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A construção do sujeito no MST: assentamento Eldorado Dos Carajás (página 2)

Suzana Maria Pozzer Da Silveira
Partes: 1, 2, 3, 4

´Casa-Grande & Senzala` (1933) de Gilberto Freyre representa mais que um dos textos fundadores da moderna interpretação do Brasil. Os dois termos dão corpo a um paradigma e a uma forma de habitar o mundo. Habitar na forma da Casa-Grande significa estabelecer uma relação patriarcal de dominação social, de criação de privilégios e hierarquias. Habitar na forma da Senzala é ser espoliado como ser humano, seja na forma do escravo negro, feito "peça" a ser vendida e comprada no mercado, seja do trabalhador, usado como "carvão a ser consumido" (Darcy Ribeiro) na máquina produtiva. Estas duas figuras sociais superadas historicamente, ainda perduram introjetadas nas mentes e nos hábitos, especialmente de nossas oligarquias e elites dominantes. [...] Ocorre que os da Senzala sempre resistiram, se revoltaram, criaram seus milhares de quilombos, se fundiram com os demais pobres e marginalizados e conseguiram, especialmente a partir de 1950, se organizar num sem-número de movimentos sociais populares.

Esses movimentos sociais que menciona o referido autor, principalmente no histórico das lutas pela terra, procuram com sua forma de atuação/organização desnaturalizar essa ordem social que tende a manter o marginalizado/excluído na sua condição de expropriado, alienado e, dessa forma, como sendo principal responsável por sua pobreza. Os movimentos sociais geralmente transgridem essa lógica, procurando criar novas relações, a fim de que os excluídos possam tornarem-se sujeitos autônomos.

Contudo, por estarem inseridos nesse contexto, onde ainda persistem no imaginário as figuras da "Casa Grande & Senzala", entre outros aspectos, muitas vezes, certas práticas de dominação tendem a se manifestar no âmbito dos próprios movimentos sociais, tais como: tutela, autoritarismo, vanguardismo, rígidas hierarquias, etc. Outrossim, em relação ao contexto atual, verifica-se que os movimentos sociais procuram criar novas relações tendo por mote a radicalização da democracia, com o lema de que "um outro mundo é possível". Um exemplo emblemático é o Fórum Social Mundial em que não predominam hierarquias, pois consiste num evento que prima por estabelecer uma estrutura organizacional em rede, de forma horizontalizada e descentralizada. Dessa forma, é difícil ter alguém que fale em nome do Fórum, pois não há um representante, mas múltiplos (todos os seus participantes/diversos movimentos sociais).

Nesse contexto, essa pesquisa procura analisar o "sujeito" num dos principais movimentos sociais da atualidade: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, levando em conta, principalmente, aspectos como autonomia e democracia. Para tanto, tem como ponto de partida os diferentes olhares sobre o movimento, em especial os mais polarizados. Além disso, para o desenvolvimento das principais questões, hipóteses, roteiro de entrevista, leva em consideração o contexto do meio rural brasileiro, assim como as principais formas de luta e de organização dos camponeses em movimentos sociais.

De acordo com os referidos propósitos, os capítulos foram estruturados da seguinte forma: no Capítulo I procura-se contextualizar as raízes históricas para o surgimento do MST, tais como:

principais lutas camponesas; a posição do camponês na estrutura social; a forma como foi tratado, tanto pelas elites rurais, como urbanas. Também são destacados os principais aspectos da organização, histórico e formas de luta do movimento. No Capítulo II faz-se a apresentação das abordagens mais polarizadas a respeito do sujeito no MST, seguida das questões e hipóteses desse trabalho. No capítulo III encontra-se o referencial teórico para análise do sujeito, levando em conta questões como: O que é ser sujeito? O que é ser autônomo? O que se entende por relações democráticas, entre outros. No capítulo IV, através da metodologia é esclarecida a forma como foi realizada a pesquisa para coleta e análise dos dados. Delimitou-se o campo de análise para um assentamento do MST (Assentamento Eldorado dos Carajás), fazendo com que essa pesquisa constitua-se como um estudo de caso. Posteriormente, faz-se a análise dos dados e as considerações finais.

Essa pesquisa visa, principalmente, contribuir para o fortalecimento da democracia, pois através da análise do sujeito, nos termos aqui propostos, será possível verificar se estão presentes, no assentamento, relações de tutela, autoritarismo, as quais ainda persistem no meio rural brasileiro, ou se o movimento conseguiu, realmente, romper com essa lógica e constituir-se como embrião de relações democráticas.

CAPÍTULO I

MST: ORIGENS E TRAJETÓRIA

1-A organização e luta dos camponeses pela terra e direitos no Brasil

A origem do termo camponês tem suas raízes em duas vertentes, segundo Queiroz (1973): 1.ª - Histórica, com os trabalhos do historiador Francês Marc Bloch sobre a história rural de seu país; 2.º - Sócio-Antropológica, com os trabalhos de Robert Redfield. No Brasil, este termo foi usado de certa forma recentemente, pois os designativos ao homem do campo eram termos pejorativos, tais como caipira; caiçara, tabaréu, caboclo, entre outros. Conforme a referida autora:

O termo "campesinato" é de origem recente em português, e vem sendo empregado principalmente no domínio das Ciências Sociais para significar o conjunto de camponeses; é um substantivo coletivo [...]. Deriva do adjetivo "campesino", que é sinônimo de campestre, de rústico. Os substantivos correlatos são camponês e campônio, isto é, habitante do campo, aldeão, indivíduo rústico (QUEIROZ, 1973, p. 15).

A fim de entender as ações políticas dos camponeses faz-se necessário compreender a exclusão do camponês do pacto político. Martins (1983) esclarece que essa exclusão não é apenas política, mas econômica e social, que definem o lugar do camponês no processo histórico.

A ausência de um conceito, de uma categoria, que o localize socialmente e o defina de modo completo e uniforme constitui exatamente a clara expressão da forma como se tem dado a sua participação nesse processo – alguém que participa como se não fosse essencial, como se não estivesse participando. (MARTINS, 1983, p.25).

Esse modo de ver/tratar o homem do campo decorre, segundo o autor, de que sempre foram vistos como atrasados, ignorantes e incapazes de serem sujeitos de seus próprios destinos, tanto pelos mediadores que auxiliaram na organização da maioria dos movimentos rurais, quanto pela elite intelectual do meio urbano, assim como das elites agrárias (Idem, 1989). Essa descaracterização tem em comum o desprestígio ao camponês, visto como alguém incapaz de ser sujeito. Um exemplo clássico no campo da esquerda é do marxismo, para o qual o camponês iria extinguir-se, permanecendo apenas duas classes: o proletariado e a burguesia, ou seja: [...] ´O campesinato é arcaico, tradicional e vai deixar de existir`. E a história advoga contra, porque todos os movimentos revolucionários da América Latina foram camponeses. O proletariado nunca fez a revolução (MITIDIEIRO, 2006).

1.1-Principais fases da luta pela terra

Pode-se dividir, de modo geral, a partir da Lei de Terras[2]a história dos movimentos sociais rurais em duas fases:

1.ª FASE - "Messiânica" (1850/1940) – forte presença de líderes religiosos populares que pregavam ideologias milenaristas. Exemplo: Canudos (1870-1897) e Contestado (1912 -1916); 2.ª FASE – "Lutas Radicais Localizadas" (1940 – 1955) – forte presença das demandas sociais, políticas e ausência do cunho messiânico. Exemplo: Ligas Camponesas (1954); Luta dos posseiros em Trombas e Formoso (1955); Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura/CONTAG (1963), entre outras. A Partir da década de 1950, a atuação dos partidos políticos e do movimento sindical passou a se intensificar no campo. De modo geral dois fatores contribuíram para a modificação da situação dos camponeses no meio rural: 1) abolição da escravatura; 2) Golpe de Estado.

No período escravista também havia o trabalhador rural que prestava serviços aos fazendeiros como agregado (relação de troca: de serviços, de produtos por favores). Dessa forma, os camponeses deviam submeter-se as decisões dos senhores, sendo reconhecidos como extensão dos direitos dos fazendeiros, através de sua concessão. Além do camponês agregado existiam os posseiros e sitiantes.

[...] a condição de posseiro dizia respeito à relação jurídica com a terra, quando o camponês tinha a posse, mas não tinha o domínio. O sitiante era o pequeno agricultor independente, dono de um sítio, um lugar na terra, e não de uma sesmaria. Agregados e moradores eram também, no entanto, tidos como sitiantes, já que sua área de roça no interior da fazenda também era definida como sítio, ou roçado (Martins, 1983, p. 39 – 40).

A forma de exclusão dos índios, mestiços, pobres, decorreu primeiramente do impedimento do acesso destes a terra[3]e da exclusão política dos pobres (a Constituição de 1824 estabelecia uma quantia econômica para ser eleitor ou elegível). Esses critérios eleitorais se mantiveram até a Proclamação da República, em 1889.

No início da República surgiram as primeiras grandes lutas camponesas no Brasil. Dois fatos marcaram esse período: o fim da escravidão (maio de 1888) e a transferência das terras devolutas da União para os Estados. Os camponeses passaram a adquirir terra mediante oferta compulsória de trabalho aos grandes fazendeiros[4]Também passaram a participar da vida pública, sendo-lhes permitido votar, com exceção dos analfabetos e mendigos. Contudo, predominou nesta época o coronelismo e o rígido controle dos chefes políticos sobre os votos dos eleitores (voto de cabresto) (Ibidem, 1983).

1.2 - Os movimentos e lutas camponesas

Em 1955 surgiram, no Nordeste, em especial Pernambuco e Paraíba, as Ligas Camponesas devido principalmente à crise política regional. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) apoiava as Ligas no seu início, sendo posteriormente por ele combatidas. Além do PCB outros mediadores passaram a estimular a organização dos camponeses, tais como a Igreja Católica e o trabalhismo.

No entanto, cada um desses mediadores tinha uma forma de ver o camponês e a partir disso procurava organizá-lo.

A Igreja Católica (setores progressistas) apoiava a organização dos camponeses, mas defendia o direito da propriedade, insistindo na importância da sua função social. Tentava evitar que a pressão pela reforma agrária se constituísse num atentado contra a propriedade rural (Ibidem, 1983). Além disso, a questão da propriedade da terra para a Igreja era mediação para outras questões como ética, sociais e políticas, ou seja, a preocupação da Igreja era com o "problema da humanidade do homem". Dessa forma, os documentos episcopais passam a registrar e denunciar, por volta dos anos 1950, as relações de trabalho no meio rural, a exploração, os maus tratos ao homem do campo. A Igreja lutava contra o clientelismo, a relação "patrão-dependente" e as formas de sujeição pessoal, enfim pretendia defender os direitos dos trabalhadores já existentes em Leis, mas que não eram cumpridos. Já o setor mais conservador dessa mesma Igreja foi crítico às Ligas Camponesas, as quais na sua perspectiva, estariam querendo instituir o comunismo no Brasil.

Não rejeitamos o comunismo somente porque se declara irredutivelmente materialista e ateu. A doutrina marxista nega também outros direitos inauferíveis da pessoa humana, como a autonomia individual, a liberdade, toda a ordem jurídica independente do Estado, a propriedade particular dos meios de produção e emprega métodos de ação incompatíveis com a filosofia Cristã da vida, como a luta de classes por quaisquer meios (SCHERER, 1969, p. 51).

A Igreja condena a situação de miséria em que vivem os camponeses, no entanto, não compartilha das teses comunistas para resolver essas questões. A reforma agrária mais urgente, na concepção da Igreja, era de primeiramente propiciar condições dignas à maioria dos agricultores, que mesmo possuindo terra, não possuíam assistência técnica, assim como a proteção necessária para o trabalho no campo. Defende que o Estado deve proteger os trabalhadores por meio de legislação, fazendo com que os proprietários agrícolas sejam obrigados a criar condições dignas de vida a seus subalternos/dependentes.

Diferente da perspectiva da Igreja Católica, o PCB ao organizar os camponeses, principalmente apoiando as Ligas Camponesas, não pretendia tal qual a Igreja promover uma entrada dos agricultores no moderno mundo capitalista, mas organizá-los para revolucionar o capitalismo. Na visão do PCB a reforma agrária era mais uma etapa da revolução democrática, em que os últimos restos feudais deveriam ser eliminados. Posteriormente o PCB, entendeu que para fazer a revolução seria necessário uma ampla Frente Democrática de Libertação Nacional. Sendo assim, ampliou o leque de alianças (inclusive com a burguesia nacional), a fim de efetivar uma revolução democrática no Brasil. "O partido entendia que um governo nacionalista e democrático pode ser conquistado nos quadros do regime então vigente. Seria o caminho pacífico para a revolução antiimperialista e antifeudal." (MARTINS, op.cit., p. 85). O PCB afastou-se das Ligas Camponesas e passou a disputar com a Igreja a organização dos sindicatos de trabalhadores rurais. Em seguida, através de um acordo entre ambos, foi criada a CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), em 1963.

As Ligas Camponesas recusaram a política de frente única acordada entre Partido, Igreja e Governo Goulart. Entendiam que a reforma agrária servia para questionar a dominação tradicional, o poder privado e todas as formas de tutelas pelas quais os camponeses estavam submetidos. Aqui as Ligas tornam-se autônomas em relação aos mediadores, conforme esclarece Martins:

Já em 1960, para o Partido a reforma agrária radical seria alcançada por etapas, através de reformas parciais. Para as Ligas, ao contrário, a reforma somente seria radical se alcançasse no seu conjunto o direito de propriedade da terra, se acabasse com o monopólio de classe sobre a terra e desse lugar à propriedade camponesa, inclusive à estatização da propriedade [...]. De qualquer modo, o golpe de 64 encarregou-se de por fim ao projeto das Ligas que era um projeto de revolução camponesa (Ibidem, p. 89).

Na defesa dos direitos dos agricultores, a Igreja Católica, principalmente sob influência de setores progressistas, através da CNBB, criou em 1975 a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a fim de integrar o trabalho de diferentes pastorais em âmbito nacional, evitando a fragmentação e dispersão.

Com o golpe de 64 os movimentos de luta pela terra foram brutalmente reprimidos, pois para a ordem vigente representavam uma ameaça comunista. Foi criado o Estatuto da Terra, a fim de controlar a agitação no campo.

A ditadura militar, desejando enfrentar as tensões agrárias de forma controlada, emitiu, em 1965, um Estatuto da Terra que reconhecia, de acordo com a Doutrina Social da Igreja Católica, a função social da propriedade privada e permitia a desapropriação para fins de assentamento agrário em caso de tensão social, e, mais tarde, na chamada Emenda Constitucional n°.1, de 1969 (outorgada pela Junta Militar que assumiu o poder quando da incapacitação do presidete Arthur da Costa e Silva) à Constituição Brasileira de 1967, passou a admitir a desapropriação mediante pagamento em títulos de dívida pública. Esta legislação, muito embora tenha permanecido largamente inoperante durante a própria ditadura, daria o quadro legal para as tentativas de reforma agrária no pós-ditadura militar (MST, 2006).

As relações dos mediadores (Igreja, partidos políticos, sindicatos, etc), conforme exposto, com os camponeses, muitas vezes restabeleciam um novo tipo de patronagem, através da tutela e do paternalismo, em grande parte decorrente da disputa entre os diferentes mediadores pelo controle dos camponeses e também pela implantação do projeto político das partes envolvidas na disputa.

Por exemplo, pode-se colocar que os camponeses possuem uma pluralidade de perspectivas, ações, e interesses, fazendo com que sejam estranhos às teorias de classes sociais, ou seja, "na idéia da eficácia histórica de uma única classe social, a classe operária" (Ibidem, 1983). A estratégia da visão das teorias das classes sociais era de tomar o poder do Estado, como principal objetivo da luta social, a fim de posteriormente implantar as mudanças necessárias para a consolidação do socialismo. No entanto, como ensina Michel Foucault há certo limitação nesta análise, pois segundo ele:

[...] para que o processo revolucionário não seja interrompido, uma das primeiras coisas a compreender é que o poder não está localizado no aparelho do Estado e que nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, quotidiano não forem modificados (FOUCAULT, 1982, p.149-150).

Em outras palavras, não significa que o Estado seja pouco importante na análise do poder, apenas destaca-se que também existem outras formas de poder nas múltiplas relações sociais que corroboram para manter a sociedade com uma estrutura caracterizada pela exclusão social, étnica, cultural, entre outros. Ou seja:

Incapaz de se concentrar, o poder ramifica-se, expande-se amplamente, constituindo, em cada espaço disponível, estruturas de micropoderes, gerando, por assim dizer, uma polimorfia, que implica a existência de redes de dispositivos[5]dispersas na sociedade. Sem foco, sem coordenação centralizada, estas redes são configuradas em um sem número de instituições e numa multiplicidade de tecnologias [....] (ROSA, 1997, p. 237-238) No entanto, retomando a análise dos mediadores com os camponeses, é preciso enfatizar que também tiveram sua importância, seja no sentido de auxiliar na organização dos camponeses, assim como mediar sua relação com as Instituições Públicas (Órgãos Governamentais, Judiciário, entre outros). Por exemplo, o PCB mantinha uma imprensa ativa[6]que além da propaganda comunista (divulgação de Congressos Internacionais, bandeiras de luta, etc), divulgava notícias sobre a realidade do campo: conflitos, exploração, direitos dos camponeses (férias, repouso remunerado, salário mínimo, direito de organização) assim como era instrumento de convocação e mobilização dos trabalhadores. Conforme esclarece Medeiros: "Se a mensagem veiculada ganhou adeptos e produziu efeitos é porque ela, de alguma forma, foi capaz de expressar as carências e tensões existentes no meio rural." (1998, p. 55).

1.3 - Nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem -Terra – MST

Somente no final do período ditatorial que houve maior re-emergência dos movimentos sociais no Brasil. O movimento sindical passou também a tornar-se mais dinâmico, sendo posteriormente vinculado a CUT (Central Única dos Trabalhadores). Em fim dos anos 70 e início dos anos 80, o MST começou a nascer na Região Sul do Brasil, tendo seu início no Rio Grande do Sul (RS).

Vários fatores contribuíram para o nascimento do MST nesse Estado, entre eles: a história política; forte presença das comunidades rurais organizadas; presença da Igreja Católica, com marcante atuação no interior do Estado.

Segundo Zander Navarro (1996), os movimentos sociais na Região Sul (RS) são resultados de três fatores: "a liberalização política do período, as mudanças estruturais na economia agrária do Estado e seus impactos sociais e a ação de setores ´progressistas´ da Igreja Católica, fatores esses que exerceram influência bastante diferenciada no tempo e no espaço agrário" (p.67).

Antes do MST, existia no referido Estado, o MASTER (Movimento dos Agricultores Sem-Terra), o qual era muito vinculado ao PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Com o Golpe Militar este movimento foi derrotado e desestruturado. Dessa forma, segundo Stedile (1999), este movimento não originou o MST, mas sim o trabalho das Igrejas Católica e Luterana. Na ótica desse autor, a gênese do MST foi determinada por três fatores: socioeconômico, ideológico, e político, tendo as seguintes características:

Fator Socioeconômico – forte mecanização da lavoura que deixou fora da produção um grande número de pessoas, as quais primeiramente migraram para o Norte e Centro-Oeste do país. Outra parte foi para a cidade trabalhar na indústria. No entanto, os agricultores não tiveram êxito na migração para outras regiões, as quais não eram propícias para a agricultura familiar. Além disso, na época (década de 1980), a crise era aguda na indústria. Sendo assim os agricultores foram obrigados a permanecer e resistir no campo originando o MST.

Fator Ideológico – a CPT – Comissão Pastoral da Terra – foi um dos principais aportes ideológicos para a organização do movimento, principalmente da Pastoral Católica e Luterana.

"A CPT foi a aplicação da Teologia da Libertação na prática, o que trouxe uma contribuição importante para a luta dos camponeses pelo prisma ideológico" (Ibidem, 1999). Devido o caráter ecumênico da Pastoral, o movimento foi desde suas origens unificado, o que evitou que surgissem vários movimentos camponeses em diferentes regiões.

Fator Político – esse fator refere-se ao movimento de democratização do país, com o qual o MST coincidiu. Um exemplo da importância desse contexto histórico foi o acampamento da Encruzilhada Natalino, o qual tinha aproximadamente seiscentas famílias. O governo federal interviu com forças militares, a fim de forçar a desistência dos colonos. Contudo, isso serviu para aumentar os apoios ao movimento, tanto político (deputados progressistas, entre outros), quanto econômico (auxílio de diversas entidades e associações). Aproximadamente trinta mil pessoas apoiaram este acampamento, sendo que na ausência desse apoio, provavelmente a construção do movimento teria sido adiada.

O MST nasce oficialmente em 1984 no encontro nacional ocorrido em Cascavel (PR) e, em 1985, no seu primeiro Congresso Nacional, expandiu-se pelas demais regiões do país, assim como definiu que sua principal "arma" seria a ocupação de terras, a fim de viabilizar a reforma agrária. Daí o Lema: "ocupar é a única solução". O movimento estava consciente que a reforma agrária só avançaria por meio da ocupação, das lutas de massa e não via institucional. Diferentes Estados da Federação passaram a realizar Congressos, formação de núcleos, de lideranças, discussões dos problemas nacionais, entre outros. Com a posse do primeiro presidente civil após a ditadura militar, em meados da década de oitenta, o MST teve mais êxito na sua expansão, ou seja, teve maior visibilidade pública, pois suas lideranças viajavam à Brasília, participavam de debates, etc.

Da mesma forma que o movimento crescia no país, a reação conservadora também organizava seus quadros, como por exemplo a UDR (União Democrática Ruralista) que procurava desmoralizar o apoio da Igreja (progressista) e entidades ao movimento. Dessa forma, aumentava a violência no campo, tanto por parte do latifúndio, quanto por parte do governo, fazendo com que o movimento se desse por conta que a conquista da terra é apenas o início da luta. "A cooperação apareceu então como a principal experiência dos assentados para resistir e manterem-se na terra" (MITSUE, 2001, p.144). Sendo assim, o lema da luta passou a ser: "Ocupar, resistir, producir".

As principais características do movimento, desde sua origem, segundo Stedile (1999), são: o seu caráter popular, ou seja, não exclui ninguém de entrar no movimento (idoso, crianças, mulheres, homens, padre, estudante, técnico, etc), diferenciando-se do sindicato em que geralmente só participam os homens, e a capacidade de articular a luta pelos interesses corporativos com os interesses de classe.

Tivemos a compreensão de que a luta pela terra, pela reforma agrária, apesar de ter uma base social camponesa, somente seria levada adiante se fizesse parte da luta de classes. Desde o começo sabíamos que não estávamos lutando contra um grileiro. Estávamos lutando contra uma classe, a dos latifundiários. Que não estávamos lutando apenas para aplicar o Estatuto da Terra[7]mas lutando contra um Estado burguês. Os nossos inimigos são os latifundiários e o Estado, que não democratiza as relações sociais no campo, não leva o desenvolvimento para o meio rural. Esse Estado está imbuído de interesses de classe. Acreditamos que o MST soube compreender e incorporar na sua ideologia, na sua doutrina, esse componente político.(STEDILE, Op.Cit, p. 35-36).

Esse elemento político do MST, segundo o autor, fez com que auxiliasse na fundação do PT (Partido dos Trabalhadores) em vários lugares, por "acreditar no caráter classista do PT". No entanto, no discurso sempre proclamou autonomia em relação ao partido.

Em relação aos demais movimentos sociais de luta pela terra, O MST procura ter abertura no sentido de aprender com os erros e acertos dos outros, principalmente dos movimentos históricos de lutas passadas pelo acesso a terra. Fazem parte desse aprendizado:

1) direção coletiva – a fim de evitar a cooptação de um líder (presidente) ou o seu assassinato;

2) divisão de tarefas;

3) disciplina:"E, estando na organização de livre vontade, tem que ajudar a fazer as regras e a respeitá-las, tem que ter disciplina, respeitar o coletivo. Senão a organização não cresce."(Ibidem, p.42);

4) importância do estudo;

5) formação de quadros (técnicos, políticos, organizativos, etc);

6) luta de massas: "A nossa luta pela terra e pela reforma agrária – já havíamos descoberto por nós mesmos – só avançará se houver lutas de massas" (Ibidem, p. 43).

7) vinculação com a base, a fim de garantir pressão popular e conscientização da população. "O direito assegurado na lei não garante nenhuma conquista para o povo. Ele só é atendido quando há pressão popular. Assim, a cooptação é a primeira arma que a burguesia utiliza contra a organização dos trabalhadores. Só depois ela utiliza a repressão.(Ibidem, p.44)".

O que instiga o movimento a se expandir em todo o território nacional, assim como tornar-se um dos maiores (senão o maior) movimento social rural da América Latina é a gritante concentração de terra em posse de poucos fazendeiros, os quais tinham um poder quase ilimitado. Isso favorecia: a concentração do poder político, através do clientelismo, da impunidade e da exploração social, entre outros fatores que acabavam dificultando a democratização das relações no meio rural. Ou seja:

Com efeito, são notáveis as diferenças de apropriação privada da terra no Brasil, conforme indicam as estatísticas oficiais: enquanto 50% dos menores estabelecimentos agrícolas apropriavam-se, em 1970, de apenas 2,9% do total da área mantida privadamente (proporção que reduziu-se para 2,4% em 1980), os 5% dos maiores estabelecimentos apropriavam-se de 67% do total da área em 1970 (e elevando esta proporção para 69,7% em 1980) (NAVARRO, 1996, p.74).

Além disso, no Brasil há 850 milhões de hectares de terra, sendo que destes menos de 70 milhões produzem grãos, fazendo com que a terra não cumpra sua função social[8]estando concentrada em poucas mãos (latifundiários, banqueiros, empresas estrangeiras, etc) (BOGO, 1999).

Dados do Atlas Fundiário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de 1996 mostram que os latifúndios (2,8% dos imóveis rurais) ocupam 56,7% da área total, enquanto os minifúndios (62,2% dos imóveis) ocupam 7,9% da área total. Os altos índices de concentração fundiária guardam relação intrínseca com a forma como se dá a utilização das terras no Brasil. O Atlas Fundiário registra o desperdício das terras - 185 milhões de hectares, 40% da área aproveitável, têm proprietários, mas não são produtivos e quase toda essa terra é apropriada sob a forma de latifúndios (MOLINA, s/n, 2006).

Com isso, o simples fato da existência do movimento já tem contribuído para um avanço no processo de democratização no meio rural, assim como de alertar para o fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Por isso o lema do movimento, em meados de 1985, de que "somente haveria democracia, se houvesse reforma agrária". Assim, fica claro que para o movimento a reforma agrária é vista como um processo de mudança social muito maior que a conquista da terra. Nesse sentido, passa a estimular a formação de novos valores[9]que devem pautar as relações dos integrantes do movimento, tais como solidariedade, mística[10]valorização da mulher (gênero), respeito as diferenças (étnico), entre outros.

Além disso, o movimento reivindica infra-estrutura para os assentamentos (escolas, luz elétrica, estradas, etc), a fim de fixar o homem no campo. Referente a sua expansão no território nacional e estrutura de organização verifica-se que:

O MST se organiza em 24 estados brasileiros. Sua estrutura organizacional se baseia em uma verticalidade iniciada nas brigadas (compostas por 50 famílias) e seguindo pelos núcleos (grupo de 200 famílias), direção regional, direção estadual e direção nacional. Paralelo a esta estrutura existe outra, a dos setores e coletivos, que buscam trabalhar cada uma das frentes necessárias para a reforma agrária verdadeira. São setores do MST: Saúde, Direitos Humanos, Gênero, Educação, Cultura, Comunicação, Formação, Projetos e Finanças, Produção, Cooperação e Meio Ambiente e Frente de Massa. São coletivos do MST: juventude e relações internacionais. Esses setores desenvolvem alternativas às políticas governamentais convencionais, buscando sempre a perspectiva camponesa (MST, 2006).

De cinco em cinco anos ocorre o Congresso Nacional do Movimento. Porém, os seus dirigentes (num total de 21 membros) são homologados em Encontro Nacional, que acontece a cada dois anos. A indicação dos nomes sempre ocorre, primeiramente, em cada Estado e, posteriormente, o nome escolhido por 50% dos votos mais um, é remetido para a coordenação nacional. (STEDILE, 1999). Em âmbito internacional o movimento está articulado a Via Campesina, a qual tem por um de seus objetivos principais organizar os camponeses em nível mundial.

Se no início do movimento o MST teve amplo apoio e parceria, principalmente, de setores progressistas da Igreja Católica (Teologia da Libertação)[11], posteriormente, no início dos anos 90 vai afastando-se da Igreja, marcando sua autonomia e orientando-se por uma ideologia "própria", ou seja, tende a aproximar-se mais das idéias de cunho marxista-leninista (MST, 2001)[12]. Neste período os partidos políticos de esquerda, em sua grande parte o Partido dos Trabalhadores/PT, passam a se fazer mais presentes no movimento. Dessa forma, simplificadamente, pode-se colocar que na trajetória do movimento existiram duas principais vertentes: uma de cunho mais religioso (início do movimento) e outra de cunho mais político, que tende a predominar até os dias atuais. Contudo, cabe frisar que sempre existiu uma mescla dessas duas vertentes, só que cada uma delas teve expressão maior em diferentes fases do movimento[13]

O MST, no decorrer da sua trajetória, procura conquistar maior apoio da sociedade para a sua luta, esclarecendo que a reforma agrária não é apenas um problema dos sem-terra. Nesse sentido, criou o lema:"reforma agrária é uma luta de todos". Com isso, passou a ampliar as ações com outros setores da sociedade, a fim de debater também um projeto popular alternativo, fazendo alianças com outros setores e movimentos do meio rural, pastorais, entre outros, assim como avançar na formação de militantes em âmbito nacional (MST, 2001).

A formação também deverá servir como uma ferramenta de correção dos erros e de superação das contradições que o processo possa trazer. Portanto, ela também deverá ser compreendida como um método de acompanhamento do assentamento, uma formação em movimento (Ibidem, 2001, p.92).

Ainda conforme a obra Construindo o Caminho (2001), a formação divide-se em massiva e de lideranças / militantes, segundo síntese a seguir:

Quadro 1 – Formação dos Sem-Terra MASSIVA LIDERANÇAS E MILITANTES

- procura atingir todos os integrantes do assentamento.

- a formação deve avançar rumo a consciencia de classe;

- principais cursos: formação de integrados na produção; jornadas de reforma agrária e brigadas de formação.

- principais cursos: brigadas de formação; - ter consciência das lutas gerais da sociedade, a fim de visualizar o conjunto da classe trabalhadora e sua exploração

Compilação própria: SILVEIRA, S. M. P.

Percebe-se que a luta deve transcender a questão da terra, do crédito, da moradia, enfim procuram passar aos integrantes do movimento que a luta é maior e mais complexa.

São as lutas políticas gerais da sociedade que nos permitem enxergar o conjunto da classe trabalhadora e sua exploração. Nos permitam compreender a natureza do enfrentamento, os inimigos de classe e a complexidade dessa luta. Assim, a participação nas lutas – não apenas econômicas, mas as lutas gerais da sociedade – são fundamentais no processo de qualificação da consciência das pessoas (Ibidem, 2001, p.106).

O movimento incentiva e apóia a formação permanente de seus militantes, uma vez que o inimigo não é apenas o latifúndio, mas, conforme seu entendimento, a estrutura de poder que mantém a sociedade dividida em classes. Nesse sentido, confere importância a relação entre as lutas locais e lutas mais amplas, visando elevar "a consciência social para a consciência política". Assim como, segundo BOGO (1999), o movimento deve ter claro que o seu objetivo estratégico será atingido a longo prazo (sociedade mais justa/socialista). Para tanto, procura criar uma unidade entre as diferentes forças democráticas que também lutam por objetivos semelhantes.

A capacitação e qualificação devem atingir os militantes de maneira geral, desenvolvendo os diferentes aspectos da pessoa humana, contribuindo para a construção de uma nova ética – uma ética revolucionária – que oriente o comportamento dos militantes, baseado na vivência de valores como solidariedade, amor à causa do povo, o companheirismo, à disciplina consciente, a honestidade, a reponsabilidade, crítica e autocrítica, que vão 27 dando forma ao novo homem e a nova mulher que almejamos alcançar eliminando os vícios e mazelas que foram introjetados pelo capitalismo na consciência das pessoas (Ibidem, 2001, p.111).

Os meios de comunicação do movimento (Jornal Sem-Terra – JST; rádios do MST; Revista Sem-Terra – RST; Internet – página na rede mundial de computadores) servem para auxiliar na organização do povo, das ocupações, favorecer a unidade em torno da estratégia política, assim como a firmeza ideológica.

Face o exposto pode-se sintetizar os principais objetivos do movimento, conforme segue:

Quadro 2 – Objetivos do MST

Os objetivos do MST Somos um movimento de massas de caráter sindical, popular e político.Lutamos por terra, reforma agrária e mudanças na sociedade

Objetivos gerais

Programa de reforma agrária

1 - Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia sobre o capital.

2 - A terra é um bem de todos. E debe estar a serviço de toda a sociedade.

3 - Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas.

4 - Buscar permanentemente a justiça social e a igualdade de direitos econômicos, políticos, sociais e culturais.

5 - Difundir os valores humanistas e socialistas nas relações sociais.

6-Combater todas as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária da mulher

1 - modificar a estrutura da propriedade da terra.

2 - Subordinar a propriedade da terra à justiça social, às necessidades do povo e aos objetivos da sociedade.

3 - Garantir que a produção da agropecuária esteja voltada para a segurança alimentar, a eliminação da fome e ao desenvolvimento econômico e social dos trabalhadores.

4 - Apoiar a produção familiar e cooperativada.

5 - Levar a agroindústria e a industrialização ao interior do país, buscando o desenvolvimento harmônico das regiões e garantindo geração de empregos, especialmente para a juventude.

6 - Aplicar um programa especial de desenvolvimento para a região do semi-árido.

7 - Desenvolver tecnologias adequadas à realidade, preservando e recuperando os recursos naturais, com um modelo de desenvolvimento agrícola auto-sustentável.

8 - Buscar um desenvolvimento rural que garanta melhores condições de vida, educação, cultura e lazer para todos.

Fonte: MORISSAWA, 2001, p. 153. Brasília, 1995.

1.3.1- Desafios e continuidades, segundo a ótica do movimiento

A partir de 1995 em diante tem surgido muitos movimentos rurais isolados, apresentando características corporativas, como por exemplo no Pontal do Paranapanema. O problema de muitos desses movimentos, na perspectiva do MST, é que não geram consciência política e social, ou seja, de que os problemas da pobreza não são decorrentes apenas da falta de terra, mas de toda uma lógica social maior que "cria os pobres e os impede de ter uma vida digna". Nesse sentido, o MST destaca a importância da conscientização que faz-se necessária para mudar a sociedade, assim como o Estado.

O oportunismo de direita ocorre nesses movimentos localizados que estão acontecendo mais em São Paulo, onde o liderzinho resolve tirar proveito de seu rebanho. O cara só quer benefícios próprios ao se autodenominar líder de 50 famílias. O mesmo vale para o vereador ou prefeito que sonha em ter um curral eleitoral (STEDILE, 1999, p. 119).

Em relação aos assentamentos, o referido autor enfatiza que devem ser um cartão de visitas para a sociedade, a fim de que "os visitantes se sintam bem, felizes e orgulhosos do resultado da luta pela terra". Outro desafio é o "exercício intensivo da solidariedade com a sociedade", em termos práticos: doar sangue em hospitais, auxiliar em casos de enchentes, secas, etc, desenvolver lavouras comunitárias de outro tipo, a fim de realizar doações a creches, hospitais, asilos, entre outros, melhorar a merenda oferecida aos alunos.

Vamos ter que construir esse desenvolvimento que sonhamos em nossos espaços, para provar que é viável. O desenvolvimento rural, como é mais amplo, não basta apenas fazê-lo num único assentamento, tem que afetar uma região inteira, tem que ser regional. Isso é mais demorado, envolve toda a sociedade.É um grande desafio à frente (Ibidem, 1999, p.125).

Ainda segundo Stedile, outra frente de luta é de trabalhar o meio rural como alternativa à cidade, assim como "alternativa ao desenvolvimento geral da sociedade". Ou seja, entende que para resolver o problema dos excluídos dos países do sul, deve-se levar o progresso para o campo. E por fim, o principal desafio do MST é realmente tirar a reforma agrária do papel, uma vez que o assentamento de famílias sem-terra não é sinônimo de reforma agrária.

[...] reforma agrária é sinônimo de desconcentração da propriedade da terra.

Ora, fazer assentamentos de algumas famílias, que podem ser milhares, não significa que se está afetando toda a estrutura da propriedade da terra, se ela não for massiva e rápida. Assim, o que existe no Brasil atualmente é uma política de assentamentos sociais, em que o governo federal e às vezes até governos estaduais, premidos pelos movimentos sociais, e para evitar que os conflitos de terra se transformem em conflitos políticos, resolvem conseguir algumas áreas, seja de terras públicas, seja negociadas, seja desapropriadas, e assentar as famílias. (Ibidem, 1999, p. 159).

Mesmo tendo sido assentadas mais de 300 mil famílias, ainda existem muitas famílias sem-terra.

A fim de resolver esse problema, o MST, CONTAG e outras entidades propõem: "realizar um amplo programa de desapropriações de terra, de forma rápida, regionalizada, e distribuí-la a todas as famílias sem-terra, que são 4,5 milhões em todo o Brasil" (Ibidem, 1999, p.160).

Esclarece que, mesmo não havendo reforma agrária, a política de assentamentos só tem sido posta em prática devido a mobilização e forte pressão dos trabalhadores, tendo várias chacinas, violências, acampamentos, marchas, caminhadas, entre outros, a fim de pressionar as autoridades públicas.

1.3.2- O MST em Santa Catarina

A organização e mobilização dos camponeses catarinenses teve em princípio suas origens no Contestado[14]Posteriormente, em meados dos anos 1970, prosseguiu em razão da "peste suína Africana", crise desencadeada para acabar com o sistema tradicional de criação de porcos[15]Na década seguinte, em 1980, um pequeno grupo de sem-terra ocupou um latifúndio improdutivo (Fazenda Burro Branco). Mesmo enfrentando dificuldades e conflitos com as forças policiais, conseguiram aglutinar para o local cerca de 350 famílias. A CPT, a Diocese de Chapecó e a Igreja Luterana solidarizaram-se com as famílias, apoiando com alimentos, remédios, juridicamente, entre outros (MITSUE, 2001). Estas Instituições religiosas procuravam organizar os trabalhadores para a conquista dos sindicatos de trabalhadores rurais, os quais seriam instrumentos para tratar dos graves problemas que envolviam os camponeses, tais como a questão da terra, do preço dos produtos, etc. A autoridade/prestígio da Igreja contribuiu para alavancar o movimento. Mas a ocupação na referida fazenda foi só o começo, pois Podemos dizer que a onda de organização, planejamento e discussão começou com a ocupação da fazenda Burro Branco, em 1980, e atingiu seu ápice em 1985, com as ocupações em São Miguel do Oeste, Faxinal dos Guedes, Dionizio Cerqueira, São José do Cedro e Abelardo Luz (STRAPAZZON, 1997, P.42).

O movimento passou a fazer várias ocupações no Estado Catarinense, mas não apenas em fazendas, passou a ocupar Órgãos Públicos (prefeituras, INCRA, entre outros), assim como realizar manifestações, caminhadas e protestos. Essas ações propiciaram seu fortalecimento e com isso muitas famílias foram assentadas. Com o tempo, tal qual o movimento em âmbito nacional, o MST catarinense foi sentindo a necessidade de apoiar um partido político, a fim de melhor viabilizar o contato com as autoridades (Governo Federal, INCRA) e também politizar o discurso, pois conforme esclarece Grzybowski:

[...] A terra é sagrada. A Igreja empresta um caráter bíblico-político à luta pela terra como luta contra o ´negócio`, não percebendo que tal luta, em si mesma, não é outra coisa que reintegração na estrutura e no ´negócio`. Falta-lhe incorporar as outras lutas, ver nelas um sentido histórico e uma pista para eleborar uma visão de uma sociedade com novas formas de integração social (1987, p.70-71, In: Strapazzon, 1997, p.57).

Temas como "resistência ativa não violenta, solidariedade, união" estavam muito presentes no discurso da CPT. No entanto, estas estratégias discursivas surtiam pouco efeito perante os problemas dos agricultores. Outro aspecto importante apontado por Strapazzon é do descompasso "entre moral do discurso religioso e a moral dos agricultores", conforme explícito no trecho a seguir:

Porque eu no início era assim. Tudo o que a Igreja falava era inquestionável....mas depois eu comecei a ter um problema que, enquanto eu achava que tava correto, eu era o cara perfeito. Quando comecei a caminhar com as próprias pernas, eu comecei a ser um cara complicado para a Igreja, para setores da Igreja, né. Por exemplo, a Igreja na época condenava as pessoas que ia pra diversão.[...] E aí, quando nós começamos a dizer o seguinte: ou nós vamos onde o povo está e respeitamos os costumes e os valores, as coisas que eles vão construir, que não prejudica diretamente o movimento, ou nós vamos fazer o movimento sozinho. Aí começou a dar problema. Fui...fui jogar bolão, coisa que eu nunca jogava, né, mas eu até as vezes ia, porque, dependendo de quem tava no bolão, eu achava interessante...eu tomava uma cachaça, apesar dela me fazer mal, mas às vezes eu tomava uma porque eu achava importante tomar uma cachaça, porque daí o cara vinha conversar comigo. E isso era condenado...Essas coisas pequenas foram muito condenadas pelo pessoal: não, agora o cara caiu fora do Reino de Deus (Agricultor, organizador do MST e da CPT no Oeste Catarinense) (POLI, 1995, In: STRAPAZZON, 1997, p.64-65).

Dessa forma, os agricultores iam aos poucos adquirindo sua autonomia, em relação a Igreja, e passaram a construir um outro discurso mais condizente com a realidade cotidiana, das dificuldades (crédito, plantio, enfrentamentos), da importância da negociação com diferentes Instituições e, principalmente, da necessidade de radicalizar a posição do movimento, segundo fala de um agricultor:

[...] Por exemplo, em 85, a orientação que nós tinha, né, a decisão que nós tinha era de não ir pro conflito, pro confronto, né. No caso, nem num despejo. Se vinha o pistoleiro lá, nós recuava, né, quer dizer, de 85 a 87, nós tivemo que mudar de estratégia, né. Quer dizer, se nós ia na onda de....ficar lá como cordeirinhos, né, vinha lá um pistoleiro e atropelava nós. E nós não ia avançar no processo, né. Se chegou a discussão e à necessidade de nós radicalizar, nesse campo, nesse lado. Os cara vêm, nós vamos ter que enfrentar. Senão nós não vamos conquistar a terra (Ibidem, 1997, p. 63).

O apoio da Igreja ao movimento era predominantemente vinculado a setores progressistas da Igreja Católica (Teologia da Libertação), os quais utilizavam-se de uma base formativa cristã e também sociológica marxista. Sendo assim, devido a incompatibilidade do discurso religioso, conforme referido, os agricultores, em especial as lideranças, passaram a se valer do discurso marxista. Isso fica explícito na simbologia do movimento, pois já não é mais a cruz que se faz presente nas marchas, encontros, mas a bandeira do MST. Esse deslocamento, essa mudança de discurso de político religioso para político econômico ocorreu no movimento como um todo, ou seja, mesmo que cada local ou Estado tivesse suas peculiaridades e seu próprio processo de organização dos agricultores, as principais bandeiras de luta acabavam sendo unificadas nos Encontros e Congressos Nacionais.

A postura do movimento de apoiar um partido político da classe trabalhadora, assim como de apoiar uma central sindical de massa, acabou de certa forma num crescente afastamento da CPT e da Igreja, na segunda metade da década de 1980. Ainda segundo o autor, a organização interna do movimento foi alterada, pois com a presença da Igreja/CPT havia uma maior descentralização, na tomada de decisões, predominando uma estrutura em rede. Posteriormente, o movimento teria adquirido, com o novo discurso, uma verticalização, ou seja passou a estar mais próximo de uma estrutura piramidal. Neste segundo momento, ao invés da organização basista, ocorre que a direção passa a apontar o caminho. "Esta visão pode ser definida por uma frase muito repetida na segunda década de 80, em várias reuniões de partidos e movimentos: Quem sabe, dirige"(Ibidem,1997, p.93).

Dessa forma, pode-se colocar que no referido contexto o discurso predominante foi o marxistaleninista, o qual foi reapropriado da matriz discursiva da Teologia da Libertação. Assim, do discurso político-religioso, passou-se para o discurso da utopia da sociedade sem classes, com novos valores e novas relações humanas. As influências do Partido dos Trabalhadores/PT e da Central Única dos Trabalhadores/CUT, entre outros, continuaram existindo no movimento, tendo mais destaque e influência, diferente da Igreja que também continuou participando, mas com menos força e influência, tal como tinha no início.

Além da matriz discursiva marxista-leninista, segundo autor supracitado, outros discursos passam a influenciar o movimento, tais como "desenvolvimento sustentável" que leva em conta aspecto como preservação do meio ambiente, agroecologia, entre outros, e o discurso produtivista como demanda dos próprios agricultores.

1.3.3 - Assentamento Eldorado dos Carajás – Santa Catarina

A organização dos trabalhadores para conquista da terra teve seu início no Oeste Catarinense.

Posteriormente, avançou para a Região Meio Oeste do Estado. Neste local, em face da pressão do movimento, o INCRA desapropriou na Região do Município de Lebon Régis, parte (1/3) da propriedade da família Deboni (SANTOS et al, 2006). Neste local foram assentadas 252 famílias, em 7 assentamentos, sendo um deles o objeto desta pesquisa: Assentamento Eldorado dos Carajás, conforme tabela a seguir:

Tabela 1

Projeto Assentamento

Área (há)

Portaria e data

N.° de famílias

Rio Timbo

718,5432

287 – 01/04/87

44

Córrego Segredo I

228,3478

906 – 28/06/88

15

Córrego Segredo II

408,5846

1393 – 20/10/88

26

Rio dos Patos

844,9900

1551 – 30/11/88

49

Rio Água Azul

374,8160

Res.025 – 29/04/93

26

Conquista dos Palmares

416,1383

045 – 06/11/96

32

Eldorado dos Carajás

212,8968

03-17/02/2003

19

Sub-Total

3.204,3167

 

211

Fonte: INCRA/SC – s/d

CAPÍTULO I I

MST: DIFERENTES ABORDAGENS

As principais e mais polarizadas abordagens[16]em relação ao MST são:

2) Primeira Abordagem: para essa análise o MST tem dificuldade de propiciar a formação de sujeitos autônomos[17]tendo como conseqüência um nível baixo de democratização nas relações entre os integrantes do movimento, assim como em relação a outros movimentos sociais. No entanto, os autores dessa abordagem consideram a importância do movimento, no sentido de conseguir organizar as populações mais pobres do meio rural e contribuir para a formação de relações mais democráticas no âmbito da sociedade rural (entre fazendeiros e empregados, por exemplo). Os principais autores são: Zander Navarro e José de Souza Martins.

Segundo a análise de Navarro (2002) o MST nasceu como um movimento social, tendo capacidade de se "reinventar", aglutinando setores mais pobres do meio rural. Teve forte apoio e influência de setores progressistas, principalmente, da Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nesta fase, o movimento constituía-se democraticamente, sendo pouco hierarquizado, com participação da base nas decisões e ações. Posteriormente, devido vários fatores, o MST passou a ser uma organização[18]ou seja, não mais com participação de todos os envolvidos (base), mas com forte centralização da tomada de decisões (mediadores, lideranças).

Dessa fase em diante, a base do movimento passou a ser mobilizada por diversos aspectos, mas não pela sua "adesão consciente e voluntária". Sendo assim, argumenta que o movimento não contribui para a real emancipação dos pobres no campo, a qual tem por significado:

[...] às chances de as classes subalternas e os grupos sociais mais pobres, a partir de diferentes identidades, construírem, de forma autônoma, suas diversas formas de associação e representação de interesse e, mais relevante, adentrarem o campo das disputas políticas e aí exercerem seu direito legítimo de defender reivindicações próprias e buscar materializar suas demandas, sem o risco de eliminação ou constrangimentos politicamente ilegítimos materializados por grupos sociais adversários (NAVARRO, 2002, p. 196 -197).

Desse modo, destaca que um dos principais desafios do movimento é a democracia, não somente interna ao movimento, mas também em relações a outros movimentos sociais, os quais o MST procura ter "controle" ou "fagocitá-los". As lideranças e mediadores, segundo o autor, vêem nas ocupações de terra potenciais de rupturas e transformações políticas, as quais não existem na percepção das famílias humildes do meio rural, que lutam pela conquista da terra, dignidade, entre outros, e pouco entendem, por exemplo, do que seja: socialismo, imperialismo, revolução, luta de classes, etc. Além disso, enfatiza que procuram inculcar no seio dos trabalhadores rurais uma perspectiva polarizada do mundo, reducionista, entre o bem e o mal, como se a realidade social, com todas as suas complexidades, pudesse ser simplesmente reduzida entre os bons e os maus. Um dos principais fatores que propicia essa visão aos grupos de lideranças do MST é a "ortodoxa preferência leninista de sua direção principal", conforme o autor. Dessa forma, os militantes não conseguem obter uma consciência política de forma livre, mas apenas tendem a repetir os discursos dos líderes principais, enfim perde-se a múltiplas possibilidades de compreensão da realidade rural/social, de forma autônoma, livre, pela "adesão" a uma "camisade- força" do discurso "politicamente correto".

Por outro lado, o referido autor, também destaca os aspectos positivos do movimento, tais como:

importante ator político presente na política nacional; resultados expressivos alcançados pelo MST, tais como os seus inúmeros assentamentos em todo o país; capacidade de renovação política dos "rincões rurais", democratizando-os e produzindo novas práticas sociais; melhoria das condições de vida das famílias rurais, entre outros.

Contudo, esclarece que a visão anti-sistêmica, de enfrentamentos e de deslegitimação do Estado, mesmo sendo deste que o movimento extrai seus principais recursos, não "combina" com o contexto sócio-histórico atual, ou seja, até na época da ditadura fazia sentido, mas não neste momento em que o regime político se democratiza/institucionaliza. Dessa forma questiona: "Porque não apostar na democracia?". O desprezo, segundo o autor, pela democracia está na avaliação de que a esfera pública é uma herança burguesa. No entanto, esclarece, que essas lideranças não são capazes de perceber que o contexto atual é outro, devido a uma série de mudanças[19]entre elas a "crise da política" e suas instituições, que tem animado a reconstrução do próprio significado da democracia, assim como suas potencialidades transformadoras, ou seja, "parecem desconhecer o esforço teórico de reconstruir a base democrática do socialismo" .

Conforme suas palavras:

A noção de democracia deste novo século, muito provavelmente, ainda sofrerá outras sensíveis e rápidas mudanças, inclusive (ou principalmente) pela ação virtuosa de diversas práticas sociais e formas de luta política de organizações populares. Uma dessas tantas características, que rompe com a feição normativa e procedimentalista da noção de democracia herdada da modernidade, refere-se exatamente a incorporação do conflito como elemento constitutivo da política, deixando de ser uma anomalia a ser naturalmente combatida. As ocupações de terra, por exemplo, nesta nova concepção democrática, mesmo que se mantendo eventualmente ilegais, passariam a ser politicamente recebidas como legítimas formas de pressão de grupos sociais desigualmente situados na estrutura social.

Ou seja, em sociedade desiguais, as armas de luta social passariam a ser incorporadas, sob uma perspectiva revisada da democracia, como formas de pressão legítimas usadas para combater a desigualdade social e as formas de exclusão política. [...] A democracia, não como uma estruturação sociopolítica derivada meramente de um receituário procedimentalista, como apregoado pela ciência política liberal, mas reconceituada, elevando-a à forma política transformadora e de real significação emancipatória, esta sim parece ser a aposta de um novo mundo, na qual prevaleçam os valores maiores da convivência humana (Ibidem, 2002, p. 280).

Enfatiza, que hoje, em tempo médio previsível, não é possível uma ruptura sóciopolítica e grandes transformações da sociedade atual. Mas que a possibilidade de real emancipação e transformação continuada da sociedade passa pela radicalização da democracia e não pela política do "conflito pelo conflito", tal qual a postura do movimento em 1996, por exemplo, ao não aceitar negociar com o governo federal, mesmo tendo esse propiciado oportunidade de ampliar o programa de reforma agrária. Dessa forma pergunta:

[...] quando a organização permitirá, em "seus" assentamentos, que os próprios assentados decidam suas formas de cooperação (se não preferirem a ocupação familiar de suas parcelas específicas), como melhor entenderem (ou seja, respeitando-se sua autonomia) e, em particular, quando deixará de utilizar fundos públicos para exercer diferentes formas de controle social sobre as famílias instaladas nestas novas áreas? (Ibidem, 2002, p. 277).

Martins (2003) esclarece que os camponeses não são, fundamentalmente, os protagonistas políticos da luta pela terra, uma vez que não possuem consciência política explícita, ou seja, para o autor a luta dos camponeses é "imediata pelo instrumento de trabalho necessário à sobrevivência". Conforme suas palavras:

A dimensão propriamente política da questão agrária está no discurso e nas ações do que se pode chamar de agentes de mediação das lutas camponesas.

São os grupos propriamente políticos, inspirados por doutrinas e ideologias partidárias, que interpretam a luta pela terra como luta pela reforma agrária. E não primariamente os trabalhadores rurais. Isto é, como luta política e luta de classes por uma revisão radical da estrutura fundiária do país, não raro em nome do socialismo. No geral, esses grupos de mediação são grupos de classe média, intelectuais, agentes religiosos e agentes partidários, educadores, ainda que dentre eles muitos tenham origem próxima ou remota em famílias camponesas, especialmente do Sul. É o caso de muitos dirigentes do MST e de muitos agentes da CPT (Ibidem, 2003, p.222 – 223).

Dessa forma, destaca que as lutas pela reforma agrária acabam não correspondendo aos anseios dos camponeses e as suas possibilidades de se auto-organizarem. Ou seja, os objetivos não são dos pobres, camponeses, mas da "classe média militante". Frisa que primeiramente, havia certo desprezo em relação ao homem do campo, como sendo alguém rude, ignorante, que está longe, distante do progresso. Posteriormente, da visão de desprezo passou-se a visão de tutela, ou seja, passam a ver o camponês como impossibilitado de ter voz, falar por si, que precisa de alguém que fale em seu nome. Destaca que esses mediadores, na maioria das vezes, procuram situar a questão da terra no âmbito da luta de classes e da luta antiimperialista, sendo que a maioria dos camponeses tem pouca compreensão do que seja esquerda e direita, comunismo, imperialismo, entre outros. Em síntese, enfatiza que os mediadores reproduzem uma "luta maniqueísta entre o bem e o mal" (Ibidem, 2003).

2.1) Segunda Abordagem: para essa análise o MST é um dos principais movimentos sociais do meio rural que mais consegue transformar indivíduos excluídos em sujeitos autônomos, com capacidade de esclarecimento e autodeterminação própria. Dessa forma, além de ser um movimento democrático, também contribui para avançar a radicalização da democracia na sociedade em geral.

Roseli Caldart (2001) destaca certas características do MST que o distinguem de outros movimentos sociais, tais como a sua capacidade de fazer com que pessoas excluídas da sociedade passem a ser lutadoras, se envolvam num processo de construção de novos significados para a sua realidade, assim como construtoras de novas relações sociais, em que prevaleça a solidariedade, o respeito às diferenças, o companheirismo, entre outros. Outro aspecto peculiar ao movimento, destacado pela autora, refere-se a radicalidade da forma de luta desenvolvida, no sentido de ocupar terras improdutivas e nelas construir acampamentos, envolvendo a família inteira, ou seja, a luta passa a ser de todos: homens, mulheres, jovens, crianças e, muitas vezes, até idosos. Essas características, segundo a autora, fazem com que as demais pessoas externas ao movimento geralmente não ficam indiferentes, ou seja, são contra ou a favor.

Enfatiza que o eixo central da luta do MST é pela terra, mas que o movimento também desenvolve diferentes lutas paralelas no decorrer de sua trajetória.

Estas lutas, bem como o trabalho cotidiano em torno do que são suas metas, e que envolvem questões relacionadas à produção, à educação, à saúde, à cultura, aos direitos humanos..., se ampliam à medida que se aprofunda o próprio processo de humanização de seus sujeitos, que se reconhecem cada vez mais como sujeitos de direitos, direitos de uma humanidade plena (Ibidem, p. 208).

Em relação à organização interna do movimento, ressalta que possui uma forma organizativa própria que, ao mesmo tempo, é flexível e permanente. Além disso, tem capacidade de envolver diferentes pessoas da sociedade, em geral, na luta por suas reivindicações. Consegue articular os excluídos, organizando-os, ou seja, "não aceita a exclusão como um dado inevitável". Questiona a lógica, o modo de ser da sociedade presente, pela sua própria forma de ser e aparecer, em marchas, acampamentos, fazendo do impossível o possível (permanecer famílias inteiras sob uma lona, durante meses, anos) e não pelas idéias revolucionárias, enfim é uma luta que pode ser sintetizada nas palavras de um sem terra: "Quando ocupamos aquela terra, paramos de morrer..."[20]. Dessa forma, a autora esclarece que:

O fato é que há no Brasil, hoje, um novo sujeito social que participa ativamente da luta de classes, com sua identidade e seu próprio nome: Sem Terra. Nesse sentido, Sem Terra é mais do que sem-terra, exatamente porque é mais que uma categoria social de trabalhadores que não têm terra; é um nome que revela uma identidade, uma herança trazida e que já pode ser deixada aos seus descendentes, e que tem a ver com uma memória histórica, e uma cultura de luta e de contestação social. Há um processo de construção desse sujeito, que é a história da formação do sem-terra brasileiro, em um recorte político e cultural diferenciado, algo que certamente requer estudos mais aprofundados (Ibidem, p.211).

O MST foi gestado a partir das diferentes lutas no campo brasileiro, ou seja, passa a ser um herdeiro das Ligas Camponesas, Contestado, Canudos, entre outros, ou seja, não se constitui como sujeito pronto, mas vai construindo, nas diferentes fases de sua história, uma identidade Sem-Terra. "Essa identidade fica mais forte à medida que se materializa em um modo de vida, ou seja, que se constitui como cultura, e que projeta transformações no jeito de ser da sociedade atual e nos valores (ou anti-valores) que a sustentam" (Ibidem, p. 212).

A referida autora entende que o processo de estar em movimento constitui-se como um processo de formação humana, cuja "matriz é o próprio movimento como sujeito e princípio educativo".

Ou seja, nas ações do movimento os indivíduos se constituem como sujeitos sociais, assim como demonstram aos demais, que estão excluídos da sociedade, que as coisas podem ser mudadas, podem ser diferentes. Para a autora: "quanto mais inconformada com o atual estado de coisas, mais humana é a pessoa". Sendo assim, a participação no movimento cria "a possibilidade de fazer-se e refazer-se a si próprio".

[...] participar do movimento da luta vai educando um jeito específico de ser humano, que potencializa o principal traço da humanidade: a possibilidade de fazer-se e refazer-se a si próprio, enquanto contesta a ordem estabelecida, problematiza e propõe valores, transforma a realidade e se reproduz como sujeito da história. As lutas sociais produzem as transformações históricas, e o fazem à medida que conseguem conformar os sujeitos capazes de operá-las e, ainda mais, de consolidar os novos parâmetros de vida em sociedade que vão criando neste movimento (Ibidem, p. 214).

Nesse sentido, no movimento e no processo de luta, os sem-terra vão entendendo que não basta apenas a terra, mas que a luta é muito mais ampla e que envolve uma série de fatores: sóciohistóricos, econômico, entre outros. Face a isso, o debate desses temas com os mediadores/lideranças tende a propiciar uma melhor compreensão do contexto social, com suas particularidades, características, etc. Para tanto, além do apoio dos mediadores, a autora aponta a importância da educação para o "desenvolvimento de sujeitos políticos" que passam a compreender as lutas históricas dos trabalhadores por direitos. Explica que ao "transcender a questão da terra, a luta torna-se maior que ela mesma".

Afirmar que uma luta social produz e reproduz um movimento sócio-cultural, maior do que ela mesma, significa dizer que sua dinâmica encarna, exige e projeta dimensões relacionadas ao modo de vida das pessoas em uma sociedade: mexe com valores, posturas, visão de mundo, tradições, costumes..., enfim, provoca a reflexão da sociedade sobre si mesma. Por isto as ações de seus sujeitos acabam tendo um sentido histórico e uma influência política que extrapola o seu conteúdo específico, os interesses sociais imediatos e a consciência política que produziu não somente as ações, mas seus próprios sujeitos (Ibidem, p. 215).

Enfatiza que mais importante que a Escola como educador dos sem-terra é o próprio movimento que propicia uma nova relação com a terra, com o trabalho, com a cultura, a história e a própria luta.

Segundo a análise de Carvalho (2002), o MST constitui-se como um dos maiores movimentos sociais de massa do Brasil e também da América Latina, algo que dificilmente seus fundadores, em 1984, vislumbrariam. Destaca que mesmo tendo diferentes forças na sociedade contrárias a sua ação, tais como polícias militares; forças paramilitares (jagunços, pistoleiros); classes dominantes (capital agrário, comercial, industrial e bancário); grande parte dos meios de comunicação de massa, entre outros, o movimento consegue mobilizar milhões de agricultores sem-terra, obrigando o Estado e as classes dominantes a colocarem a reforma agrária como uma das prioridades nacionais.

Para entender como o MST, com tamanhas dificuldades consegue êxito na sua luta, em função de seu crescimento e atuação em diferentes regiões do país, o autor enfatiza que é necessário compreender os "segredos íntimos" do movimento, os quais propiciam a emancipação das "classes subalternas do campo" de diferentes formas de tutela, assim como a sua própria emancipação em relação a diferentes mediadores (Igreja, Sindicatos, Partidos, etc). A emancipação social referida, significa um processo continuado, ou seja, algo que está em movimento permanente, uma vez que as relações de tutela não se acabam radicalmente, ou, se terminam umas, outras se apresentam e assim sucessivamente.

Segundo o autor, a "emancipação social continuada" não necessariamente exige a presença dos mediadores, pois os próprios integrantes do movimento, através de sua ação, mobilização pelos propósitos objetivos e subjetivos, acabam se emancipando nesse processo. O MST foi capaz de propiciar um novo sentido a essa emancipação, reafirmando a identidade dos sem-terra, a sua conquista de dignidade, fatores estes que contribuíram para a aquisição da cidadania. Além disso, também foram importantes para o empoderamento desses sujeitos as ações diretas, ocupações, pedagogia própria, mística, formação de novas relações, tanto internamente (solidariedade, companheirismo, disciplina, estudo) como externamente (autônomas e não cooptadas) em relação a outros movimentos sociais, Estado, etc.

[...] a afirmação cidadã dessas parcelas das classes subalternas que lutam pela terra, pela reforma agrária e pela mudança no modelo econômico vigente ocorre nos espaços sociais criados por eles próprios, em uma tensão dialética entre espaços sociais emancipados socialmente e a tentativa também continuada de tutela desses espaços pelas classes dominantes (CARVALHO, 2002, p. 240 – 241).

Principalmente em seus primórdios, o movimento teve apoio da Igreja Católica e Luterana, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e de alguns Partidos Políticos, mas com o tempo foi se emancipando desses atores. No entanto, muitos desses mediadores ainda participam do movimento, principalmente a CPT, sendo solidária as ações do MST.

Segundo o autor, os principais "segredos íntimos" do movimento são:

[...] a ação de massas, a forma de luta ação direta expressa na ocupação de terras, os valores, a mística, a direção coletiva, a formação dos militantes, a autonomia própria do movimento e a sua capacidade de, involuntariamente, constituir-se como um tipo de sociedade em rede com identidade social de projeto (Castells, 1999:28. In: Ibidem, p.244).

Esclarece que a luta do movimento não é apenas contra o latifúndio, mas constitui-se como "luta de classes contra o capital", uma vez que os proprietários de terra sempre estiveram integrados a burguesia urbana (comercial, industrial e bancária), sendo que a partir da década de 1970, grande parte dos maiores imóveis rurais passaram a estar concentrados no domínio do capital financeiro e comercial. Dessa forma, o MST acabou defrontando-se com o grande capital, pois entendeu que não poderia esperar pelo Estado, o qual apresenta "[...] caráter tutelador sobre as classes subalternas do campo (e da cidade), pelas ações de coerção e de formação de consenso na garantia da hegemonia das classes dirigentes sobre as demais classes sociais do país [...] (Ibidem, p. 246)." Além dos aspectos referidos, destaca que o movimento possui uma dinâmica própria, que impede a formação de uma organização burocrática e centralizada, ou seja, para uma ocupação é necessária a mobilização de muitas pessoas, as quais conferem unidade interna ao movimento por meio da "identidade social de resistência"[21] que, posteriormente, vai sendo superada pela "identidade social de projeto"[22]. Esta segunda forma de identidade expressa que os anseios do movimento não são apenas pela terra, mas que se faz necessário outras conquistas (saúde, educação, lazer, etc), assim como compreender que é importante à criação de uma identidade social mais ampla, que envolva os demais setores subalternos da sociedade e não apenas do meio rural, a fim de lutar contra o capital.

O movimento também utiliza diferentes estratégias para se manter nos momentos mais difíceis, de maior repressão, tais como cooperativas de produção agropecuária, como "ensaio de superação do individualismo econômico" e as marchas como meio de sair do isolamento.

As marchas foram transformadas não apenas em ação política, mas também educativa quando os caminhantes, passando pelas cidades, localizavam as lideranças populares locais, faziam reuniões nas escolas, paróquias, ofereciam alimentos produzidos nos assentamentos, etc. Nos dias em que os caminhantes permaneciam acampados junto às pequenas cidades a atenção era inteiramente voltada para eles e para as suas ações de animação política (Ibidem, p. 252).

Com todas essas práticas referidas, o MST consolidou-se, segundo o autor, como um movimento social de massa e não como uma organização social de massa, vindo a ter semelhança a uma sociedade em rede (Ver: Cap. III). Face ao exposto, esta pesquisa tem por objetivos, hipóteses e questões, o que ora segue:

2.2) – Objetivos

2.2.1 - Geral:

Entender o processo de formação do sujeito no MST, no momento atual, observando se houve mudança no perfil do sem-terra, ou seja, se ocorreu (como ocorreu, se está ocorrendo, se não ocorreu) a passagem do indivíduo ao sujeito[23]

2.2.2 - Específicos:

a) Verificar se a luta do integrante do movimento transcende a questão da terra;

b) Averiguar o tipo predominante de relação entre os membros do movimento: piramidal (hierárquica) ou em rede (descentralizada);

c) Observar se o sucesso mobilizador do MST pode ser explicado pela adesão consciente e voluntária de sua base social;

d) Analisar as formas pelas quais os dirigentes são eleitos; e) Verificar quais são os mediadores presentes no movimento;

f) Analisar a relação da base com os mediadores e lideranças;

g) Avaliar como ocorre o desligamento dos sem-terra do MST, assim como a entrada de novos integrantes.

2.3) Questões e Hipóteses:

2.3.1) Mediadores

Questão: Quais são os mediadores presentes no movimento?

Hipótese: Existe uma mescla de diferentes mediadores: Igreja; partidos políticos; assentados, etc.

Questão: Quais são as relações entre lideranças, mediadores?

Partes: 1, 2, 3, 4


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