mas na morfologia e na dinâmica da sociedade. A economia é uma das regulações emanadas da sociedade, que diz respeito às relações que os humanos estabelecem entre si em função dos recursos, sobretudo às relações entre abundância e escassez. Todavia, existem outras regulações sociais que não derivam da economia, como, para citar um exemplo óbvio, as regulações políticas democráticas.

(Seria necessário argumentar mais extensamente para justificar tais afirmativas, mas isso não cabe aqui. De todo modo, os novos argumentos devem ser construídos com duas premissas que contrariam a visão econômica tradicional, a saber: 'modo de desenvolvimento' não é igual a 'modo de produção'; e, é a sociedade que condiciona o comportamento da economia e não o contrário.)

O que tudo isso significa? Significa, voltando ao nosso tema, que não se trata mesmo de desenvolvimento econômico local, a não ser enquanto se trate, simultaneamente, de desenvolvimento social local, de desenvolvimento ambiental e físico-territorial local, de desenvolvimento cultural local, de desenvolvimento político-institucional local e de desenvolvimento científico-tecnológico local.

Querer resumir tudo isso a desenvolvimento econômico local só se justifica com base na crença de que o desenvolvimento econômico acarreta o desenvolvimento de todas essas outras dimensões. Penso que alguém precisa estar muito possuído pelo mito do primado do econômico para deixar-se impregnar por essa crença. De certo modo todos o estamos, em alguma medida. Trata-se de um discurso que vem sendo repetido ad nauseam desde o século 19, que veicula uma interpretação decorrente de um olhar, ideológico stricto sensu, que quer transformar um objeto particular (no caso, um fator ou variável do desenvolvimento) em único e universal objeto.

Em termos práticos, essas considerações têm alguma incidência? Creio que sim. Por exemplo, quem quiser promover o desenvolvimento e, para isso, agir constantemente apenas fomentando o surgimento de empresas, decerto não conseguirá realizar o seu intento. As empresas fomentadas morrerão. Na maior parte dos casos, em 60% a 80% dos casos, serão abatidas em tenra idade, antes de completar dois anos. As causas desses números alarmantes de mortalidade empresarial na infância, em sua imensa maioria, são os níveis insuficientes de capital humano e de capital social presentes nos ambientes interno e externo dessas empresas. Ou seja, existem outros fatores de desenvolvimento que não são afetados por decorrência de investimento econômico.

Além disso, desconfio que o propalado sucesso de algumas experiências de "inchamento" de capital empresarial, por assim dizer, acabarão revelando seus limites. A partir de certo limite, o aumento de iniciativas empresariais, além de acelerar a destruição de capital natural, pode levar a desinvestimentos em capital humano e em capital social.

Quero dizer que Verona pode não ser aquela maravilha de exemplo para o mundo. Que a insustentabilidade do modelo vêneto pode, quem sabe, acabar se revelando, mais cedo ou mais tarde, à medida que os jovens prefiram parar de estudar para montar sua própria empresa (reduzindo o estoque de capital humano), que a existência de uma empresa por família acabe vincando a sociedade, na sua base, por uma cultura competitiva e adversarial que destruirá o ambiente cooperativo (reduzindo o estoque de capital social) necessário para sustentar as atividades produtivas.

Qual o limite? Todo mundo deve ser empresário? Qual o valor ótimo do capital empresarial? Qual o limite da renda sustentável (aquele a partir do qual o sobreconsumo e o lixo decorrente estariam além da capacidade de reciclagem da sociedade)? Não sabemos e não podemos saber de antemão. Porque esses limites dos fatores de desenvolvimento são próprios de cada sistema, flutuam em torno de valores ótimos em cada sistema, uma vez que dependem de cada constelação particular de outros fatores que seja capaz de conservar a sua adaptação e, assim, manter a estabilidade do sistema social afastado do estado de equilíbrio.

Portanto, a única intervenção sistêmica produtiva num sistema complexo é aquela que opera sobre os modos de regulação do sistema como um todo e não sobre um ou outro fator ou variável do desenvolvimento isoladamente.

As teorias da complexidade nos dizem que para introduzir mudanças em um sistema social é necessário induzir mudanças no comportamento dos agentes do sistema que interagem em termos de competição e colaboração. E isso, como já foi dito neste livro – mas não custa repetir –, só pode ser feito pela mudança das relações que se reproduzem na sociedade, pelas quais os papéis sociais são distribuídos de uma determinada forma. A única maneira de intervir nesse sistema complexo é intervindo nos padrões de organização e nos modos de regulação por meio dos quais os papéis sociais são distribuídos e os comportamentos dos agentes são reproduzidos. Ora, isso tem um nome: chama-se política.

Não custa repetir. Por isso se diz que o desenvolvimento é uma questão política. Porque a política é um modo de regular o entrechoque de opiniões e interesses que determina a configuração de um sistema social como sistema de agentes que interagem em termos de competição e colaboração. Se esse modo não for alterado, não há mudança de comportamento coletivo, não há mudança de papéis e não há mudança na composição, na quantidade ou na qualidade do que chamamos de capital humano e de capital social – este último, sobretudo, um conceito essencialmente político. Ora, se não houver alteração do capital humano e do capital social, não pode haver desenvolvimento, de vez que todo desenvolvimento é desenvolvimento social.

 


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